domingo, 12 de abril de 2020

Retorno ao Contrato Social

Retorno ao Contrato Social

Em editorial de 03 de abril de 2020, o Financial Times, jornal publicado no Reino Unido, disse que o “vírus expõe a fragilidade do contrato social”. Defende com isso uma maior intervenção do Estado na economia e medidas que possam assegurar o bem-estar da população, reduzindo as desigualdades geradas pela pandemia. E conclui:

Reformas radicais - invertendo a direção política predominante das últimas quatro décadas - precisarão ser colocadas sobre a mesa. Os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem ver os serviços públicos como investimentos, e não como passivos, e procurar maneiras de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição estará novamente na agenda; os privilégios dos idosos e ricos em questão. As políticas até recentemente consideradas excêntricas, como renda básica e impostos sobre a riqueza, terão que estar na mistura. (Financial Times)

Já escrevemos alguns artigos neste blog sobre o contrato social: suas origens gregas, Platão, Hobbes e Rousseau. Agora vamos ao ponto de ruptura do contrato. Desde o advento do liberalismo econômico com Adam Smith que podemos ver a fragilidade imposta ao Estado para que esse não intervisse na economia. A chamada mão invisível smithiana nos coloca o preceito de que o mercado seria autorregulável e, portanto, não precisaria de nenhum tipo de intervenção.

Dessa forma, o Estado soberano deveria ser reduzido ao mínimo possível, como explica Smith:

De acordo com o sistema de liberdade natural, o soberano só tem três tarefas a atender; três tarefas de grande importância, de fato, mas simples e inteligíveis ao entendimento comum: primeiro, a tarefa de proteger a sociedade da violência e invasão de outras sociedades independentes; segundo, a tarefa de proteger, tanto quanto possível, todo membro da sociedade da injustiça ou opressão de qualquer outro de seus membros, ou a tarefa de estabelecer uma exata administração da justiça; e terceiro, a tarefa de erigir e manter certas obras públicas e instituições públicas que nunca seria do interesse de nenhum indivíduo, ou pequeno número de indivíduos, erigir e manter, porque o lucro nunca pagaria a despesa a qualquer indivíduo ou pequeno número de indivíduos, se bem que frequentemente façam mais do que compensar para uma grande sociedade. (Adam Smith. A Riqueza das Nações)

Isto quer dizer que o Estado deveria ser reduzido a três atribuições básicas:

1. Defesa – através da polícia e forças armadas.
2. Contratos – para o estabelecimento da justiça através dos contratos civis.
3. Administração – através do sistema público burocrático.

Com o surgimento do neoliberalismo no século XX, temos uma intensificação das regras do mercado sobre o poder político. Medidas de austeridade são a norma e o mercado financeiro ganha cada vez mais força. As empresas dominam o legislativo com seus lobistas e se aumentam as medidas econômicas que beneficiam o sistema bancário. O bem-estar social diminui e o Estado perde o domínio sobre as decisões socioeconômicas. A crise imposta ao Estado social pela lógica neoliberal não é recente e nem tem como causa o coronavírus. O desmonte estatal já vem sendo praticado há tempos pelos governos, de maneira, que vemos como grande um grande cinismo o recente editorial do Financial Times. O contrato social foi enfraquecido por um longo tempo e agora não será fácil recuperar o poderio estatal frente os ditames do mercado. Um novo contrato social precisa ser estabelecido para o bem da população. Esse deve ser um contrato cidadão, que respeite em primeiro lugar o povo e retire do mercado as decisões soberanas da nação. Como nos lembra Hobbes em seu Leviathan, o medo é um motivo legítimo para se estabelecer um contrato. O contrato social tem um novo inimigo, mas um velho medo, sendo este o medo da morte. É sobre esse afeto que devemos agora montar os arcabouços morais que irão assegurar à população o direito básico da vida.

(Luiz Maurício Bentim)

Referências

HOBBES, T. Leviathan, or, Matter, Form, and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. Edited by Nelle Fuller. Chicago: The University of Chicago; Encyclopaedia Britannica, 1952.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. (Ebook)

THE EDITORIAL BOARD. Virus lays bare the frailty of the social contract. Financial Times, 03 de abril de 2020. Disponível em: https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca. Acesso em: 12/04/2020.