Luiz Maurício B.R. Menezes
A teoria do contrato supõe uma
noção de natureza humana, entendida como um princípio de insegurança em que os
homens não estão livres de sofrerem os males da injustiça, e este princípio só
é resolvido pela instauração de um governo que tem seu poder legitimado no
contrato. Sua origem se encontra na sofística do séc. V a.C., que investigava
se a moralidade seria matéria da convenção (nómos)
ou da natureza (phýsis), o que
levanta questões sobre o indivíduo e a pólis.
Esta oposição entre a lei e a natureza foi reforçada pelos ensinamentos daquele
século (ROMILLY, p. 97; p. 111) no que se refere ao entendimento que se faz
sobre a natureza humana e as convenções da lei, o que aumentou a ocorrência da
terminologia empregada pela sofística para caracterizar uma crise da lei
(ROMILLY, p. 95). De acordo com Kerferd, a antítese nómos e phýsis
“sempre envolveu um reconhecimento da phýsis como uma fonte de valores
e, portanto, em si mesma, de alguma maneira prescritiva” (KERFERD, p. 194). No
período sofista o apelo não é para qualquer tipo de natureza, mas para a
natureza do homem, em vista das demandas que brotam da própria natureza reforçando
seu caráter prescritivo. Seguindo as teses de Charles Kahn, as teorias do
contrato foram primeiramente formuladas por volta da segunda metade do séc. V,
como uma variante das primeiras declarações sobre a origem da vida civilizada
em sociedade, fontes estas que apresentam uma teoria geral de como o cosmos, as coisas vivas e os seres
humanos originalmente vieram a existir (KAHN, p. 92). No entanto, os textos da
primeira metade do séc. V não falam claramente sobre um contrato ou acordo.
Neste ponto, o sofista Antifonte parece ter sido o precursor da questão,
argumentando que nómos e phýsis são opostos um ao outro, e que
seguir o que é determinado pelo nómos
entraria em conflito com a phýsis,
prejudicando, com isso, o indivíduo (CURD, p. 150), como podemos ver em seu
fragmento.
... Δικα[ιο]σύνη πάντα <τὰ> τῆς πό[λεω]ς
νόμιμα ἐν ᾗ ἂν πολι[τεύ]ηταί τις μὴ [παρ]αβαίνειν· χρῷτ' ἂν οὖν ἄνθρωπος
μάλιστα ἑαυτῷ ξυμφ[ε]ρόντως δικαιοσύνῃ εἰ μετὰ μὲν μαρτύρων τ[ο]ὺς νόμους
μεγά[λο]υς ἄγοι· μονούμενος δὲ μαρτύρων, τὰ τῆς φύσεως· τὰ μὲν γὰρ τῶν νόμων
[ἐπίθ]ετα, τὰ δὲ τῆς φύσεως ἀ[ναγ]καῖα· καὶ τὰ [μὲν] τῶν νό[μω]ν ὁμολογη[θέντ]α, οὐ φύν [τ' ἐστί]ν, τὰ
δὲ [τῆς φύσ]εως φύν[τα, οὐχ] ὁμολογητά· τὰ οὖν νόμιμα παραβαίνων, ᾖ
ἂν λάθῃ τοὺς ὁμολογήσαντας, καὶ
αἰσχύνης καὶ ζημίας ἀπήλλακται, μὴ λαθὼν δ' οὔ· τῶν δὲ τῇ φύσει ξυμφύτων ἐάν τι
παρὰ τὸ δυνατὸν βιάζηται, ἐάν τε πάντας ἀνθρώπους λάθῃ, οὐδὲν ἔλαττον κακόν,
ἐάν τε πάντες ἴδωσιν, οὐδὲν μεῖζον· οὐ γὰρ διὰ δόξαν βλάπτεται, ἀλλὰ δι'
ἀληθείαν. Ἔστι δὲ πάντων ἕνεκα τούτων ἡ σκέψις, ὅτι τὰ πολλὰ τῶν κατὰ νόμον δικαίων πολεμίως τῇ φύσ[ει] κεῖται· νενο[μο]θ[έ]τηται γὰρ [ἐ]πί τε τοῖς ὀφ[θ]αλμοῖς ἃ δεῖ αὐτο[ὺ]ς ὁρᾶν καὶ ἃ οὐ [δε]ῖ· καὶ επὶ τοῖς ὠσίν, ἃ δεῖ αὐτὰ ἀκούειν καὶ ἃ οὐ δεῖ· καὶ επὶ τῇ γλώττῃ, ἃ τε δεῖ αὐτὴν λέγειν καὶ ἃ οὐ δεῖ· καὶ επὶ ταῖς χερσίν, ἃ τε δεῖ αὐτὰς δρᾶν καὶ ἃ οὐ δεῖ· καὶ επὶ τοῖς ποσίν, ἐφ’ ἃ τε δεῖ· καὶ επὶ τῷ νόῳ ὧν τε δεῖ αύτὸν ἐπιθυμεῖν καὶ ὧν μή. οὐ μὲν οὖν οὐδὲν τῇ φύσει φιλιώτερα οὐδ’ οἰκειότε[ρα], ἄφ’ ὧν οἱ νόμοι ἀποτρέπουσι τοὺς ἀν[θ]ρώπ[ους], ἢ ἐφ’ ἃ προτρέπουσ[ιν]. τὸ δ’ αὖ ζῆν ἐστι τῆς φύσεως καὶ τὸ ἀποθανεῖν, καὶ τὸ μὲν ζῆν αὐτοῖς ἐστιν απὸ τῶν ξυμφερόντων, τὸ δὲ ἀποθανεῖν απὸ τῶν μὴ ξυμφερόντων. τὰ δὲ ξυνφερόντα τὰ μὲν ὑπὸ τῶν νόμων κείμενα δεσμὰ τῆς φύσεώς ἐστι, τὰ δ’ ὑπὸ τῆς φύσεως ἐλεύθερα. οὔκουν τὰ ἀλγύνοντα ὀρθῷ γε λόγῳ ὀνίνεσιν τὴν φύσιν μᾶλλον ἢ τὰ εὐφραίνοντα· οὔκουν ἂν οὐδὲ ξυμφέροντ’ εἴη τὰ λυποῦντα μᾶλλον ἢ τὰ ἥδοντα· τὰ γὰρ τῷ ἀληθεῖ ξυμφέροντα οὐ βλάπ[τ]ειν δεῖ, ἀλλ’ ὠφ[ε]λεῖν.
A justiça
consiste em não violar as leis da pólis constituída de cidadãos. Um homem
poderia empregar a justiça, sobretudo, para sua própria conveniência, se,
diante de testemunhas, aplicasse as leis em profusão, mas, na ausência de
testemunhas, seguisse as prescrições da natureza. Pois as prescrições das leis
são instituídas, enquanto as da natureza são necessárias; o acordo das leis não
é natural, ao passo que as prescrições da natureza são naturais, não acordadas.
Assim, quando alguém transgredir as leis, a vergonha e a punição não o
acometerão, se ele escapar aos olhos dos partícipes daquele acordo; mas não se
não estiver oculto. Mas se, contrário ao possível, alguém violasse alguma das
coisas que são próprias por natureza, o mal não será menor se ninguém
percebê-lo e nem maior se todos o observassem, pois não é prejudicado pela
aparência, mas pela verdade. Este é todo o propósito de se considerar estas
coisas que são justas por causa da lei de uma maneira e que são contrárias à
natureza; pois são dispostas por lei aos olhos as coisas que devem ver e as que
não devem; e aos ouvidos, as que devem ouvir e as que não devem; e à língua, as
que ela deve dizer e as que não deve; e às mãos, as que devem fazer e as que
não devem, e aos pés para onde devem ir e para onde não devem, e ao espírito,
as coisas que deve desejar e as que não deve. Com efeito, não são para a
natureza em nada mais afins nem mais próprias as coisas das quais as leis
dissuadem os homens do que aquelas dos quais persuade. Por outro lado, o viver
e o morrer são da natureza e, para eles, o viver é uma das coisas convenientes
e o morrer uma das não-convenientes. As coisas convenientes fixadas pelas leis,
por seu turno, são grilhões da natureza, as fixadas pela natureza, livres. De
fato, as coisas que produzem sofrimento, por uma correta razão, não são
proveitosas à natureza mais do que as agradáveis; não seriam, portanto, em nada
mais convenientes as coisas dolorosas do que as prazerosas. Pois as coisas
convenientes, segundo a verdade, não devem prejudicar, mas serem úteis.[ii]
Antifonte introduz a tese de que
a justiça é um acordo [ὁμολογηθέντα]
que regula os nómoi da pólis. A conveniência [ξυμφερόντως] consiste em seguir a lei quando se está
sendo observado, mas se for possível ficar oculto aos demais e escapar do
acordo, será conveniente que ele assim o faça, pois as prescrições da natureza
são prazerosas e necessárias [ἀναγκαῖα], ao passo que seguir as leis é penoso para o indivíduo. A noção de
acordo, utilizada por Antifonte através da palavra ὁμολογία, é
relacionada sempre com as leis, pois o acordo só é possível pelo
estabelecimento de leis entre os homens, sendo totalmente excluído da natureza
humana. Para Antifonte, a justiça repousa sobre um aparato legal, ele se recusa
a aceitar que a lei possui alguma raiz natural, pelo contrário, “o procedimento
legal viola a necessidade material em todos os sentidos” (HAVELOCK, p. 259). No
entanto, não pensamos que Antifonte está defendendo uma transgressão da lei por
princípio, mas que ele está demonstrando que o justo é garantido pela lei, e
que esta preserva a vida em comum dentro da pólis, apesar de que o seu
oposto, que é a própria natureza, é considerada vantajosa e deve ser seguida se
assim for possível, pois transmite prazer àquele que a pratica. O fato de ser
visto ou não e da maneira como se é visto faz toda a diferença dentro do
pensamento de Antifonte. A transgressão da lei não é um problema para o agente,
mas somente se este for visto em seu ato e esta acuidade de visão está ligada à
verdade [ἀληθείαν], pois, segundo
Antifonte, pela aparência [διὰ δόξαν] se é capaz de ocultar as transgressões da lei e impedir a
observância da mesma. A verdade é colocada como sendo a única capaz de trazer
prejuízo [βλάπτεται] ao agente
da ação, pois um mal [κακόν] pode ser por ele ocultado da percepção dos
demais através da dóxa. Mas nem tudo que é phýsis é conveniente
para Antifonte, pois a morte, por exemplo, é natural e é não-conveniente [μὴ ξυμφερόντων]. Por isso, ele irá estabelecer um outro critério,
de acordo com o qual certo e errado se identificam com utilidade e prejuízo.
É o que é útil[iii]
ao homem e a sua natureza que está sendo tratado como bem, e argumenta-se que
as provisões das leis e normas da sociedade não favorecem a natureza mas, ao
contrário, são grilhões e cadeias impostas a ela que impedem, em vez de
favorecer, a sua realização. Isso deixa aberta a questão de saber se,
excepcionalmente, algumas leis podem favorecer a natureza. (KERFERD, 198-9)
Saber,
em Antifonte, se as leis, em alguns momentos, podem favorecer a natureza é uma
questão ainda sem resposta, conforme Kerferd nos diz acima. Mas não podemos
deixar de pensar que é essa a questão que gira em torno das relações entre
justo e injusto. Muito do que é dito por Antifonte será empregado por Platão, como
iremos ver em uma postagem posterior. Queremos aqui apenas atentar para o fato
de que Antifonte ainda não usa a palavra συνθήκη que irá denominar o contrato no argumento de Platão, já que esta palavra, de acordo com
Kahn, só será usada pela primeira vez para caracterizar uma relação contratual
entre cidadãos no Criton de Platão[iv],
o que já pode ser um indício de que a noção de contrato já fosse
suficientemente familiar no início do séc. IV (KAHN, p. 94-95). Entendido isso,
passemos a próxima postagem.
BIBLIOGRAFIA
CURD, Patricia. Why
Democritus was not a skepic. In: PREUS, A. (org.). Before Plato. Albany: State University of New York Press, 2001, p.
149-69.
GRENFELL, B. P.; HUNT, A.
S. The Oxyrhynchus Papyri, v. XI. Edited with translated and notes by B.
P. Grenfell and B. P. Hunt. London: Oxford University Press, 1915.
HAVELOCK, E. A. The Liberal Temper in Greek Politics.
London: The Camelot Press, 1957.
KAHN, C. H. The Origins of
Social Contract Theory. Hermes, v. 44, p. 92-108, 1981.
KERFERD,
G. B. O Movimento Sofista. São Paulo: Edições Loyola,
2003.
MENEZES,
L.M.B.R. O Contrato de Gláucon. Transformação,
v. 40, n. 1, p. 235-252, 2017.
OSTWALD, M. Nomos and
the beginning of the Athenian Democracy, Oxford, 1969.
RIBEIRO,
L. F. B. Antifonte. Tradução de Luís Felipe Bellintani Ribeiro. São Paulo:
Edições Loyola, 2008.
ROMILLY, Jacqueline de. La Loi dans la Pensée Grecque. Paris: Les Belles Lettres, 2002.
[i] Trabalho originalmente publicado
em: MENEZES, L.M.B.R. O Contrato de Gláucon. Transformação, v. 40, n. 1, p. 235-252,
2017.
[ii] ANTIFONTE. Περὶ Ἀληθείας I. Oxyrh. Pap.
XI n. 1364, ed. Grenfell and Hunt, linhas 6-121. A nossa tradução é baseada na
tradução de Grenfell e Hunt. Também consultamos a tradução de Luís Felipe
Bellintani Ribeiro, Antifonte. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 72-5.
[iii] Trocamos aqui ‘benefício’
utilizado por Kerferd por ‘utilidade’ para que o termo entre de acordo com a
nossa tradução para a palavra grega ὠφελεῖν.
[iv] Principalmente em 52d2 (Ed.
Burnet), onde podemos perceber que logo após a palavra συνθήκη é
inserida a palavra ὁμολογία, sendo
uma semelhança com o fragmento citado de Antifonte, além de reforçar a ideia de
convenção.