sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Considerações sobre o Contrato Social II: Platão





No Livro II da República de Platão Gláucon pedirá que Sócrates defenda a justiça por si mesma e censure a injustiça, pois diz se sentir em aporía ao ouvir Trasímaco e milhares de outros [μυρίων ἄλλων] falarem que a vida do injusto é melhor do que a do justo, ao passo que falar a favor da justiça, como sendo superior a injustiça, ainda não ouviu ninguém falar, como é sua vontade.  Por isso, irá reafirmar seu desafio a Sócrates de ouvir o elogio da justiça αὐτὸ καθαὑτό[1]. No intuito de retomar Trasímaco, irá, dessa forma, dividir o seu discurso em três partes, que pretenderemos seguir em nosso trabalho:

πρῶτον μὲν ἐρῶ δικαιοσύνην οἷον εἶναί φασιν καὶ ὅθεν γεγονέναι, δεύτερον δὲ ὅτι πάντες αὐτὸ οἱ ἐπιτηδεύοντες ἄκοντες ἐπιτηδεύουσιν ὡς ἀναγκαῖον ἀλλοὐχ ὡς ἀγαθόν, τρίτον δὲ ὅτι εἰκότως αὐτὸ δρῶσι· πολὺ γὰρ ἀμείνων ἄρα τοῦ ἀδίκου τοῦ δικαίου βίος, ὡς λέγουσιν.
primeiro falarei o que dizem ser a justiça e sua origem, segundo que todos aqueles que a praticam, praticam por necessidade, mas não como um bem, terceiro  que naturalmente procedem assim, porquanto, afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor do que a do justo, no dizer deles. (Rep., 358c1-5)

No entanto, antes de iniciar sua exposição, Gláucon irá classificar o bem [ἀγαθόν] em três tipos diferentes (Rep., 357b4-d2):
(i) O primeiro tipo de bem é aquele que desejamos não por suas consequências [ἀποβαινόντων], mas por o estimarmos por si mesmo [αὐτὸ αὑτοῦ ἕνεκα], como o que é agradável [τὸ χαίρειν] e os prazeres inofensivos [αἱ ἡδοναὶ ὅσαι ἀβλαβεῖς], dos quais nada resulta depois no tempo senão o agrado de os possuirmos [μηδὲν εἰς τὸν ἔπειτα χρόνον διὰ ταύτας γίγνεται ἄλλο χαίρειν ἔχοντα].
(ii) O segundo tipo de bem é aquele que gostamos por ser agradável em si mesmo e pelas suas consequências, como a sensatez, a visão e a saúde [ αὐτό τε αὑτοῦ χάριν ἀγαπῶμεν καὶ τῶν ἀπ᾽ αὐτοῦ γιγνομένων, οἷον αὖ τὸ φρονεῖν καὶ τὸ ὁρᾶν καὶ τὸ ὑγιαίνειν].
(iii) O terceiro tipo de bem é do tipo penoso, mas útil, e não aceitaríamos a sua posse por amor a ele, mas sim devido às recompensas e a outras consequências que dele derivam [γὰρ ἐπίπονα φαῖμεν ἄν, ὠφελεῖν δὲ ἡμᾶς, καὶ αὐτὰ μὲν ἑαυτῶν ἕνεκα οὐκ ἂν δεξαίμεθα ἔχειν, τῶν δὲ μισθῶν τε χάριν καὶ τῶν ἄλλων ὅσα γίγνεται ἀπ᾽ αὐτῶν]. Como exemplos deste, temos a ginástica, o tratamento de doenças, a prática médica e outras maneiras de se obter dinheiro.
Sócrates irá colocar a justiça no segundo tipo de bem, enquanto Gláucon vai dizer que, de acordo com o parecer da maioria [δοκεῖ τοῖς πολλοῖς], não é esse o tipo no qual a justiça se encaixa, mas que pertence à espécie penosa [τοῦ ἐπιπόνου εἴδους], a que se pratica por causa das recompensas, da reputação e das aparências, mas que por si mesma se deve evitar, como sendo dificultosa. Sendo o problema dos bens o da relação entre ser em si e a aparência (dóxa), Gláucon continuará seu argumento por uma defesa da relação da justiça apenas com a aparência. Tomaremos esta divisão, por ele feita, por motivos de clareza, pois acreditamos que os argumentos se encadeiam e não podem ser entendidos por inteiro se forem separados.
Seu primeiro argumento (Rep., 358e2-359b5) tem o intuito de demonstrar a natureza da justiça, assim como sua origem, segundo o lógos dos polloí [ μὲν δὴ φύσις δικαιοσύνης ... καὶ ἐξ ὧν πέφυκε τοιαῦτα, ὡς λόγος] (Rep., 359b6-7). Será sobre isso que iremos tratar neste artigo no intuito de fundamentar as bases que consagram o argumento de Gláucon como sendo do tipo contratualista. Para isso, iremos nos utilizar de fontes clássicas e contemporâneas para fundamentar nossa hipótese.
Dizem os polloí que por natureza cometer injustiça é um bem, e sofrer injustiça um mal [πεφυκέναι γὰρ δή φασιν τὸ μὲν ἀδικεῖν ἀγαθόν, τὸ δὲ ἀδικεῖσθαι κακόν]. Logo no começo do argumento podemos notar uma primeira dificuldade, que nos impede de prosseguir. Que tipo de bem estaria Gláucon aqui se referindo? Depois, ele usa o termo kakón (mal) por oposição à agathón (bem). Que tipo de relação este novo termo estabelece com a classificação dos bens? Se tomarmos o ato de se cometer injustiça como um bem de primeiro tipo, teríamos que admitir que o próprio ato transmite prazer ao ser feito. Mas, se interpretarmos desta maneira, tal ato injusto estaria ligado à perversidade, gerando prazer em se praticar injustiças apenas pelo ato em si, o que não parece ser o caso, já que a aquisição de algo posterior ao ato está em vista ao se praticar injustiça. Ao analisarmos a classificação dos bens, poderemos concluir que o bem de terceiro tipo é aquele que se pratica por causa da aparência (dóxa), se este assim a tiver, e em vista das recompensas e/ou da reputação, mas que por si mesmo se deve evitar, como sendo dificultoso. Normalmente assume-se que a injustiça possui uma aparência, e esta é ruim[2]. No entanto, a aparência de injustiça só será julgada ruim depois da formação das leis e do nascimento da justiça, pois serão estas que darão as penas daquela. Na natureza, o homem que age pela injustiça não age pela dóxa, mas por considerar a injustiça útil para atingir os bens que tem em vista. É nesse sentido que Trasímaco parece colocar a injustiça como qualquer coisa de proveitoso e conveniente a si próprio [τὸ δἄδικον ἑαυτῷ λυσιτελοῦν τε καὶ συμφέρον] (Rep., 344c). Entretanto, apesar de lhe ser útil agir desta forma, é também penoso, pois é trabalhoso conseguir seu objetivo. Pensando assim, colocaríamos o ato de cometer injustiça como, por natureza, um bem de terceiro tipo, sendo por si mesmo penosa para se praticar, mas útil, pois permite que se consiga as recompensas que tem em vista.
Quanto ao termo kakón, podemos justificar seu uso referente à pena sofrida pelo paciente da ação de se sofrer injustiça, que nada mais é do que algo prejudicial e não útil, por oposição a qualquer um dos bens. Dessa forma, o que se chama de mal aqui não é escolhido em hipótese alguma, não sendo desejado pelos homens.
Sofrer injustiça ultrapassa como um mal maior o bem que há em cometer injustiça [πλέονι δὲ κακῷ ὑπερβάλλειν τὸ ἀδικεῖσθαι ἀγαθῷ τὸ ἀδικεῖν] (Rep., 358e5-6). Pois, para um homem, não há prazer suficiente em se cometer injustiça que seja melhor do que o desprazer que há em sofrer algum tipo de injustiça. Depois que os homens cometem e sofrem injustiças uns com os outros, e ambas são experimentadas, parece vantajoso aos menos capazes de evitar uma e alcançar outra estabelecerem um contrato mútuo para não cometerem nem sofrerem injustiças [ὥστἐπειδὰν ἀλλήλου ἀδικῶσί τε καὶ άδικῶνται καὶ ἀμφοτέρων γεύωνται, τοῖς μὴ δυναμένοις τὸ μὲν ἐκφεύγειν τὸ δὲ αἱρεῖν δοκεῖ λυσιτελεῖν συνθέσθαι ἀλλήλοις μήτἀδικεῖν μήτἀδικεῖσθαι] (Rep., 358e6-359a2). Aqui podemos notar que há um cálculo feito por estes homens que os permite medir o que vale mais a pena. Como os homens não conseguiam apenas o prazer de cometer injustiças e nem conseguiam evitar o desprazer de se sofrer injustiças, e percebendo que este era muito pior do que o bem que aquele proporcionava, fez com que eles optassem pelo contrato para se evitar sofrerem injustiça, mesmo que também não pudessem, com isso, continuar a cometer injustiça.
A partir do contrato se formariam leis, assim como a designação do que é legal e justo [νόμιμόν τε καὶ δίκαιον] (Rep., 359a4). Esta seria a gênese e a essência da justiça, sendo intermediária entre o melhor ser, não pagar a pena das injustiças cometidas, e o pior, ser incapaz de se vingar de uma injustiça sofrida [καὶ εἶναι δὴ ταύτην γένεσίν τε καὶ οὐσίαν δικαιοσύνης, μεταξὺ οὖσαν τοῦ μὲν ἀρίστου ὄντος, ἐὰν ἀδικῶν μὴ διδῷ δίκην, τοῦ δὲ κακίστου, ἐὰν ἀδικούμενος τιμωρεῖσθαι ἀδύνατος ᾖ] (Rep., 359a4-7). Nesta parte podemos perceber que Gláucon atinge o primeiro propósito de seu argumento, que é demonstrar qual é a gênese da justiça. Por uma espécie de medida, os homens conseguiram pesar o que valia mais a pena e acabaram optando por um intermediário que os poupasse das agruras da injustiça. Será a partir desta formação que poderemos supor a distinção entre justo e injusto e de suas respectivas aparências. Com a determinação das leis e o surgimento da justiça, a injustiça torna-se além de penosa também prejudicial, já que cometer injustiça implica agora em uma punição da lei.
Estando a justiça no meio de ambos, não é desejada como um bem, mas honra-se na debilidade de se cometer injustiça [τὸ δὲ δίκαιον ἐν μέσῳ ὂν τούτων ἀμφοτέρων ἀγαπᾶσθαι οὐχ ὡς ἀγαθόν, ἀλλὡς ἀρρωστίᾳ τοῦ ἀδικεῖν τιμώμενον] (Rep., 359a7-b2). Aqui, pela segunda vez, Gláucon, assumindo a voz dos polloí, afirma que a justiça não é um bem [οὐχ ὡς ἀγαθόν][3]. A passagem parece contrastar com a passagem 358a4-6, onde os polloí incluem a justiça no terceiro tipo de bem. Tal diferença faria com que ou a justiça, na visão dos polloí, não fizesse parte de nenhum tipo de bem, ou com que o terceiro tipo não fosse considerado por eles um bem. Qualquer uma das suposições poria em risco a tripartição dos bens. Para resolver o problema temos que analisar o uso dos termos junto ao contexto. Primeiramente, não nos parece que Gláucon está colocando a justiça como sendo um mal do mesmo modo que sofrer injustiça é, mas que a justiça não é vista pelos polloí como um bem, apesar de ser em si mesma um tipo de bem, o que, por si só, já difere de um mal. Depois, se tomarmos o que nos fala a classificação dos bens unicamente para cada tipo em si mesmo, veremos que o primeiro tipo de bem se refere às coisas que em si mesmas nos são bem-vindas [αὐτὸ αὑτοῦ ἕνεκα ἀσπαζόμενοι]; o segundo tipo de bem se refere às coisas que em si mesmas nós desejamos [ αὐτό τε αὑτοῦ χάριν ἀγαπῶμεν]; e o terceiro tipo de bem fala das coisas que em si mesmas não aceitamos ou não escolhemos ter [αὐτὰ μὲν ἑαυτῶν ἕνεκα οὐκ ἂν δεξαίμεθα ἔχειν], pois são penosas, embora úteis [γὰρ ἐπίπονα φαῖμεν ἄν, ὠφελεῖν δὲ ἡμᾶς]. Entendendo o que é um bem em si mesmo em cada um dos tipos, retomemos o que Gláucon fala da justiça dentro de seu argumento. Ele diz que a justiça encontra-se entre o melhor (áriston), que seria cometer injustiça sem ter que pagar por isso, e o pior (kákiston), que seria sofrer uma injustiça sem poder se vingar disto, dando a entender que a justiça tem utilidade, embora em si mesma não seja desejada como um bem [ἀγαπᾶσθαι οὐχ ὡς ἀγαθόν]. Queremos reforçar aqui o sentido de meio termo da justiça, pois, ao ser colocada numa posição central, permite medir e pesar as ações dos homens dando-lhes o que lhes é devido. Entendemos, dessa forma, que o que Gláucon quer dizer em seu argumento é que a justiça não é um bem de primeiro tipo, pois em si mesma não é agradável, nem bem-vinda, e pelo mesmo motivo não pode ser colocada no segundo tipo, no entanto, mesmo não sendo escolhida por si mesma por ser penosa, a justiça tem sua utilidade, pois evita que injustiças sejam cometidas e sofridas, o que faz dela uma necessidade entre os homens. Sendo, assim, a justiça se encontraria no terceiro tipo de bem.
Contudo, continuará Gláucon em seu argumento, dizem que aquele que for capaz de fazer injustiças, e que seja um verdadeiro homem, não aceitaria o contrato de não cometer nem sofrer injustiças; pois seria loucura [ἐπεὶ τὸν δυνάμενον αὐτὸ ποιεῖν καὶ ὡς ἀληθῶς ἄνδρα οὐδἂν ἑνί ποτε συνθέσθαι τὸ μήτε ἀδικεῖν μήτε ἀδικεῖσθαι· μαίνεσθαι γὰρ ἄν] (Rep., 359b2-5).
Nesta exposição que fizemos, fica clara a oposição entre dynámenos e mè dynámenos. O dynámenos é aquele capaz de romper com o contrato sem sofrer consequências negativas por isto. Mas a pergunta que nos fica é que homem, por mais forte que ele seja, é capaz de romper com o contrato? Para melhor esclarecer detalhes do argumento, levantaremos aqui algumas hipóteses.
Se supuséssemos que as pessoas vivessem numa pólis antes do contrato, teríamos que aceitar que a pólis não teria nenhum tipo de acordo ou contrato, sendo, desta forma, a injustiça livre entre os homens, o que faz tudo ser permitido. A pólis é o que une os homens de maneira permanente, do contrário, não viveriam nesta juntos. Mas, dentro desta, todos cometem injustiças uns com os outros. Cometer injustiça é um bem, mas sofrer injustiça um mal, e tudo que lhes faz mal os homens querem afastar de si. Supondo que X, Y e Z são homens que vivem nesta pólis, tomemos que X comete injustiça com Y; Y comete injustiça com Z; Z comete injustiça com X, teremos decorrente disto que Y se afasta de X; Z se afasta de Y; X se afasta de Z. Isso pode ser repetido entre os demais elementos do conjunto de forma aleatória. Se sofrer injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometer injustiça, os homens acabam ficando afastados uns dos outros. Assim podemos concluir que não há nada na pólis capaz de unir os homens que seja mais forte do que o poder de afastamento que há em se sofrer injustiça. Logo, os homens irão se afastar uns dos outros e não viverão numa pólis, já que o motivo desta existir é unir os homens de alguma forma. Mesmo que pudéssemos considerar a vingança ao invés do afastamento, isso não seria suficiente para supor uma pólis antes do contrato. Portanto, as pessoas não vivem numa pólis antes do contrato. Seguindo esta linha de pensamento, os homens, anteriormente ao contrato, nada têm no mundo que os una de forma permanente. Ao se encontrarem, os homens cometem, assim como sofrem, injustiças uns com os outros, mas sofrer injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometer injustiça, não sendo esta capaz de criar concórdia entre os homens, como bem nos lembra Sócrates em seu diálogo com Trasímaco no Livro I:

δοκεῖς ἂν πόλιν στρατόπεδον λῃστὰς κλέπτας ἄλλο τι ἔθνος, ὅσα κοινῇ ἐπί τι ἔρχεται ἀδίκως, πρᾶξαι ἄν τι δύνασθαι, εἰ ἀδικοῖεν ἀλλήλους;
Οὐ δῆτα, δὅς.
Τί δ’ εἰ μὴ ἀδικοῖεν; οὐ μᾶλλον;
Πάνυ γε.
Στάσεις γάρ που, ὦ Θρασύμαχε, ἥ γε ἀδικία καὶ μίση καὶ μάχας ἐν ἀλλήλοις παρέχει, ἡ  δὲ δικαιοσύνη ὁμόνοιαν καὶ φιλίαν. ἦ γάρ;
Ἔστω, ἦ δ’ ὅς, ἵνα σοι μὴ διαφέρωμαι.
Ἀλλ’ εὖ γε σὺ ποιῶν, ὦ ἄριστε. τόδε δέ μοι λέγε· ἆρα εἰ τοῦτο ἔργον ἀδικίας, μῖσος ἐμποιεῖν ὅπου ἂν ἐνῇ, οὐ καὶ ἐν ἐλευθέροις τε καὶ δούλοις ἐγγιγνομένη μισεῖν ποιήσει ἀλλήλους καὶ στασιάζειν καὶ ἀδυνάτους εἶναι κοινῇ μετ’ ἀλλήλων πράττειν;
Πάνυ γε.
- [...] parece-te que uma pólis ou um exército, piratas, ladrões ou qualquer outra classe, poderiam executar o plano injusto que empreenderam em comum, se não observassem a justiça uns com os outros?
- Certamente que não – respondeu.
- E se a observassem? Não seria melhor?
- Absolutamente.
- Decerto, Trasímaco, é porque a injustiça produz nuns e noutros as revoltas, os ódios, as contendas; ao passo que a justiça gera a concórdia e a amizade. Não é assim?
- Seja – respondeu –, só para não discutir contigo.
- Fazes bem, meu excelente amigo. Mas diz-me o seguinte: se, portanto, é este o resultado da injustiça – causar o ódio onde quer que surja – quando ela se formar entre homens livres e escravos, não fará também com que se odeiem uns aos outros, com que se revoltem e fiquem incapazes de empreender qualquer coisa em comum?
- Precisamente. (Rep., 351c7-e3)

Trasímaco julga que a injustiça por sua própria força despótica pode tomar todos os bens que deseja e fazer seu possuidor feliz. No entanto, Sócrates demonstra que se o érgon da injustiça é causar o ódio onde quer que surja, fazendo com que aqueles que a possuem fiquem incapazes de empreender qualquer coisa em comum [ἀδυνάτους εἶναι κοινῇ μετἀλλήλων πράττειν] (Rep., 351d-e), então a injustiça não pode ser boa para aquele que a possui. Se considerarmos somente a injustiça entre os homens, estes viveriam em lutas e desavenças, sem nunca chegarem a um acordo. Tal efeito impossibilita qualquer tentativa de se estabelecer uma pólis. O que Gláucon pretende é retomar Trasímaco seguindo outro caminho, já que o apresentado por este foi refutado por Sócrates. Irá, pois, supor uma natureza humana que busca cometer injustiça como um bem por oposição à formação da lei e da justiça, que são a medida encontrada para evitar que o homem cometa injustiça, o que faz com que estas se originem junto ao contrato, nascendo, assim, a pólis. Logo, Gláucon narra a gênese da justiça como a gênese da pólis e menospreza sua ação sobre a alma.
Segundo Romilly, a lei era entre os gregos o suporte e a garantia de toda sua vida política (ROMILLY, p. 1). Para explicar isso, ela irá traçar o caminho conceitual desenvolvido pelos gregos para se chegar ao que eles entendiam por lei. Com a organização das cidades no séc. VIII a.C. e o progressivo desaparecimento das monarquias na Grécia, os direitos e as funções de cada um, em nome de um interesse comum, começam a se fixar e, assim, “quando a lei surgiu, de uma forma ou de outra, os cidadãos tiveram acesso a vida política” (ROMILLY, p. 10-11). Mas será na Atenas democrática, que a lei se destacará e se tornará célebre.

Com a aparição da democracia, a lei teve em Atenas o sentido que destacaria sua originalidade no pensamento grego. Melhor que qualquer princípio geral fixado em nome de uma revelação divina, melhor que as simples regras práticas que regulam a punição de certos crimes, as leis, no regime democrático, definiam, com o acordo de todos, os diversos aspectos da vida comum; e sua autoridade devia, assim, substituir a toda soberania de um indivíduo ou de um grupo, sentida como um insulto. (ROMILLY, p. 12-13)

Será na Atenas clássica, que surge das reformas de Clistenes, que a lei, fundamento e expressão da democracia, se torna lei política, se torna nómos (ROMILLY, p. 13). De acordo com Romilly, “a palavra nómos, que designa a lei em grego, somente se aplicaria ao domínio político a partir desta época” (ROMILLY, p. 13). Para isso, ela se baseia na tradição, que utiliza a palavra para múltiplos sentidos, mas não usa no sentido político (ROMILLY, p. 13-14). A palavra anterior utilizada para denominar lei era thesmós, que é relativa à thémis, que designa a justiça sobre seu aspecto primitivo e divino (ROMILLY, nota 6, p. 14), e que foi progressivamente sendo substituída por nómos. Sólon mesmo parece se utilizar de thesmoí para falar das leis da cidade e não parece empregar o nómos no sentido de lei de uma cidade (ROMILLY, 14-15). Como a palavra thesmós desaparece na mesma época, Romilly se sente autorizar a pensar que o surgimento do nómos como lei política está ligado com o advento da democracia, e irá se apoiar na obra de Ostwald para dizer que a palavra nómos, junto com a palavra isonomía, teria sido trazida para a vida política ateniense por Clistenes, em 506-507 (ROMILLY, p. 17). A lei, assim associada, será símbolo da oposição do ideal democrático contra a tirania, e também do ideal de uma vida política contra os bárbaros[4]. Se entendermos o nómos nestes termos, teremos que pensar, ao que parece, o surgimento da pólis narrada por Gláucon como o surgimento de uma pólis democrática, que teria leis comuns que garantiriam uma justiça igualitária para todos. No entanto, Gláucon parece entender o contrato de outra maneira, mais perspicaz em seu modo de pensar, que resultaria exatamente no contrário da defesa comum que se faz da lei como garantia da liberdade por oposição à tirania, conforme poderemos ver no decorrer deste trabalho.
 Muito do que foi dito pelo sofista Antifonte, é por Gláucon empregado, mas em seu argumento, ele coloca o ato de se cometer injustiça como um bem que é naturalmente desejado pelo homem, e a justiça é, por oposição, determinada pelas leis impostas pelo contrato. Antes de darmos seguimento a análise disso em nosso trabalho, queremos atentar para o fato de que Antifonte ainda não usa a palavra συνθήκη que irá denominar o contrato no argumento de Gláucon, já que esta palavra, de acordo com Kahn, só será usada pela primeira vez para caracterizar uma relação contratual entre cidadãos no Criton de Platão[7], o que já pode ser um indício de que a noção de contrato já fosse suficientemente familiar no início do séc. IV (KAHN, p. 94-95).
Mas uma referência a uma primeira noção de natureza humana e estabelecimento de uma pólis atrelada ao contrato irá aparecer somente com o discurso proferido por Gláucon no Livro II da República. Nele podemos perceber que o homem, de maneira geral, é mè dynámenos e não pode, nesse momento pré-contratual, evitar sofrer injustiça de algum modo. Parece-nos mais provável, e coerente com o argumento de Gláucon, que todos os homens são suscetíveis a sofrerem injustiças. Antes do contrato a fragilidade está nos próprios homens, incapazes de cometerem injustiça sem que sofram também com elas. Após a formação do contrato, o risco está num tipo específico: o dynámenos, pois é este, e somente este, que consegue recusar o contrato, por ter força suficiente para continuar a fazer injustiças sem ser punido por isto. Se tomarmos o sentido de δύναμις com sendo um princípio de ação que tem como consequência imediata a produção de um érgon (AUGUSTO, p. 32-33), poderemos entender que dynámenos, de acordo com o contexto estabelecido por Gláucon, é todo aquele que consegue, mesmo que por uma só vez, cometer injustiça. Feito isto, temos ainda duas observações a serem ditas.
Primeiramente, é dito por Gláucon que todos os homens experimentam tanto cometer como sofrer injustiças, o que nos parece mais do que suficiente para entender que nenhum homem pode ser sempre dynámenos, pois não há homem, por mais forte que seja, capaz de cometer injustiça, numa situação pré-contratual, que não seja também alvo da injustiça. Seguindo essa linha de pensamento, poderíamos considerar que os homens podem ser ora dynámenoi, ora mè dynámenoi, ou seja, conseguem algumas vezes cometer injustiça e outras não, sofrendo desta também. Dessa forma, não existiria dynámenos de maneira duradoura, mas somente circunstancial.
Para esclarecer o segundo motivo, vamos supor que entre os homens um deles fosse maior em dýnamis do que os outros, e que este, com sua força, conseguisse cometer injustiça livremente sem sofrer desta. Se os homens, ao criarem o contrato para evitar sofrerem injustiças, conseguissem também evitar que esse homem atuasse injustamente, então ele não seria, estritamente falando, sempre dynámenos; caso contrário, se ele continuasse a cometer injustiça sem ser punido pelo contrato que instituiu a justiça, então o contrato seria inútil em seu fim, porque a injustiça continuaria a ser cometida por ele. Dessa maneira, ou o dynámenos se demonstra como insuficiente para não aceitar o contrato, ou o contrato se demonstra insuficiente para evitar que injustiças sejam cometidas e sofridas. O verdadeiro dynámenos é aquele que pode burlar o contrato, não o aceitando de forma alguma, pois a ele este não pode afetar. Mas um homem assim, que fosse sempre dynámenos em suas ações não pode existir antes do contrato, pois a formação deste em nada evitaria a ação daquele. Por isso, a hipótese da existência do dynámenos contínuo, aquele que nunca falha em suas ações injustas e também não é afetado pela injustiça, antes do contrato não nos parece consistente com a razão do contrato existir, isto é, evitar injustiças. Poder-se-ia ainda levantar a hipótese de que o contrato só foi instituído para evitar a injustiça entre os mè dynámenoi, mas isto só levaria à conclusão de que o contrato já nasce fraco por princípio, e não parece este, a nosso ver, uma boa noção contratual. O contrato surge porque é mais forte do que qualquer homem, pois, através da instituição das leis e da justiça, é capaz de evitar que homens cometam e sofram injustiças uns com os outros. Por outro lado, é justamente depois de consumada tal estrutura contratual que o verdadeiro homem [ὡς ἀληθῶς ἄνδρα] (Rep., 359b3) aparece como sendo alguém capaz de burlar tal estrutura, pois, para se consagrar como aquele que sempre consegue cometer a injustiça sem ser alvo da mesma precisa do contrato. Sendo assim, o contrato é uma força dúbia que tanto impede os homens de cometerem e sofrerem injustiça, como também permite ao verdadeiro dynámenos cometer injustiça, porque é o contrato, através da sua força, que permite a impunidade daquele. Poderemos, dessa forma, distinguir terminologicamente o dynámenos, aquele que consegue por vezes cometer uma ação injusta, do verdadeiro dynámenos, que é aquele que sempre consegue cometer uma ação injusta através do uso do contrato a seu favor. E esse caminho só será possível para aquele que de alguma forma consiga se assenhorear do governo e usar o contrato a seu favor. Será esse caminho que Gláucon parece expor com seu argumento.

REFERÊNCIAS

AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. O Visível e o Invisível nos Argumentos do Livro 2 da República. Textos de Cultura Clássica, n. 19, p. 19-42, 1996.

CURD, Patricia. Why Democritus was not a skepic. In: PREUS, A. (org.). Before Plato. Albany: State University of New York Press, 2001, p. 149-69.

GRENFELL, B. P.; HUNT, A. S. The Oxyrhynchus Papyri, v. XI. Edited with translated and notes by B. P. Grenfell and B. P. Hunt. London: Oxford University Press, 1915.

HAVELOCK, E. A. The Liberal Temper in Greek Politics. London: The Camelot Press, 1957.

KAHN, C. H. The Origins of Social Contract Theory. Hermes, v. 44, p. 92-108, 1981.

KERFERD, G. B. O Movimento Sofista. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

OSTWALD, M. Nomos and the beginning of the Athenian Democracy, Oxford, 1969.

PEREIRA, M. H. R. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

RIBEIRO, L. F. B. Antifonte. Tradução de Luís Felipe Bellintani Ribeiro. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

ROMILLY, Jacqueline de. La Loi dans la Pensée Grecque. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

SLINGS, S. R. Platonis Rempvblicam, recognovit brevique adnotatione critica instrvxit: S. R. Slings. Oxford: Oxford University Press, 2003.




Trabalho originalmente publicado em: MENEZES, L.M.B.R. O Contrato de Gláucon. Transformação, v. 40, n. 1, p. 235-252, 2017.
[1] PLATÃO, República, 358d. Utilizamos aqui a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta tradução como base para nosso trabalho. Demais referências à ‘República’ serão abreviadas por Rep. indicando-se em seguida a numeração. Para o original grego, utilizaremos o texto estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003). Todas as modificações na tradução são nossas.
[2] Os exemplos de punição devido a dóxa da injustiça podem ser vistos nas passagens 361e-362a; e 363d-e, onde se fala em κακὰ δόξα com relação à injustiça.
[3] Na passagem 358c3-4 é afirmado que a justiça é necessária, mas não é um bem [ὡς ἀναγκαῖον ἀλλοὐχ ὡς ἀγαθόν].
[4] Ibid., p. 18.
[5] ANTIFONTE. Περὶ Ἀληθείας I. Oxyrh. Pap. XI n. 1364, ed. Grenfell and Hunt, linhas 6-121. A nossa tradução é baseada na tradução de Grenfell e Hunt. Também consultamos a tradução de Luís Felipe Bellintani Ribeiro, Antifonte. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 72-5.
[6] Trocamos aqui ‘benefício’ utilizado por Kerferd por ‘utilidade’ para que o termo entre de acordo com a nossa tradução para a palavra grega ὠφελεῖν.
[7] Principalmente em 52d2 (Ed. Burnet), onde podemos perceber que logo após a palavra συνθήκη é inserida a palavra ὁμολογία, sendo uma semelhança com o fragmento citado de Antifonte, além de reforçar a ideia de convenção.