sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

A Impossível Genealogia do Coringa (III)



A Impossível Genealogia do Coringa (III)

Em nossa primeira parte sobre o Coringa, afirmamos que o filme se caracteriza por uma tentativa causal de construção do personagem. Na segunda parte, trabalhamos a construção do personagem e a possível dicotomia existente no filme. Em nossa terceira parte, iremos confrontar as duas partes anteriores na tentativa de oferecer uma interpretação mais ousada para o Coringa. Por isso, recomendamos a leitura dessas partes antes de prosseguir com a leitura.
   Iniciaremos nosso texto com uma citação do personagem no filme: "Durante toda a minha vida eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo. E as pessoas estão começando a perceber". O personagem do Coringa investiga aqui a sua própria existência, um dos motes da modernidade iniciada com a frase de Descartes: eu penso, logo existo (ego cogito, ergo sum). A certeza do próprio ato de pensar como sendo a garantia da própria existência. Ao colocar em xeque a sua existência, o Coringa questiona o processo pelo qual o mundo moderno se constitui a partir do sujeito pensante. Questiona o processo pelo qual o mundo é interpretado pelo pensar, colocando em dúvida a cadeia causal que comprova a sua existência a partir do próprio pensamento. O Coringa, dessa forma, foge à lógica causal genealógica quando percebe em si mesmo o reflexo caótico do mundo que o cerca.
Consideramos que o Coringa é um personagem absurdo. E como um personagem absurdo, o Coringa é inexplicável e, portanto, a genealogia do Coringa é impossível de ser feita. Mas em que consiste um personagem absurdo? Pensem nos personagens de Kafka e sua falta sentido, motivo, razão e causa; existem como personagens absurdos, na realidade, sem qualquer explicação. Podemos pegar qualquer obra dele como exemplo e iremos encontrar personagens e/ou situações absurdas. Gregor Samsa em A Metamorfose, é um bom exemplo. Num dado dia, acordou como um inseto. Não se questionou o motivo e a obra não tentou nos explicar o porquê. Simplesmente ele deixou de ser humano e agora deve viver como um inseto. Da mesma maneira, entendemos que o Coringa não precisa de explicação. Assim como um personagem absurdo kafkiano, a absurdidade do Coringa é um fim em si mesmo e rompe com toda a relação causal com o mundo ao seu redor.
Em “O mito de Sísifo”, Camus invoca o que ele chama de “sentimento do absurdo”. Tal sentimento seria do homem que se espanta perante o mundo pela sua total falta de significado. A razão é o limite para toda experimentação do mundo e nada poderia se explicar além disso. Dessa forma, dentro do âmbito da própria razão o mundo se torna algo inexplicável e o homem deslocado nesse mundo. O homem capaz de fazer isso, de ter essa consciência de si e do mundo é o homem absurdo. O mundo não tem qualquer sentido e tentar significá-lo é ir para além dos limites da razão. Até mesmo o suicídio seria uma forma de dar explicação ao mundo cessando com a própria vida. Desse modo se encontraria o termo para a vida e uma finalidade para sua ação. Entretanto, não é esse o caminho que Camus nos propõe em sua obra, mas a vida, pois é preciso manter o sentimento absurdo perante o mundo:

viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de tudo, encará-lo. Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre quando alguém se desvia dele. Assim, uma das únicas posições filosóficas coerentes é a revolta. Ela é um confronto permanente do homem com sua própria obscuridade. É exigência de uma impossível transparência. E, a cada segundo, questiona o mundo de novo.

A tarefa do homem absurdo não é menos absurda que qualquer outra existência. No entanto, o homem absurdo é aquele que tem consciência da sua própria condição no mundo e da ausência de significado em suas ações. Ele vive, portanto, sua plena liberdade no agora, aproveitando ao máximo a sua existência que se faz no tempo. Para Camus, não há qualquer sentido antes ou depois da morte, mas é por isso mesmo que se deve viver. Viver é fazer viver o absurdo. Pouco importa um sentido. Isso está para além de todo possível e não passa de uma fuga em um algo que não podemos significar. Está fora dos limites da razão e não é esse o caminho proposto para o homem absurdo. Eis a importância da revolta. A revolta é quando o homem se mantém em conflito com o próprio desejo que há em ceder ao impulso de fazer um salto e sair dos limites da experiência em busca de algo além à própria razão, dando sentido para o que não há, significando o que a razão não pode significar. Como nos diz Camus: “o absurdo me esclarece sobre esse ponto: não há o dia de amanhã. Eis, daqui em diante, a razão da minha liberdade profunda”. Assim como não há o dia de amanhã e se deve viver o agora, também não há o além e, por isso, se deve viver dentro dos limites do possível sem especular sobre algo que não podemos vivenciar no mundo, pois este foi feito para ser experimentado e não significado: o eu que narra a si mesmo faz da revolta a ação máxima da sua própria existência. É apoiado nesse argumento que entendemos que o personagem do filme se liberta de seu papel paciente e vitimizado na figura de Arthur Fleck, para na revolta encontrar o papel de agente, isto é, o Coringa.
   Em nossa primeira parte, dissemos que o Coringa poderia ser interpretado como um "símbolo revolucionário e representante máximo da luta de classes", entretanto, também dissemos que essa era uma visão simplista demais e que pretendíamos ampliar a nossa análise nas demais partes. Gostaríamos agora de ter um olhar mais acurado para o movimento dos palhaços. A condição de revolta é o que move os homens inspirados no símbolo do palhaço. É o momento em que eles se veem levados à ação e se rebelam contra a opressão do sistema. No entanto, o movimento em si não pode se caracterizar em uma luta de classes e o Coringa, muito menos, pode ser tomado como um líder. O ódio ao rico nada mais é do que um movimento pelo ter. A ideologia burguesa é o que está por trás do movimento dos palhaços, estimulando a vontade de ter as coisas que não se têm. Não há conscientização de classe, o que é fundamental para caracterizar a luta de classes. Há uma desordem direcionada para o consumo apenas, uma permanência no âmbito neoliberal e capitalista, o que anula todo o processo de mudança. 
O humano é este ser perdido diante da própria existência, sem nada que o possa apontar um transcendente possível, além de uma crença infundada nos fatos. É dessa forma que entendemos o personagem do Coringa, como um homem absurdo que busca a sua existência no limite de toda a razão. Alguém que abandonou todas as suas crenças para se tornar o palhaço que espelha o mundo tal qual ele se apresenta levando-nos a encarar a realidade dura e crua através da sua imagem. Foi pensando nisso, que deixamos para o fim a questão da razão e de seu contraponto, a loucura. A loucura do Coringa é tão sem propósito como o próprio mundo que nos cerca. O louco se faz falar através do Coringa, ganha discurso e poder através da sua ação violenta. Mas ele não se resume a essa violência, a sua ação vem acabar com os alicerces que sustentam a própria lógica do mundo e toda a capacidade de interpretá-lo. Gostaríamos aqui de fazer um paralelo com um pequeno conto de Tchekhov. Em sua obra “Enfermaria N°6”, Tchekhov retrata um ambiente sombrio e sufocante de um hospital para loucos. A cena do conto foca a relação entre médicos e doentes, dando voz à loucura ao abafar o sentido da razão. Ouçamos um desses personagens ao falar da vida:

A vida é um engano nojento. Quando o homem que pensa alcança a maturidade e está consciente dos seus atos, sente-se sem querer envolvido numa armadilha sem saída. Com efeito, contra sua vontade, em virtude de diversos acontecimentos fortuitos, foi arrancado do não ser para a vida... Para quê! Quer saber o sentido e o fim da sua existência e não lhe dizem nada ou é estúpido o que lhe dizem. Chama e não lhe abrem. A morte vem, também contra sua vontade. E da mesma maneira que na prisão os homens ligados por um infortúnio comum sentem um alívio quando se reúnem, também na vida uma pessoa não evita as ciladas quando os homens inclinados para as análises e generalizações se juntam e passam o tempo trocando ideias orgulhosas e livres. - Neste sentido, a inteligência é um prazer insubstituível.

A Enfermaria N°6 é uma metáfora daquilo que não se permite ver ou ouvir em sociedade, pois a sociedade, através de seus subterfúgios, oculta a opressão que sufoca vagarosamente as vozes dissonantes. Os loucos são aqueles que veem um mundo diferente e o vivem tal qual eles o veem, sem se dar ao trabalho de interpretá-lo. Pois a interpretação é obra da razão e os loucos são aqueles que são capazes de perceber a hipocrisia doente que constitui a própria sociedade em que vivem. Um hospital para loucos é o avesso do que se quer ver na ordem social, ocultando nos subsolos aqueles que não se adaptam às regras socialmente impostas. Assim é a Enfermaria N°6 retratada por Tchekhov, assim é o Asilo Arkham de Gotham City. É para esses lugares que vão loucos e criminosos, seres à margem da sociedade e que são vistos como deturpadores da ordem social, da lógica econômica e da razão crítica que direciona o mundo. Nesse ponto, para que o diferente se faça ouvir, é preciso distorcer a realidade e mostrar que ela é apenas um construto que não tem lógica alguma, sendo, na verdade, um grande absurdo. É dessa forma que podemos dizer que é impossível termos uma genealogia do Coringa, pois ele é a imagem de um mundo sem sentido, sendo em absoluto um personagem absurdo.
   Por fim, o emblemático riso do Coringa e gatilho do revólver, que provoca o processo irremeável de mudança, nos faz lembrar a frase final da ópera magna de Ruggero Leoncavallo, I Pagliacci : "La commedia è finita". Não há comédia que possa permanecer perante a tragédia do mundo. O Coringa sente o absurdo de sua própria existência e sorri.

(Luiz Maurício Bentim)