quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A (im)possível Genealogia do Coringa (II)


A (im)possível Genealogia do Coringa (II)


Nesta segunda parte sobre o filme do Coringa, vamos fazer uma análise sobre a construção do personagem. Para quem não viu a 1ª parte, pode lê-la aqui.
Arthur Fleck após passar por uma série de traumas, acaba por libertar outra faceta de si mesmo. Esse outro que surgiu foi batizado de “Coringa” (Joker em inglês). Esse é um ponto extremamente importante de ser analisado, pois o papel da nomeação aqui não é trivial, a renomeação do personagem representa a morte do antigo e o nascimento do novo. O Coringa agora é o verdadeiro ‘eu’ do personagem, que surge não por criação individual de Arthur Fleck, mas uma criação coletiva, já que o Coringa é fruto do próprio cotidiano violento, competitivo e egoísta da sociedade americana retratada no filme. Em uma sociedade que se mantém pelo egoísmo coletivo, o indivíduo não olha para o outro, mas somente está centrado em si e nos seus próprios negócios. O consumo é a regra e aqueles que não podem consumir estão socialmente mortos. É esse mundo que é refletido no filme do Coringa.

O personagem começa o filme cheio de sonhos, trabalhando duro e levando a vida com dificuldade como a maioria das pessoas de baixa renda. Recebe tratamento médico e toma uma série de remédios para os seus distúrbios mentais, além de ter uma risada incontrolável. Após uma série de atos violentos sofridos, o Coringa acaba por ter a sua gênese na própria violência que recebe. A sua reação à violência acaba por provocar um levante popular contra a hipocrisia da sociedade que oculta as classes sociais existentes na cidade de Gotham City. As pessoas que passam a usar a máscara do palhaço formam um movimento anarquista que visa a destruição de Gotham para a destituição dos ricos do poder. Apesar de ser um movimento que ganhou força de maneira autônoma, ele acaba por eleger o Coringa como liderança no final do filme. Esse movimento é o causador da morte dos pais de Bruce Wayne, o que já prediz a oposição entre Batman e Coringa de um modo diferente do usual. Enquanto nos quadrinhos, e nos filmes do Batman até então desenvolvidos pela indústria cinematográfica, o Coringa é o oposto do Batman por suas características inconstantes, assassinas e antirracionais, enquanto o Batman é retratado como ordenado, seguro e racional. Porém no recente filme da série, Bruce Wayne aparece como merecedor da morte dos pais, pois paga pelo preço da desigualdade social e a esquizofrenia coletiva causada pelo capitalismo. Dessa forma, o Cavaleiro das Trevas nada mais é do que a resposta opressora dos ricos sobre os pobres que tenta deter a fúria da massa de miseráveis que se revolta contra o sistema. Isso caracteriza a oposição Batman x Coringa como a representação mítica da luta de classes real e existente nas sociedades de classes hodiernas.
Mas Batman ainda não existe no filme do Coringa, Bruce Wayne é apenas uma criança que vê a morte violenta de seus pais depois de assistir o filme do Zorro no cinema. Mas todos que minimamente conheçam a história do Batman sabem que a cena da morte dos pais é determinante para o nascimento do Batman, o cavaleiro das trevas que jurou lutar contra o crime na cidade de Gotham City e, assim, passou a se vestir como um morcego assustador. Batman é um justiceiro, que age à margem da lei para fazer justiça com as próprias mãos. As suas ações brutais e a conivência da polícia com seus atos ilegais, faz do Batman um agente do fascismo, que segrega e coage, uma marca da opressão. Batman é uma representante da elite da cidade, que luta para manter o status quo tal qual ele se encontra. Batman não é alguém que pretende acabar com a desigualdade, ajudar os fracos ou destituir os ricos de sua dominação na cidade. Ele é aquele que mantém a ordem, um arauto do determinismo e guardião do poder.
Por outro lado, o Coringa que é construído nesse filme é um agente do caos e das possibilidades no mundo. Ele surge para se contrapor a tudo que há de ordenado, abrindo os caminhos para o acaso. Ele luta contra a determinação das regras e da lógica neoliberal, que exclui os pobres de toda a demanda social e faz deles meros consumidores e mantedores da estrutura dominante. Mas o Coringa não quer construir nada no lugar, ele é simplesmente caótico e a tentativa de ordenar a sua gênese em um roteiro é tão absurda quanto o personagem. E é justamente sobre isso que iremos tratar em nossa próxima coluna.

(Luiz Maurício Bentim)