A (im)possível
Genealogia do Coringa (II)
Nesta
segunda parte sobre o filme do Coringa, vamos fazer uma análise sobre a construção
do personagem. Para quem não viu a 1ª parte, pode lê-la aqui.
Arthur
Fleck após passar por uma série de traumas, acaba por libertar outra faceta de
si mesmo. Esse outro que surgiu foi batizado de “Coringa” (Joker em inglês). Esse
é um ponto extremamente importante de ser analisado, pois o papel da nomeação
aqui não é trivial, a renomeação do personagem representa a morte do antigo e o
nascimento do novo. O Coringa agora é o verdadeiro ‘eu’ do personagem, que
surge não por criação individual de Arthur Fleck, mas uma criação coletiva, já
que o Coringa é fruto do próprio cotidiano violento, competitivo e egoísta da
sociedade americana retratada no filme. Em uma sociedade que se mantém pelo
egoísmo coletivo, o indivíduo não olha para o outro, mas somente está centrado
em si e nos seus próprios negócios. O consumo é a regra e aqueles que não podem
consumir estão socialmente mortos. É esse mundo que é refletido no filme do
Coringa.
O
personagem começa o filme cheio de sonhos, trabalhando duro e levando a vida
com dificuldade como a maioria das pessoas de baixa renda. Recebe tratamento
médico e toma uma série de remédios para os seus distúrbios mentais, além de
ter uma risada incontrolável. Após uma série de atos violentos sofridos, o
Coringa acaba por ter a sua gênese na própria violência que recebe. A sua
reação à violência acaba por provocar um levante popular contra a hipocrisia da
sociedade que oculta as classes sociais existentes na cidade de Gotham City. As
pessoas que passam a usar a máscara do palhaço formam um movimento anarquista
que visa a destruição de Gotham para a destituição dos ricos do poder. Apesar
de ser um movimento que ganhou força de maneira autônoma, ele acaba por eleger
o Coringa como liderança no final do filme. Esse movimento é o causador da
morte dos pais de Bruce Wayne, o que já prediz a oposição entre Batman e
Coringa de um modo diferente do usual. Enquanto nos quadrinhos, e nos filmes do
Batman até então desenvolvidos pela indústria cinematográfica, o Coringa é o
oposto do Batman por suas características inconstantes, assassinas e
antirracionais, enquanto o Batman é retratado como ordenado, seguro e racional.
Porém no recente filme da série, Bruce Wayne aparece como merecedor da morte
dos pais, pois paga pelo preço da desigualdade social e a esquizofrenia
coletiva causada pelo capitalismo. Dessa forma, o Cavaleiro das Trevas nada
mais é do que a resposta opressora dos ricos sobre os pobres que tenta deter a
fúria da massa de miseráveis que se revolta contra o sistema. Isso caracteriza
a oposição Batman x Coringa como a representação mítica da luta de classes real
e existente nas sociedades de classes hodiernas.
Mas Batman
ainda não existe no filme do Coringa, Bruce Wayne é apenas uma criança que vê a
morte violenta de seus pais depois de assistir o filme do Zorro no cinema. Mas
todos que minimamente conheçam a história do Batman sabem que a cena da morte
dos pais é determinante para o nascimento do Batman, o cavaleiro das trevas que
jurou lutar contra o crime na cidade de Gotham City e, assim, passou a se
vestir como um morcego assustador. Batman é um justiceiro, que age à margem da
lei para fazer justiça com as próprias mãos. As suas ações brutais e a
conivência da polícia com seus atos ilegais, faz do Batman um agente do
fascismo, que segrega e coage, uma marca da opressão. Batman é uma
representante da elite da cidade, que luta para manter o status quo tal qual ele se encontra. Batman não é alguém que
pretende acabar com a desigualdade, ajudar os fracos ou destituir os ricos de
sua dominação na cidade. Ele é aquele que mantém a ordem, um arauto do
determinismo e guardião do poder.
Por outro
lado, o Coringa que é construído nesse filme é um agente do caos e das
possibilidades no mundo. Ele surge para se contrapor a tudo que há de ordenado,
abrindo os caminhos para o acaso. Ele luta contra a determinação das regras e
da lógica neoliberal, que exclui os pobres de toda a demanda social e faz deles
meros consumidores e mantedores da estrutura dominante. Mas o Coringa não quer
construir nada no lugar, ele é simplesmente caótico e a tentativa de ordenar a
sua gênese em um roteiro é tão absurda quanto o personagem. E é justamente
sobre isso que iremos tratar em nossa próxima coluna.
(Luiz Maurício Bentim)