quarta-feira, 14 de março de 2012

Resenha de DIVERS, John. Possible Worlds; cap. 1, 2 e 3. 2a ed. Oxon: Routledge, 2005.


Resenhista: Rodrigo Cid


Na filosofia, o vocabulário dos mundos possíveis é um instrumento com diversas utilidades. John Divers, no livro aqui resenhado (Possible Worlds. 2a ed. Oxon: Routledge, 2005.), pretende mostrar quais são essas utilidades e quais são, em detalhe, as teorias que utilizam tal vocabulário. O livro é composto de quatro partes: na primeira, Divers nos fala das motivações e utilizações do vocabulários dos mundos possíveis; na segunda, ele fala em detalhes sobre a teoria dos mundos possíveis de Lewis, que é chamada por ele de “realismo modal genuíno”; na terceira parte, ele fala dos teóricos do realismo modal actualista; e, finalmente, na quarta parte, faz sua conclusão.



Basicamente, o vocabulário dos mundos possíveis é apenas um instrumento, mas de acordo com o nosso objetivo ao utilizá-los e de acordo com o modo como os utilizamos, teremos capacidades explicativas e compromissos ontológicos diferentes para os mundos possíveis. Há pelo menos três objetivos para os quais podemos querer utilizar os mundos possíveis: para análise conceitual (i.e., transformando um conceito intensional num extensional), para análise ontológica (i.e., ao servirem de fazedores de verdade – truthmakers – para certas proposições) e para nos proverem uma semântica formal (i.e., model-theoretic semantics). Quaisquer que sejam os nossos objetivos, teremos que prover uma interpretação para o vocabulário dos mundos possíveis. É na medida em que provemos essa interpretação, que assumimos os nossos comprometimentos ontológicos. E é na medida em que nos comprometemos com umas ou outras coisas que os nossos mundos possíveis passam a servir para explicar certas coisas em vez de outras. Assim, ao utilizarmos o vocabulário dos mundos possíveis, temos de indicar para o que ele está sendo usado e como ele deve ser interpretado.

Divers nos lembra de pelo menos três tópicos nos quais utilizamos os mundos possíveis para fazer análises conceituais, ontológicas e semânticas: ao tratar de modalidades, ao tratar de intensões e ao tratar de relações de intensões.

Há muitos exemplos de modalidades em nosso dia-a-dia, algumas delas aléticas (com relação à verdade), como a possibilidade, a contingência, a necessidade e a impossibilidade, e outras delas deônticas (com relação ao dever), como a permissibilidade, a opcionalidade, a obrigatoriedade e a impermissibilidade. O que difere uma da outra é que, com relação às modalidades aléticas, é válido que “□P→P” e que “P→◊P”, enquanto o mesmo não é o caso para as modalidades deônticas. Utilizamos esses operadores em nossas frases em muitos momentos de nossas vidas e de nossas teorizações. Dentre as modalidades aléticas, que são o foco do livro de Divers, há inúmeros tipos de necessidades e possibilidades que podem ser expressos e/ou analisados em termos de mundos possíveis: há a modalidade lógica, a analítica, a metafísica, a epistêmica, a nomológica, entre outras – todas elas gerando seus próprios escopos de possibilidade e necessidade.

Um dos usos dos mundos possíveis com relação às modalidades é justamente tornar mais claro o que queremos dizer com os operadores modais, pois com os mundos podemos mostrar como cada verdade modal pode ser reduzida a uma verdade não modal sobre mundos. E podemos fazer uma abordagem extensional dos diversos tipos de modalidades, que as distinga de acordo com o conjunto de M-mundos regido por cada tipo de M-necessidade (necessidade lógica, analítica, metafísica, epistêmica etc) – P é M-possível sse P é verdadeiro em um M-mundo; P é M-necessário sse P é verdadeiro em todos os M-mundos; P é M-impossível sse P é falso em todos os M-mundos; e P é M-contingente sse verdadeira no mundo atual e falsa noutros M-mundos.

Os mundos possíveis nos permitiriam falar, por exemplo, que há mundos logicamente possíveis que não são nomologicamente possíveis, e estabelecer relações desse tipo entre as diversas modalidades. Esses diversos mundos possíveis seriam agrupados em M-tipos de acordo com as M-restrições que utilizamos na construção da necessidade dos mundos. Os mundos logicamente possíveis são mundos que seguem as restrições impostas pelas leis da lógica, os mundos fisicamente possíveis são os mundos que seguem as restrições impostas pelas leis da física, e assim por diante.

Outro ponto favorecido, ao usamos o discurso dos mundos possíveis, é que conseguimos fazer uma abordagem mais clara da interação modal do que sem os mundos possíveis. O que queremos dizer com “é necessário que é possível que é necessário que P” ou com “é possível que é possível que P”? No vocabulário dos mundos possíveis, a última sentença quereria dizer que há um mundo possível acessível a um mundo possível acessível ao mundo atual em que P. Essa relação de acessibilidade é a seguinte: dois mundos w e w’ são acessíveis sse ambos compartilham as mesmas restrições. Assim, um mundo é possível e necessário com relação a outros mundos. Mas é ele necessário ou possível em absoluto? Essa é uma questão sobre qual é o tipo de modalidade absoluta, se é a lógica, a analítica, a física, a metafísica etc. E tal questão fica um tanto mais fácil de ser pensada ao utilizarmos os mundos possíveis, dado seu caráter extensional.

Nesse mesmo sentido, não apenas modalidades podem ser pensadas por meio de mundos possíveis, mas também qualquer entidade intensional (entidade cuja extensão no mundo atual não permite distinguir de que entidade se trata – p. 9), tal como as proposições ou as propriedades, cuja extensão – o valor de verdade ou os indivíduos que instanciam as propriedades – não nos permite distingui-las. Assim, ao dizermos que, por exemplo, uma proposição é uma propriedade de mundos possíveis, podemos dizer que Px=Py sse “Px” e “Py” são verdadeiras nos mesmos mundos possíveis. Com esse mesmo ideal, podemos esclarecer também as relações entre entidades intensionais, tal como a condicional – que é uma relação entre proposições – ao dizermos que “P→Q” é verdadeira sse não há mundo possível em que P e não-Q. Outras relações que os mundos possíveis servem para elucidar são as relações de co-variância entre famílias de propriedades, como a superveniência, a independência e a redutibilidade de propriedades. Por exemplo, A se reduz a B sse todos os indivíduos em todos os mundos possíveis que têm A têm B, A é superveniente a B sse não há mundo em que um indivíduo tem A e B e outro indivíduo tem B e não tem A, e A é independente de B sse há um mundo possível em que um indivíduo tem A e não tem B (p. 12-13). Outros esclarecimentos providos pelos mundos possíveis, também relacionados com propriedades, são a explicação do que é essência (aquilo que individua um particular em todos os mundos possíveis), do que é propriedade essencial (propriedade que um indivíduo tem em todos os mundos possíveis em que existe), do que são as contrafactuais e as relações necessárias que elas supostamente estabelecem.

Como dissemos, o vocabulário dos mundos possíveis têm muitos usos. Porém, os usos que serão permitidos por nossa teoria estão intimamente relacionados com os comprometimentos ontológicos que aceitamos em nossa teoria. E são esses mesmos comprometimentos ontológicos que indicam qual a forma que devemos interpretar uma teoria que fale sobre (ou utilize o vocabulário dos) mundos possíveis. Em princípio, tudo que temos é um vocabulário com asserções sobre mundos possíveis. O mero uso do vocabulário deixa em aberto questões sobre a forma lógica, sobre o conteúdo conceitual e sobre os comprometimentos ontológicos das PW-sentenças (sentenças do vocabulário dos mundos possíveis). Assim, até que uma interpretação seja dada para as PW-sentenças, não temos como saber de que maneiras poderemos legitimamente utilizar os mundos possíveis. Uma interpretação completa do vocabulário dos mundos possíveis envolve (p. 17) (a) dar um veredicto com relação à aptidão para a verdade (truth-aptitude) das PW-sentenças (inclusive as PW-sentenças contestadas – explicarei posteriormente), (b) indicar um padrão de valores de verdade para as PW-sentenças, (c) mostrar a estrutura semântica das PW-sentenças e (d) dar o significado de termos teóricos chave contidos nas PW-sentenças. Isso significa respondermos se as PW-sentenças declarativas são aptas à verdade e se algumas, e quais, das PW-sentenças contestadas são verdadeiras, e também defender alguma posição com relação à estrutura semântica das sentenças permitir ou não a inferência válida para a existência de um mundo possível não atual que satisfaça a condição não modal estabelecida pela a própria PW-sentença, além de nos explicar como devemos interpretar os operadores e quantificadores (p.ex., restritamente ou irrestritamente). As PW-sentenças contestadas são aquelas que (p.17) parecem que seu uso implicaria uma asserção pela existência de um mundo possível que satisfaz a condição não modal estabelecida pela PW-sentença e tais condições são aceitas como não satisfeitas pelo mundo atual.

De acordo com as respostas que fornecemos aos problemas acima – (a) PW-sentenças são aptas à verdade?, (b) alguma PW-sentença contestada é verdadeira?, (c) uma PW-sentença possui uma estrutura semântica que permite a inferência válida para a existência de um mundo possível não atual? – tomamos diferentes comprometimentos ontológicos para o vocabulário dos mundos possíveis, tornando-nos abstencionistas, realistas genuínos, realistas actualistas ou anti-realistas com relação à existência de uma pluralidade de mundos possíveis. Os abstencionistas não provêm interpretações para os mundos possíveis e, consequentemente, não tiram proveito de nenhum uso filosoficamente interessante do vocabulário dos mundos possíveis. Os realistas respondem que sim a todas as questões, e eles se diferem entre si como genuínos ou actualistas de acordo com suas respostas para outra pergunta, a saber, “qual a natureza dos mundos possíveis?”. Os realistas genuínos quantificam irrestritamente (sobre atuais e não-atuais) sobre indivíduos e tomam os mundos possíveis como entidades maximais concretas, enquanto os realistas actualistas quantificam irrestritamente sobre o que existe actualmente e tomam os mundos possíveis como tipo de estados de coisas, como combinações de indivíduos e propriedades atuais, como tipo de propriedade complexa ou como tipo de uma coleção de sentenças interpretadas. Por sua vez, um anti-realista nega (a), (b) ou (c). Se ele nega (a), ele assume um não-factualismo anti-realista e se compromete com prover uma abordagem da função não assertórica das PW-sentenças. Se ele nega (b), e assim assume que nenhuma PW-sentença contestada é verdadeira, ele assume um factualismo anti-realista e se obriga a prover uma teoria-do-erro dos mundos possíveis. Se ele nega (c), ele tem de dar uma abordagem positiva da estrutura semântica das PW-sentenças. Com relação ao problema (d), sua resposta está intimamente conectada com as respostas providas às outras questões.

Os usos ou aplicações para o vocabulário dos mundos possíveis são estabelecidos pelos propósitos teóricos ou explicativos de uma interpretação do vocabulário. As elucidações providas pelos mundos possíveis podem ser de três tipos: conceitual, ontológica e semântica. Uma análise de um conceito modal ou intensional consiste em formularmos uma bi-condicional com tal conceito no lado esquerdo (que é explicitamente modal ou intensional no analysandum) e com termos não modais ou não intensionais no lado direito (no analysans). Um termo é modal ou intensional quando é explicitamente modal ou intensional ou quando só pode ser explicado por meio de um termo modal ou intensional. Uma análise geralmente nos analisa um conceito modal ou intensional por meio de um não-modal ou não intencional; no entanto, existem formas mais fracas de análise que não nos provêm termos não-modais ou não intensionais do lado direito da bi-condicional, mas que são esclarecedores por proverem elucidações intra-modais (como a utilização de um operador modal básico e a definição dos outros com base nele – o que certamente não funciona para uma análise extra-modal).

Podemos também com os mundos possíveis fazer uma análise extensional de termos modais e intensionais em geral. Tal análise é antes semântica ou ontológica, em detrimento de conceitual, pois tenta prover entidades ou expressões extensionais supostamente respeitáveis para os quantificadores quantificarem sobre, como os conjuntos e os indivíduos. Geralmente a extensionalidade (ou tornar entidades modais ou intensionais em extensionais) é motivada pela obtenção de uma ontologia sã e pouco pluralista no que diz respeito a entidades básicas. Um exemplo seria a tentativa extensional de purgar a linguagem modal de entidades intensionais duvidosas, tais como essências. A distinção entre uma análise extensional semântica e uma análise extensional ontológica é que a primeira passa de expressões intensionais para expressões extensionais, enquanto a segunda passa de entidades intensionais para entidades extensionais. Uma análise extensional deve prover uma semântica composicional para as expressões modais ou intensionais em causa, além de explicar como é possível a substituição de tais expressões e de prover as condições de verdades das sentenças modais ou intensionais.

Das aplicações ontológicas mais conhecidas para o vocabulário dos mundos possíveis, temos duas principais: (1) identificação ontológica, e (2) serem fazedores de verdade das verdades modais. No caso (1), utilizamos uma proposição da seguinte forma:

Ʉx (Fx ↔ Wx)

Onde “Fx” é o tipo de entidade a ser reduzida a Wx (como proposições, propriedades, possibilidades etc.), e “Wx” é um constructo de mundos possíveis. Tal análise ainda não tem compromisso com o realismo dos mundos possíveis, pois não afirma que Ǝx (Wx). No caso de (2), os realistas parecem estar em vantagem, se os fazedores de verdade forem sempre determinados pela existência de algo (se é sempre algo que existe que provê as condições necessárias e suficientes para uma sentença ser verdadeira). Para eles seria a existência de certos mundos possíveis que faria as asserções sobre possibilidades não atuais (no caso das modalidades) serem verdadeiras. Por sua vez, a interpretação anti-realista não permite aplicações ontológicas para os mundos possíveis, dado que de uma forma ou de outra – negando a aptidão para a verdade, a verdade ou a implicação para a existência de mundos não atuais – nega os mundos possíveis.

A aplicação semântica mais conhecida o vocabulário dos mundos possíveis é a construção de uma semântica formal, sistemática e rigorosa para linguagens modais ou intensionais, tais como as teorias semânticas da linguagem modal de Kripke e Tarski. Os objetivos explicativos de uma semântica sistemática da modalidade são: a regimentar as sentenças da linguagem modal, prover uma teoria do significado para os termos modais na linguagem natural, explicar a validade de inferências modais, obter resultados metalógicos (como os teoremas da completude e da correção) e justificar o uso da lógica de primeira ordem para avaliar argumentos modais. Seja qual for o objetivo explicativo da semântica em causa, uma teoria modal deve prover uma interpretação do vocabulário dos mundos possíveis que permita a apresentação adequada de uma semântica no estilo de Kripke, dado que esta utiliza o sistema mais fraco de lógica modal, comum a todos os outros – de modo que um problema para ela é um problema para todas as outras. No que diz respeito à semântica dos mundos possíveis, são os anti-realistas que devem apresentar as justificativas para a sua utilização, mostrando como fazer uma semântica dos mundos possíveis que não se comprometa com a quantificação existencial com relação a indivíduos e mundos não atuais. Uma semântica modal é compostamente basicamente de dois estágios: uma teoria semântica pura, onde não se fala de mundos possíveis e os operadores lógicos (como “□” e “◊”) não são relacionados com seus possíveis significados na linguagem natural – mas apenas com seu papel funcional –, e uma teoria semântica aplicada, onde relacionamos os operadores modais com seus significados na linguagem natural e capturamos o domínio regido pelos operadores [exemplos: (V,◊) =df V<◊A, w> = T sse existe v acessível a w e V = T, se não V<◊A,w> = F / (V,□) =df V<□A,w> = T sse para todo v acessível a w, V = T, se não V<□A,w> = F].

Outros usos ainda para o vocabulário dos mundos possíveis relacionam-se ocorrem na epistemologia modal, nas explicações cosmológicas a priori, na postulação de universos paralelos na física, além de prover o benefício psicológico de ajudar a nossa imaginação com relação às modalidades, incluindo a interação de modalidades (que é bem difícil de pensar e imaginar sem o auxílio dos mundos possíveis). Esses outros usos não serão explorados no livro de Divers, mas ele enfocará, principalmente a partir do capítulo 4, uma avaliação das interpretações realistas do vocabulário dos mundos possíveis, avaliação esta baseada em suas capacidades (ou falta delas) de sustentar efetivamente os tipos de aplicações (ou usos) identificadas e nas virtudes e vícios teóricos encontrados.

Fim da Parte 1 (Capítulos 1, 2 e 3)




Citação: Cid, Rodrigo (2012). "Resenha de DIVERS, John. Possible Worlds; cap. 1, 2 e 3. 2a ed. Oxon: Routledge, 2005.". Blog Investigação Filosófica. Artigo eletrônico acessado em xx/xx/xxxx e encontrado em http://investigacao-filosofica.blogspot.com/2012/03/resenha-de-divers-john-possible-worlds.html.