terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Razoabilidade democrática e cosmopolitismo sustentável

RESUMO: O quê viso com este artigo é apresentar os problemas gerais que se encontram no cenário internacional, que são um entrave ao desenvolvimento mundial, e posteriormente indicar as soluções possíveis para os problemas apresentados. Para tal, mostraremos como o desenvolvimento deve ser visto: como a expansão das liberdades formais e substantivas. Posteriormente analisaremos o cenário internacional à procura dos problemas e soluções em âmbito econômico, político e social, a fim de estabelecer uma razoável e justa organização administrativa, que possa seguir a vontade dos cidadãos de modo democrático, auto-sustentável e cosmopolita. Para completar esse quadro, passamos a focar no problema da improbidade administrativa, que nos remete às relações nacionais e à educação. Por fim, queremos mostrar que a educação, o cenário internacional e as estruturas democráticas, se baseadas firmemente em critérios de razoabilidade e razão pública, podem promover o desenvolvimento do mundo. Palavras-chave: Democracia. Desenvolvimento. Razoabilidade. Justiça. Organização Social.


ABSTRACT: What I intend with this article is to present the general problems of the international scenario that are constraints to the world development, and lately, indicate the possible solutions to the presented problems. To do this, we will show how development must be seen: as the expansion of formal and substantives liberties. Then we will analyze the international scenario, looking for the problems and solutions in economic, political and social stances, trying to establish a reasonable and fair administrative organization that could follow the will of people in a democratic, self-maintaining and cosmopolite way. To finish the picture, we start to focus the administrative improbity problem, that directs us to the national relations and education. At last, we want to show that education, the international scenario and the democratic structures, if firmly based on a reasonability criterion, and on public reason, can promote the world development. Key-Words: Democracy. Development. Reasonability. Justice. Social Organization.


1 INTRODUÇÃO

Posicionamo-nos na vida de duas formas: como indivíduos e como cidadãos, somos parte de uma organização social e de uma organização política. Aquilo que decidimos e como agimos está inserido dentro de um quadro maior de ações, reações e decisões, donde vários âmbitos se aplicam, como as decisões e ações pessoais, profissionais, estaduais, nacionais, mundiais etc. Estes âmbitos podem ser divididos em dois tipos: privado e público, ou seja, ações e decisões que têm ou não efeito direto sobre o corpo social.

Nesse mar de ações e decisões, algumas delas nos levaram, e continuamente nos levam, a toda sorte de acontecimentos em nossa vida, seja ela privada ou pública. E essas ações, que trouxeram para uns tantos avanços tecnológicos e liberdade para decidir como viver, também trouxeram (ou mantiveram) muitos problemas sociais, econômicos, políticos e ambientais para outros (e às vezes para todos). Muitos desses problemas estão a comunicar um ultimatum ao ser humano, e sua solução exige que decidamos cursos de ações cujos efeitos afetam as vidas de todas as pessoas que estão e que virão ao mundo. Exemplos de problemas como esses são: o superaquecimento global, o autoritarismo político, o terrorismo, a fome coletiva, a pobreza extrema, a violência urbana, a corrupção, entre outros.

Proponho que problemas como esses só podem ser resolvidos dentro de certas estruturas internacionais e nacionais, investidas de aprovação moral e objetivando uma vida boa e sustentável para os presentes e futuros cidadãos, sem desrespeitar a pluralidade de doutrinas abrangentes (filosóficas, éticas, religiosas) razoáveis, com suas respectivas concepções de bem, presentes na sociedade. Aqui cabe uma citação de John Rawls descrevendo “pessoas razoáveis”:

 “(1) Pessoas razoáveis não afirmam todas a mesma doutrina abrangente. Diz-se que isso é uma conseqüência do ‘ônus do julgamento’. (2) São afirmadas muitas doutrinas razoáveis, das quais nem todas podem ser verdadeiras ou corretas, julgadas a partir de qualquer doutrina abrangente. (3) Não é irrazoável afirmar nenhuma das doutrinas abrangentes razoáveis. (4) Outros que afirmam doutrinas abrangentes também são razoáveis. (5) Ao afirmar nossa crença numa doutrina que reconhecemos como razoável, não estamos sendo irrazoáveis. (6) As pessoas razoáveis pensariam que seria irrazoável usar o poder político, se o tivessem, para reprimir outras doutrinas que sejam razoáveis mas diferentes da sua”1.



Somente nas decisões públicas nacionais e internacionais, soluções públicas para os nossos problemas podem surgir. Como é fundamental para resolvermos qualquer problema global que nos fixemos em todo o globo, começaremos analisando as estruturas internacionais, para então nos direcionarmos aos níveis nacional e pessoal (através da educação), já que a escolha da ação para solucionar um problema público mundial dos tipos que citamos é limitada por leis e tratados internacionais e, posteriormente, nacionais.

O cenário para a discussão dos problemas mundiais recebe influência de vários setores, dentre os principais são, o econômico, o político, o social e o ambiental. Apresentam-se como agentes nesse palco: os governos, os povos e as empresas com relações internacionais. Aqui cabe apresentar essa distinção. O povo são as pessoas que podem ou não ocupar o mesmo território e que são ligadas por um vínculo cultural e social ou também político. Um governo é o grupo de pessoas que responde por uma parcela do território do globo terrestre, organiza os indivíduos que lá se encontram (e que na democracia, representa um povo) e se relaciona econômica e politicamente com outros governos. As empresas com relações internacionais são aquela que economicamente se relacionam com governos e povos e acabam por ter influências tanto econômicas quanto políticas nestes (lobby). Chamaremos os governos e essas empresas de cidadãos internacionais jurídicos e os povos de cidadãos internacionais físicos; e em âmbito nacional, embora já tenhamos a distinção entre pessoa física e jurídica, aqui os chamaremos de, respectivamente, cidadãos nacionais físicos e cidadãos nacionais jurídicos.

As relações entre esses cidadãos internacionais são normatizadas por diversos tipos de contratos que regem suas possibilidades de ação e determinam o tipo de relação que eles acertam entre si. Com o objetivo de não guerrear por causa de quebras de contratos, foi interessante para tais cidadãos criar mecanismos e órgãos que organizassem essas relações. Esses pretendem criar e manter certas regras que possibilitam a convivência pacifica e relações justas entre os envolvidos. Entre esses órgãos temos: o que versa sobre a economia (a OMC), o que versa sobre políticas (a ONU), o que julga crimes contra a humanidade (a Corte Internacional de Justiça) e aqueles que visam o auxilio e desenvolvimento dos povos (Banco Mundial, FMI, Organizações Filantrópicas etc). Como mecanismos temos: regras promulgadas em tratados e acordos entre cidadãos internacionais e a jurisdição desses mesmos órgãos.

Contudo, apenas a existência desses órgãos ou sua existência da maneira atual não são suficientes para que se estabeleça a organização esperada das relações internacionais e do desenvolvimento do mundo.

2 DESENVOLVIMENTO DO TEXTO
2.1 DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE

Para continuar, primeiramente devo esclarecer o que quero dizer com desenvolvimento. Como Amartya Sen, acredito que aquilo que podemos chamar de desenvolvimento seja a eliminação gradual das privações de liberdade. Muitas dessas restrições, como a falta de respeito aos Direitos Humanos, a pobreza extrema, a falta de segurança, a impossibilidade de participação na vida da comunidade, a falta de um trabalho recompensador etc. impedem o bom andamento das relações nacionais e internacionais, pois geram para um povo uma vida desagradável.

Um povo com uma vida desagradável é um foco de perigo para todo o mundo. Isso porque a possibilidade de conflitos nacionais e internacionais numa sociedade com condições desfavoráveis é constante. Enquanto há vida desagradável, sempre alguém pode ser culpado. E é nesse processo de imputabilidade de culpa (que ocorre em níveis internacionais com o terrorismo, e em níveis nacionais com as gangues e guerras civis) que a violência se prolifera e nos afastamos cada vez mais da esperada paz mundial. Portanto, devemos trabalhar para uma vida agradável no mundo, fazendo com que as restrições de liberdade que afetam negativamente a capacidade das pessoas para escolher entre alternativas de vida sejam removidas.

Devemos aqui observar que a liberdade para realizar, a capacidade, não é meramente formal, mas é também substantiva. O que quer dizer que a capacidade de uma pessoa é medida também pela liberdade real que essa pessoa tem para realizar funcionamentos, ou seja, é medida pelas condições financeiras, biológicas, educacionais etc., além das liberdades formais concedidas pelo Estado de Direito, que essa pessoa tem para realizar ações com propósitos que podem ser razoavelmente valorizados.

Eliminando-se a vida desagradável, podemos estar certos de não estarmos produzindo motivos para ações violentas. Na verdade, com uma ajuda internacional para o desenvolvimento dos povos menos favorecidos, estaríamos dando reais motivos para que haja uma relação de cooperação mútua entre os povos.

Assim, há sociedades mais desenvolvidas que outras, e é dever e direito das que desfrutam de melhores condições, para manter as relações internacionais pacíficas e evitar surtos de violência no mundo, ajudar os povos com vidas desagradáveis. E isso, tal como outros problemas de caráter global, exige nossa atenção imediata.

2.2 SOBRE AS ORGANIZAÇÕES E MECANISMOS INTERNACIONAIS
2.2.1 O comércio

Um dos tipos de relações entre os cidadãos internacionais é a relação comercial. A OMC é um órgão onde povos, através de seus governos, comercializam com governos de outros povos. Na pratica, não é um órgão que se possa abandonar, ou ainda, não podemos ser hostis ao comércio internacional sem profundas perdas econômicas para um povo (conforme nos mostram os estudos do National Bureau of Economic Reasearch sobre globalização e desigualdade2). E assim, essas relações têm um peso inegável na decisão de um governo e, por isso, as decisões da OMC não devem se pautar apenas em interesses econômicos, mas também em outros interesses de igual valor.

A princípio talvez seja difícil percebermos o motivo da preocupação com a OMC. Embora, pelo que disse até agora, o comércio internacional pareça ser um fator unicamente positivo, a OMC é acusada de graves problemas. O ponto inicial é que não há um órgão independente a OMC que verse sobre suas regras, através de um judiciário e um legislativo moralmente aprovados3.

Da mesma forma, não há o reconhecimento das credenciais adequadas para que exista um legislativo e um judiciário em âmbito internacional, especificamente em âmbito comercial. Temos apenas os executivos, os próprios chefes de estado (no papel de representantes dos povos membros), e o lobby empresarial comandando sem moderação o cenário internacional.

A visão de que esses procedimentos não são democráticos, e sim estratificadores, deve-se ao fato de qualquer membro ter o poder de veto (o que é chamado também de “decisão por consenso”), o que faz uma única nação ter o poder de não permitir que uma medida se realize; e isso mantém o status quo. É claro que há um Órgão de Apelação para resolver as disputas, contudo não é um órgão independente às decisões da OMC. Isso remove desse órgão a imparcialidade necessária para julgar adequadamente. A não especificação de um poder legislativo independente e competente também compromete a imparcialidade e a razoabilidade na criação das leis.

Uma divisão como essa deve ser a base de justiça para um poder executivo agir, sem a qual teríamos um poder que não é adequadamente moderado, pois os executivos e seu lobby exerceriam também o poder legislativo e judiciário. E devemos nos lembrar que reter o poder judiciário, na ausência de um poder legislativo independente, graças às muitas possibilidades de interpretações das leis, faz exercer indiretamente o poder legislativo.

O primeiro fator que causa a prioridade econômica nos objetivos da OMC é o lobby empresarial que cerca as discussões com relação aos tópicos comerciais globais. Esse é um ponto que não pode ser eliminado, justamente por causa da liberdade comercial, que é incentivo para o crescimento econômico dos povos e requisito para a entrada na OMC e, assim, no comércio internacional. A solução para esse problema é relacionar os objetivos empresariais aos objetivos sociais e ambientais que temos razões para valorizar, assim como o fez o Pacto Global.

A questão da prioridade econômica sob a social e a ambiental pode ser brevemente descrita se observarmos a distinção entre “produto” e “processo” feita pelo Gatt e reinante na OMC, que faz com que um país não possa embargar um produto de outro país por causa de seu processo de fabricação, mas somente pela qualidade do mesmo. O resultado disso é não conseguirmos estabelecer leis que protegem as coisas que damos valor, pois um povo não poderia embargar, por exemplo, o leite de soja feito em condições insalubres de trabalho sem também ter que embargar e proibir toda a produção de leite de soja (não importando o seu modo de produção). Ou ainda, um país não poderia embargar a vitela4 (pelo seu modo de produção) sem com isso ter que também embargar e proibir toda a carne bovina.

O ponto em questão não é uma discussão sobre o vegetarianismo, mas mostrar que alguns dos procedimentos da OMC, não visam o desenvolvimento dos povos e priorizam interesses econômicos e empresariais frente aos interesses sociais e ambientais dos cidadãos nacionais físicos. Isso, balanceado com os aspectos positivos da OMC, leva-nos a pensar que se conseguirmos os mecanismos adequados para regulamentá-la, ela poderá ser um órgão promissor na busca de relações internacionais pacificas e do mútuo desenvolvimento. Tudo que vimos indica alguns pontos inadequados na OMC, a saber: que ela é antidemocrática, que prioriza o fator econômico em detrimento do social e do ambiental e que justamente por ser antidemocrática e de objetivo prioritariamente econômico impede as ações que visam o desenvolvimento, quando estas vão de encontro aos interesses econômicos de um dos membros e de seu lobby.

Vimos também que esses problemas são causados pela falta de uma separação entre o poder executivo, legislativo e judiciário na administração das relações comerciais, o quê favorece (e não direciona bem) o lobby empresarial e o autoritarismo em detrimento de nossas pretensões democráticas e de desenvolvimento. A solução para esses problemas encontra-se no estabelecimento de condições internacionais realmente democráticas de participação administrativa (executivo, legislativo e judiciário), para que a regulamentação e a manutenção dessas condições sejam pública e moralmente aprovadas.

2.2.2 A Questão Política

A Organização das Nações Unidas (ONU) é o órgão internacional que representa a necessidade que os povos têm de harmonização nas decisões públicas que nos afetam para além das fronteiras nacionais. Nela os povos membros discutem ações políticas que podem, nacionalmente, tomar em conjunto para resolver problemas sociais, ambientais e econômicos internacionais. As decisões a que se chegam funcionam mais como sugestões, que os países membros procuram cumprir (se possível), do que decisões com o peso de um poder executivo real. Isso se dá por três motivos: processo antidemocrático, falta de aprovação moral e falta de mecanismos de implementação de desenvolvimento.

O processo antidemocrático pode ser percebido simplesmente pela existência do Conselho de Segurança. Este é composto de, além de dois membros variáveis, membros fixos, que têm poder de veto sobre as decisões; isso dificulta as resoluções que vão de encontro aos interesses dos membros do Conselho.

Isso nos leva ao segundo problema, pois não temos como aprovar moralmente uma organização que não se funde em termos eqüitativos de cooperação e, por isso, não aceitamos plenamente sua jurisdição executiva. Outro motivo para ausência de poder executivo real da ONU é a ausência de meios eficazes de produção de desenvolvimento dos povos, já que a autodeterminação e a soberania dos povos restringem seu poder e que a ajuda financeira está sujeita à corrupção.

O primeiro problema parece ser o pilar central da resolução dos outros dois. Isso porque se tornarmos democráticos os procedimentos da ONU, teremos avançado em direção á sua aprovação moral; e, com isso teríamos aberto margens para a aceitação da jurisdição executiva da ONU. Para realizar o feito de tornar os seus procedimentos mais democráticos, justos e confiáveis, deveríamos dividir o poder de forma a impedir o autoritarismo: acabando com as “regalias” do Conselho de Segurança e formando em sua estrutura a tripartite concepção da divisão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário).

A divisão democrática dos poderes é o melhor meio que conhecemos de dividir o poder público de modo a evitar o autoritarismo e promover aprovação moral dentro de um sistema político democrático liberal. E, como uma organização democrática, uma organização das Nações Unidas deve ser regida por, pelo menos, a mesma estrutura administrativa que seus povos membros democráticos; pois por terem mais liberdade, podem ser considerados mais desenvolvidos.

Dessa forma, a maneira de concebermos a divisão tripartite dos poderes em âmbito internacional poderia se dar assim: (A) para ocupar o poder de legislar sobre os órgãos internacionais, cada povo deveria escolher representantes dentre um grupo de cidadãos com as credenciais adequadas, assim como fazemos nacionalmente, municipalmente etc.; (B) para julgar as ações regidas essas leis, cada povo deveria ter um processo de escolhas de juizes (como foi feito no Tribunal de Haia), legalizando as áreas administrativa e comercial, além da já instituída criminal, no direito internacional. Como os executivos das ações públicas internacionais seriam os chefes de Estado de cada governo, para que as decisões sejam harmonizadas dentro de um quadro de decisão mundial, elas devem ser tomadas de forma democrática.

Assim, a divisão de poderes, junto com o processo democrático de escolha de um legislativo, com o processo de escolha por mérito do judiciário e com um real processo democrático no seio de resoluções da ONU, ela teria aprovação moral internacional. Isso faz com que moralmente possamos aceitar uma decisão sua, mas não faz com que tenhamos condições de realizá-la. Para termos tais condições são essenciais três coisas: organização política-social adequada, condições financeiras e probidade administrativa.

Sobre a organização político-social adequada, acredito que só pode haver um sistema de cooperação mútua entre povos, caso eles possam, cada um deles, ter um sistema que continuamente prova que os governos daqueles povos são legítimos; e o que parece fazer isso mais satisfatoriamente é a democracia. Isso é o que lhes dá a confiança necessária um no outro para realizarem acordos e tratados entre si.

Embora não haja um “sistema de transparência” entre os diversos povos e suas administrações públicas, e volta e meia nem entre as administrações públicas e seus próprios povos (e eu penso que deveria haver), há uma globalização da informação que permite com que cada povo possa medir as ações e o sistema político-econômico dos outros em parte, e assim, medir sua legitimidade e confiabilidade.

Penso, portanto, que apenas uma democracia razoavelmente justa representa uma organização política adequada. Contudo, devemos levar em conta que para esse povo possuir também a organização social adequada, o ideal de razão pública deve estar presente em sua estrutura. Sem isso, o ideal de legitimidade e confiabilidade não é completo, embora seja possível haver relações entre esses povos com uma certa cautela (que, geralmente, varia de acordo com o governo).

As condições financeiras favoráveis ao desenvolvimento são algo que, comumente, apenas as nações desenvolvidas possuem em abundância. O que nos leva ao pensamento de que se não houver ajuda internacional dos desenvolvidos aos “sub-desenvolvidos” e aos “em desenvolvimento”, será bem difícil que estes consigam as condições financeiras favoráveis à implantação de projetos de desenvolvimento.

Assim, como era de se esperar (e como de fato ocorre) os povos criaram bancos e fundos (Banco Mundial, FMI) para ajudarem-se mutuamente. Entretanto esses empréstimos financeiros são emprestados mediante juros caros e exigências legislativas.

Seria melhor que a ajuda financeira viesse através de instituições com organização própria, já que o problema do subdesenvolvimento parece advir da desorganização que estes povos possuem. Se, no entanto, a ajuda viesse de forma financeira, esses povos precisariam já se encontrar organizados político-administrativamente de maneira adequada, para que os recursos adquiridos não se percam em atos de improbidade5. Não devemos pensar que os únicos tipos viáveis de ajuda são a financeira e a organizacional. Um outro tipo de ajuda, mais específica e para toda a humanidade, é aquela que advém dos meios tecnológicos e científicos. Para isso devemos criar uma certa instituição internacional, a qual exporemos na próxima seção.

2.2.3 International Scientific and Technological Organization (ISTO)

A justificativa para criar um órgão como esse advém de certos problemas: o problema das patentes e o problema da elitização ao acesso aos produtos, informações e conhecimento da sociedade. Na verdade, o primeiro problema gera o segundo. Ambos os problemas se baseiam nos mesmos fatores: o custo financeiro do desenvolvimento de um conhecimento ou de uma tecnologia e a necessidade do autor de obter, além do reconhecimento pessoal, o reconhecimento financeiro (um ponto essencial para que ele continue mantendo sua vida).

ISTO deveria ser uma organização mantida com o capital empresarial privado, captado em imposto internacional e organizado pela ONU. Ela teria como objetivo servir de opinião científica internacional (associada aos órgãos científicos mais respeitados) e produzir novos conhecimentos e tecnologias, barateando o custo de produção para as empresas, a fim de que o custo de comercialização seja acessível. Trabalhando primariamente em cima de produtos base (como remédios, alimentos etc.) e como secundário os outros, os custos desses produtos para a população poderiam ser baixíssimos. Desse modo as empresas ganhariam e os cidadãos também: menor custo de produção para um e menor custo de compra para outro.

Com relação ao mérito financiado do autor da nova tecnologia, poderia vir como prêmios em dinheiro e manutenção do emprego, deixando o registro da patente à humanidade e para a ONU; e através de licitações6, a escolha as empresas de comercialização e produção da nova tecnologia.

2.2.4 Legitimidade Política

Referi-me anteriormente a “credenciais adequadas” em dois âmbitos: no político (para o governo nacional e internacional) e no comercial. As “credenciais adequadas” para um governo, internacionalmente, ser legítimo devem se basear na aprovação explicitamente apresentada, através de processo democrático ou equivalente, e da ação do governo adequar-se aos interesses razoáveis de seu povo, não esquecendo do bem mais precioso de qualquer povo: a capacidade de manter seu território e manter-se organizado e pacífico dentro desse perpetuamente.

Normalmente não há padrões para medirmos os interesses de um povo, haveria somente critérios que indicassem quando os interesses governamentais se opõem firmemente aos interesses daquele povo. Com o uso da Razão Pública (sendo esta formada das jurisprudências atuais, dos documentos produzidos em de fóruns de discussão pública e de estudos sobre as estatísticas produzidas por institutos confiáveis), poderíamos ter enfim um padrão representativo que se assemelhe mais à satisfação e à “vontade do povo” do que em um sistema que simplesmente representa concepções políticas através do voto. Devemos ter o voto e a Razão Pública; esta última como um guia para os órgãos administrativos de um povo se guiar.

Estes itens, a escolha democrática de representantes e o uso da razão pública para estabelecer princípios para os órgãos administrativos, podem identificar (ou mostrar a falta de identificação de) as decisões governamentais com a opinião popular e, assim, objetivamente legitimar ou tornar ilegítimo um governo no cenário internacional como representante de um povo. Faltaria apenas, como nos mostram diversos teóricos políticos7, que essa democracia honre, promova e proteja os Direitos Humanos. Na certa, entendendo os Direitos Humanos da maneira mais abrangente possível, podemos pensá-los como compatíveis com a forma de desenvolvimento que Amartya Sem nos mostra ser possível em “Desenvolvimento como Liberdade”, exposto brevemente em [2.1].

Se for dessa forma, junto com a probidade administrativa, poderemos como povo, exercer o poder administrativo público; e como governo poderemos nos relacionar como cidadãos internacionais com as “credenciais adequadas”. Estas, portanto, devem ser adquiridas mediante o cumprimento de certos requisitos que consideramos sinal do desenvolvimento, como: um bom padrão de qualidade de vida (expectativa de vida, renda e índices de educação), poucas privações de liberdade (apenas as suficientes para manter a paz), e o estabelecimentos de projetos para o próprio desenvolvimento ou para o desenvolvimento do mundo. Estes e outros padrões devem também servir de guia para permitir a participação nas relações internacionais, sejam elas políticas ou econômicas (comerciais), governamentais ou empresariais. Pois assim não faríamos negócios com governos ou empresas ilegítimas, ou melhor, sem as credencias adequadas.

2.2.5 Legitimidade Comercial

Dessa maneira, teríamos o poder político para legislar e julgar internacionalmente também questões de cunho privado e fazer valer a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A OIT é o regimento internacional sobre as relações trabalhistas que os empregadores e empregados devem seguir. A extensa discussão social com relação a esse tema nos permitiria perceber quais são os pontos de desacordo, a fim de propor soluções razoáveis para eles e permitir relações onde empregado e empregador pudessem ambos realizar seus objetivos.

Legalizando esse (e talvez outros) tipo de padrão mínimo para o trabalho, adicionado à criação de uma legislação comercial internacional (promulgada e continuamente revista por cidadãos nacionais democraticamente escolhidos), que versa sobre os sistemas de trabalho, produção e comercialização, poderíamos controlar as relações empresariais, direcionando o fluxo do lobby conforme a Razão Pública.

Inspirados no “Pacto Global” (de empresas pela proteção ambiental e desenvolvimento), se colocarmos níveis nas credenciais, e relacionarmos o aumento desse nível com a promoção da proteção social e ambiental, poderíamos abrir uma área de investimentos para o capital privado, já que os critérios para a aceitação de uma empresa como cidadã internacional estariam estabelecidos. Seria como: fornecer pontos a favor em licitações por projetos de desenvolvimento sócio-ambiental realizados, ou removendo-se pontos até a ilegitimidade comercial nos casos de destruição sócio-ambiental.

Através de uma legislação internacional para as relações comerciais e trabalhistas, temos como internacionalmente responsabilizar as empresas por lixo e poluição produzidos, pelas condições de trabalho oferecidas, pela qualidade do produto, sem com isso interferir na soberania nacional. Faltar-nos-ia somente, o que ainda falta internacionalmente para muitas áreas: uma Justiça Internacional Trabalhista e Comercial. O quê, então, parece-nos essencial existir (mas que não o há) é um quadro completo de Justiça Internacional, tal como há nos diversos Estados de Direito.

2.2.6 Justiça Internacional

Uma justiça internacional, de qualquer âmbito que seja (comercial, criminal, administrativo etc.), só é possível caso um governo possa expressar o senso de justiça daquele povo com profissionais competentes. Para se adequar ao razoável exigido por um cenário plural (como o mundo), o senso de justiça de um povo deve ele mesmo ser razoável e este deve manter suas leis em padrões internacionalmente reconhecidos como razoavelmente justos.

Sendo, assim possível e necessário uma justiça internacional, devemos, com um poder legislativo independente e democraticamente escolhido e com os acordos e tratados que sustentam o direito internacional (que formam parte da razão pública internacional), formar os respectivos tribunais para as diversas necessidades de uma sociedade plural de povos.

O órgão legislativo internacional deveria ser formado como já foi dito, por votação democrática periódica de todos os cidadãos do mundo. Os políticos elegíveis para realizar uma função como essa devem também ter as “credenciais adequadas”, pois além de o processo legislativo ser um processo de extrema ponderação e reflexão, ele exige muitos conhecimentos que só podem ser obtidos mediante educação específica ou pelo processo de “tentativa-erro”. E não estamos dispostos a apostar nossas vidas públicas neste ultimo.

O órgão judiciário deve ser formado pelos cidadãos que representam os mais sábios, os que damos o poder de julgar os impasses e as injustiças de acordo com regras pré-estabelecidas. Esses, geralmente, são escolhidos com extrema cautela, visando-se a imparcialidade e a razoabilidade. Nos Estados de Direito são aquelas que são submetidos às mais rigorosas provas com relação ao conhecimento das leis e com relação aos seus méritos dentro do Direito. Após tais provas ou algo semelhante, eles adquirem as credenciais adequadas para julgar sobre aquilo que estudam; são credenciais rigorosas.

A Justiça Internacional deve também receber a aprovação moral dos povos para que a jurisdição Internacional não seja vista como algo que submeta a soberania nacional, mas como algo que protege os povos de empresas exploradoras e governos corruptos. Para essa aprovação deveríamos poder, como cidadão físicos nacionais, escolher democraticamente entre os juízes com melhores credenciais presentes no nosso povo para ocupar uma cadeira na Corte Internacional.

Neste momento, vale a pena enfatizar a distinção entre governo e povo, e lembrar que são os governos que agem em nome de um território no cenário internacional e não diretamente os povos; salvo em casos onde o próprio povo comete os atos criminosos, onde sempre há um governo que o incita a esse tipo de ação (como o caso do Nazismo).

Uma corte internacional de justiça só pode causar benefícios a um povo e ao mundo, já que poderíamos contar com leis estabelecidas para ações internacionais e um órgão separado que julgue essas ações de forma mais imparcial e razoável possível. Isto é péssimo para todo cidadão internacional corrupto e explorador, pois ele desrespeita as leis que democraticamente legislamos como justas ou razoáveis, e o judiciário o julga por isso. A forma de administração aqui proposta não visa formar um governo mundial, mas uma associação internacional de beneficio mútuo.

Pensar em fazer e julgar leis nos faz pensar em como deveríamos punir crimes internacionais. Eu teria que responder que cada tipo de crime, dentro de cada área do Direito, deve ter um tipo de punição especifica. Assim: governos poderiam ser depostos, presos e perdem seus direitos de elegibilidade, empresas poderiam ter uma produção embargada ou pagar indenizações etc.

Com relação ao tópico da Justiça, defendo que não conseguiremos estabelecer os Direitos Humanos no mundo, enquanto não tivermos meios de julgarmos aqueles que os desrespeitam. Da mesma forma ocorre com todos os problemas mundiais que se encontram parados por causa de embates entre posições; eles precisam de um judiciário e de um legislativo competentes e moralmente aprovados.

Então, sobre os órgãos e mecanismos essenciais para a construção de relações internacionais saudáveis, já foi dito. Entretanto, isso nos leva a um problema de grande porte e ainda não tratado: a improbidade administrativa.

2.3 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Um problema afeta todos (se não pelo menos a maioria de) os sistemas administrativos que são usados para governar um povo é a improbidade administrativa. Esse problema surge justamente no contato do ser humano com a chance de obter mais dinheiro ou mais influência. Penso, contudo, que no caso dos políticos brasileiros (ou de quaisquer outros políticos que gozem de boas ou excelentes condições de vida), sua necessidade de poder parece ser algo patológico; mas a psicologia não vem ao caso. O caso é que a improbidade cria a decadência moral das instituições onde ela ocorre, corrompendo-as e desacreditando-as, tanto quanto ao próprio sistema democrático.

Os casos de improbidade administrativa podem ocorrer em dois tipos: os da administração pública e da administração privada. Como já existem leis intra-empresariais que regem o comportamento correto e incorreto da administração privada, esse não será o nosso foco. Atentaremos apenas para os atos de corrupção e ineficiência na esfera da administração pública, propondo não soluções perfeitas (pois essas nos exigiriam que conseguíssemos fazer com que todos os indivíduos aceitassem uma certa ética ou se comportassem de determinado modo), mas propondo soluções que afastem o funcionário da administração pública da possibilidade de agir desonestamente.

Os focos mais comuns de conduta inadequada no funcionalismo público encontram-se em certos órgãos específicos, enquanto a baixa eficiência ou ineficiência perpassa todo ou quase todo o serviço público dos países em desenvolvimento ou nos países de condições desfavoráveis. Com relação a esses problemas, podemos explicitar quatro princípios políticos que visam impedir a improbidade:

1) Princípio da Transparência: Esse princípio indica que todos as organizações e funcionários públicos devem estar aptos a justificar legalmente o seu comportamento ou o atual funcionamento de sua instituição, indicando se esse comportamento ou funcionamento se enquadra ou não às regras. Além de estar apto, ele tem que esclarecer a qualquer cidadão que o questione sobre esse tópico. Enquadrando-se no mesmo principio, as contas prestadas na administração publica, sejam contas orçamentárias ou de balanço, e devem se encontrar em formato de público acesso, como postado na Internet, e enviadas para cada cidadão, por mais extensas que sejam, com todos os gastos, votos, decisões e justificações detalhadamente explicitados. Este princípio objetiva tornar pública toda a informação administrativa para que a corrupção se torne mais difícil, já que sob os olhos de todo povo é apenas questão de tempo para ser a improbidade ser descoberta.

2) Princípio da Eficiência: O objetivo principal deste principio é otimizar os resultados do funcionalismo público, promovendo a eficiência desse setor. A resolução do problema da ineficiência pública se encontra em dois pontos: saber onde se encontram os focos de ineficiência do sistema e eliminar esses focos através do processo mais eficiente possível. Para sabermos onde se encontra a ineficiência, nada melhor que examinarmos o que pensa o usuário do serviço público respectivo, tendo antes determinado por lei qual a punição que deve sofrer um funcionário ou uma instituição acusados e provados como ineficientes. Isto deve ser medido por órgão independente e competente. Queremos com esse principio indicar que deve haver um processo que meça a satisfação do cidadão quando em contato com os diversos funcionários e órgão públicos. Isso visa a melhoria do sistema e o impedimento de sua decadência moral, através da participação ativa dos cidadãos no processo de melhoria.

3) Principio de Tolerância: Este é o principio que permeia todo o ideal democrático e ele não visa diretamente acabar com a improbidade. Seu objetivo é fazer com que minorias sejam tratadas da mesma forma. E para manter tal sistema, os processos que medem a eficiência poderiam também receber as reclamações de intolerância. Esses dois últimos princípios citados nos levam a pensar na existência de “ouvidorias”. Estas estariam aptas a ouvir o povo, medir e executar ações pela eficiência e representatividade da administração presente a partir de sua reunião dos dados que formam a razão pública.

4) Principio do Espaço Razoável: Por fim, este objetiva garantir: que não apenas as decisões judiciais devem ser justificadas legalmente, mas todas as decisões da administração pública (pois estamos num Estado de Direito). Além de legalmente, as decisões devem ser justificadas de modo social, ambiental e econômico, sendo apenas aceitas justificativas razoáveis. Donde para ser medida, a razoabilidade da ação, podemos submetê-la a um processo legal. Isso indica que os políticos e outros funcionários teriam que justificar suas ações de modo razoável nos campos: legal, social, econômico e ambiental.

Acredito que esses quatro princípios dêem conta de lidar com as ações desonestas (além de proporcionar projetos políticos que nos indiquem quem tem as credenciais adequadas) às quais nos referimos e que corrompem a aprovação moral no sistema democrático do Estado de Direito. O problema que esses princípios e toda a estrutura que afirmo possível nos coloca é: como podemos conscientizar tantas pessoas de uma estrutura tão grande? A resposta sempre se mostrou óbvia: educação.

2.4 EDUCAÇÃO

Assim, na promoção das autonomias humanas (políticas, econômicas, civis e as de consciência) e, portanto, na promoção de um homem capaz, os povos democráticos tentam formar cidadãos de modo que esses indivíduos (sob a administração de um governo) tenham as condições necessárias e suficientes para viverem a vida que gostariam dentro de uma sociedade plural regida pela lei.

Algumas dessas condições, que devem ser fruto da administração pública, são: (a) as condições econômicas regidas pela capacidade de se obter um emprego que dê remuneração suficiente para que se consiga levar uma vida que nos satisfaça; (b) as condições civis, que são dadas por liberdades formais (e são elas que nos permitem ter outros direitos); (c) as condições da autonomia de consciência, que são as liberdades religiosa, de pensamento e de expressão, além (d) dos conhecimentos adequados que permitem-nos ser livre para pensar e escolher8; e (e) as condições políticas, que consistem tanto de (e1) uma administração pública, quanto dos (e2) conhecimentos políticos, que permitem exercer o poder decisório público, conhecer o funcionalismo das estruturas organizacionais da administração pública de onde se vive e as possibilidades de relação que se tem com essa administração.

De todas essas condições, essenciais para o apoio moral do povo ao sistema democrático, as que fomentam a participação ativa do individuo no seio social e na vida pública parecem ser as mais importantes, pois as condições econômicas e civis são supervenientes às condições políticas. Estas autonomias, por sua vez, formam um todo coeso, que propicia o passar dos conhecimentos e responsabilidades a alguém; donde o conhecimento científico e de convivência o tornam um individuo, e o político o torna um cidadão. Antes do conhecimento político, o homem é apenas indivíduo e imputar-lhe responsabilidades como se fosse um cidadão autonomamente pleno é um ato malicioso de um governo injusto e irrazoável. Somente após receber o conhecimento político um indivíduo pode ser dito cidadão responsável.

Justamente pela existência da lei, ela exige que todos dela tenham conhecimento; afinal ninguém pode alegar o não conhecimento da lei caso tenha cometido um ato ilegal. Essa é apenas parte da justificativa da exigência indireta de uma lei que estipule o ensino político; pois este é essencial para a manutenção de uma democracia de direito.

A outra parte é que a falta de ensino político corrompe a democracia, pois lesa aqueles que não receberam o conhecimento adequado do funcionamento administrativo da nação, fomentando ações não democráticas ou violentas (já que os indivíduos não sabem como utilizar a administração pública ou já que ela é ineficiente). O que pode ser mais bem exposto assim: se pensarmos numa empresa, cuja diretoria não explica e se recusa a explicar para o filho do recém-falecido ex-presidente como funciona a estrutura administrativa dessa empresa, a falta de conhecimento desse filho o colocará numa posição onde ele não saberá o que fazer para mudar as estruturas e nem que ações ele pode ou não pode realizar; donde, se realizasse alguma ação proibida, seria punido, sabendo ou não qual foi a lei que feriu. Essa analogia nos mostra o quão absurda é a responsabilidade legal imputada sobre quem não tem ensino político.

Esta analogia vê o povo como o filho e, consequentemente, como aquele que foi asserido para organizar a administração pública. Contudo os governos não popularizam o conhecimento político para o povo, que o coloca em uma posição onde não pode tomar decisões reais, pois o conhecimento político é completamente solapado das instituições que visam dar as condições cognitivas para a formação individual, como a escola. O que é um contra-senso, já que a democracia, por definição, é o “governo do povo”.

A instituição que distribui o conhecimento, geral ou político, é a escola. E ela é o braço público na formação das qualificações gerais que se espera de um individuo e cidadão íntegro. O objetivo da educação é manter o sistema administrativo corrente. E como democracias, devemos também manter o sistema democrático. O que só é possível mediante o continuo evitar dos atos que possam nos levar a qualquer tipo de autoritarismo político ou a qualquer privação de liberdade desnecessária. Por isso devemos investir na educação e sem favorecermos nenhuma doutrina abrangente. Pois se respeitarmos administrativamente o razoável e a liberdade que as diversas doutrinas obtém numa sociedade democrática, restringiremos sua influência no processo de formação educacional, já que é em um processo de formação de condições para a escolha e, assim, deve ser regido pelo aprendizado da aceitação de justificativas razoáveis.

Portanto, além do conhecimento cientifico que passamos aos nossos descendentes na escola, devemos passar: o conhecimento político e também a familiarização com a esfera pública, os conhecimentos administrativos, os conhecimentos práticos do cotidiano (como, por exemplo, abrir uma conta no banco) e os conhecimentos que visam mostrar a realidade dos problemas daquele povo; sem que seja privilegiada nenhuma doutrina em detrimento de outras e mantendo lugar para todas. Respeitar e ensinar o ideal da justificativa razoável é o que permite a coexistência da pluralidade de doutrinas em qualquer organização administrativa governamental.

Se pensarmos em uma ética como sendo o conjunto de princípios de ação que forma o comportamento de uma pessoa, seria irrazoável promover qualquer doutrina específica da bondade da ação moral. A única coisa que poderíamos concordar como razoável de promover seria o próprio ideal de razoabilidade, já que ele favorece a convivência pacifica de concepções distintas e até opostas. Assim promoveremos a virtude essencial para haver uma democracia plural e razoavelmente justa e para a formação de um cidadão cosmopolita e razoável.

Sabendo, então, que nossa ética teria como princípios de ação somente aquilo que imparcialmente promove a democracia e seus benefícios, podemos escolher como princípios de ação, além da razoabilidade, a imparcialidade em questões de justiça, o senso de auto-preservação da estrutura e das decisões em conjunto, a fim de fortalecer o senso democrático dos indivíduos daquele povo. Dessa forma, além de aptos a viver uma vida mentalmente autônoma, a entrar no mercado de trabalho e compreender o funcionamento dos órgãos e mecanismos da administração pública, o cidadão estaria motivado (pelo princípio de ação, aliado ao conhecimento das estruturas políticas e administrativas) a atuar na sociedade da qual faz parte, de modo razoável, democrático e visando preservar o bem coletivo de seu povo: o território (incluindo o meio ambiente) e um sistema administrativo de liberdade, a democracia. Estaríamos fazendo isto sem que nenhuma concepção razoável de bem ficasse impedida de entrar no jogo de influências do comportamento humano; o que é deveras razoável.

Influenciar os cidadãos a concepções específicas de bem é uma característica irrazoável para uma administração pluralista e típica de um governo autoritário. Por isso, a opção de uma democracia plural para perpetuação de uma ética razoavelmente aceitável é a de que devemos nos limitar a ensinar princípios de imparcialidade, razoabilidade e de manutenção do sistema democrático. Esse é o tipo de ser humano que visamos, não importando a concepção de bem que venha a ter.

3 CONCLUSÃO

Desde o sonho democrático realizado pelos gregos na Antiguidade, os períodos de autoritarismo na historia seguiram-se por séculos. Na verdade, até que se estabeleceram no mundo os Estados Democráticos de Direito (que são bem diferentes da democracia grega), passamos por inúmeras guerras, fomes coletivas, epidemias, exploração trabalhista e ambiental, restrições com relação às formas de religião, filosofia, pensamento e ação privada. Muitas dessas restrições de liberdade foram eliminadas após imensa luta dos povos para conseguir o controle sobre o governo daquele território. Pois “a satisfação de um povo é o critério de avaliação de um bom governo”9. E a melhor forma de governar que pode evitar o autoritarismo político é o governo pela vontade popular, a democracia de forma razoável. Não afirmo que a democracia acaba com todos os pontos negativos que surgiriam em governos autoritários. Contudo, um ponto interessante a se pensar em favor do desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen é que já não há guerras nem fomes coletivas nas democracias liberais desde 180010. E isso nos vale, se não como exemplo, pelo menos, como indícios de um caminho a seguir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[01]. CID, Rodrigo. O conceito de razoabilidade na democracia. Trabalho apresentado no Seminário Internacional de Ética e Direitos Humanos, Ouro Preto, 2007.
[02]. CONFÚCIO. Os Analectos. São Paulo: Cultrix, 1987.
[03]. DALL’AGNOLL, Darlei. Bioética: Princípios Morais e Aplicações. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
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[06]. MILL, Stuart. Princípios da Economia Política com algumas de suas Aplicações à Filosofia Social; Volume 2; tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
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[12]. _____. On ethics and Economics. Oxford: Basil Blackwell, 1987.
[13]. SINGER, Peter. Um só mundo: a ética da globalização; tr. Ubirajara Sobral. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Notas

1 RAWLS, 2001. P. 22, nota.
2 SINGER, 2004.
3 Como o Tribunal de Haia
4A vitela é obtida a partir de um processo cruel de produção, onde o bezerro precocemente desmamado é confinado em um pequeno espaço que incapacita seu movimento, mantendo sua carne macia, e alimentando-o com alimento pouco nutritivo para manter sua carne branca.
5 Como a “probidade administrativa” é um assunto de extrema importância, um capitulo foi reservado para ela.
6 Entre as empresas com as credenciais adequadas.
7 Como John Rawls, Amartya Sen e Peter Singer.
8 Por exemplo, um homem que não saiba da existência da África, nunca poderia pensar sobre a fome na África.
9 CONFÚCIO, 1987.
10 SEN, 2000; SINGER, 2004; RAWLS, 2001.

Citação: Cid, Rodrigo. "Razoabilidade Democrática e Cosmopolitismo Sustentável". In Prêmio Senador Milton Campos; org. CRUB. Brasília, 2007.  Acessado dia XX/XX/XXXX e encontrado como artigo eletrônico em http://investigacao-filosofica.blogspot.com/2011/02/razoabilidade-democratica-e.html.