RESUMO: Este é um trabalho que visa apresentar o Naturalismo Ontológico no âmbito da Epistemologia Naturalizada. Para tal, deve-se mostrar: (1) como Quine “naturaliza” a epistemologia e por que essa mudança direcionou os epistemológos posteriores à metafísica; (2) como ele resolve o ‘problema da indução’; (3) o que é o Naturalismo Ontológico e como ele se relaciona com a Epistemologia Naturalizada. Mais especificamente, mostraremos como Jaegwon Kim e como W. V. Quine percebem a epistemologia tradicional e como a naturalização desta precisou também da naturalização da metafísica, a fim de que esta consiga realizar o novo tipo de investigação sugerido por Quine: abandonar o programa de justificação da ciência por meio da validação dedutiva e utilizar-se de meios empíricos para entender a relação ‘evidência-teoria’.
1. EPISTEMOLOGIA NORMATIVA E EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA
A epistemologia tradicional tem um pressuposto básico, a saber, de que o conhecimento é crença verdadeira e justificada. Isto leva Jaegwon Kim, em seu artigo “What Is ‘Naturalized Epistemology’?”, a chamar esse tipo de epistemologia de ‘epistemologia normativa’, pois a justificação é um conceito normativo. Porque se uma crença está ou não está justificada, dizemos que é razoável ou irrazoável mantê-la do ponto de vista epistemológico; assim como na ‘ética normativa’: se uma ação está justificada, dizemos que ela é razoável do ponto de vista moral.
A epistemologia se propõe a tratar de dois problemas principais, que tornam a justificação o foco da sua investigação: qual o critério para uma crença estar justificada e o que sabemos de acordo com esses critérios. Exemplos desse tipo de tentativa, cada um a seu modo, foram Descartes e Carnap. O primeiro, do lado racionalista, quer indicar a priori quais são nossas crenças bases (evidência) e mostrar como podemos derivar nossas crenças não-básicas (teorias) mantendo-se a verdade das crenças bases. O segundo, do lado empirista, quer traduzir as proposições teóricas em proposições observacionais, adicionando lógica e teoria dos conjuntos (chamado de sense data) para formar todo o nosso conhecimento cognitivo. Portanto, de certa forma, ambos eram fundacionalistas.
O fundacionalismo cartesiano tem como evidência aquilo que é indubitável; assim, a indubitabilidade é o critério de justificação da crença. E o que ele encontra que é validado por esse critério são justamente os estados presentes da consciência de cada um. Posteriormente, através de dedução, Descartes pretendia justificar as nossas crenças não-básicas a partir das básicas. O fundacionalismo empírico de Carnap consistia de uma reconstrução racional em termos de sense data, traduzindo e, portanto, fundamentando a ciência em termos de observação, lógica e teoria dos conjuntos.
Quine, desta forma, divide toda a epistemologia em dois aspectos: o conceitual e o doutrinal. (A) No aspecto conceitual a epistemologia se preocupa em dar uma explicação do que seria a evidência, e (B) no aspecto doutrinal se preocupa em justificar o nosso conhecimento das verdades da natureza. Ele aceita o tratamento empírico do aspecto conceitual, mas não aceita a tentativa de justificar o conhecimento por meio de lógica. Pois como, segundo ele, passamos da observação para a teoria por meio de indução, não conseguiremos resolver esse problema por meio de dedução.
Do lado doutrinal, afirma Quine, paramos em Hume, onde as previsões não ganharam nenhuma certeza por se fundamentarem em impressões. Do lado conceitual a tentativa de tradução de Carnap foi o ápice que se chegou de resultados efetivos, ou seja, de dar conta do mundo exterior a partir de sense data, como primeiramente o queria Bertrand Russell. Com sua tradução, tornaríamos tão claro nosso discurso cognitivo quanto o é o sense data, esclarecendo também a evidência para a ciência, ainda que as inferências entre observação e teoria ficassem abaixo do nível da certeza. Contudo essa tese estava fadada ao fracasso, pois não podemos prová-la solidamente em termos de sense data. Ainda que pudéssemos exprimi-la, o ‘problema da indução’ persistiria (este problema será tratado posteriormente).
Assim, Quine aceita que toda a evidência de que a ciência dispõe e que todo processo de inculcar significados repousa, em última instância, em evidências sensoriais. Além disso, ele não assume como viável o objetivo de deduzir a teoria da observação. Isso o leva a mostrar que o aspecto doutrinal da epistemologia, caso continue na tentativa de validação dedutiva da ciência, não levará a lugar nenhum.
Desistindo assim da dedução da ciência, Quine pode não se importar com a circularidade gerada ao se justificar o conhecimento natural científico por meios de conhecimentos naturais científicos. Isso indica uma posição naturalista também para a prática filosófica, tornando-a semelhante à prática científica (essa posição, com relação à ciência é chamada de Naturalismo Metodológico; e não o trabalharemos neste texto). Dessa forma, estaríamos livres para empregar toda a informação disponível a fim de compreender o elo entre observação e ciência; o que Quine pensa que deveria ser o principal objetivo da epistemologia. Isso a libera para utilizar a psicologia empírica; na verdade, segundo esse filósofo, aquela deveria se tornar uma parte desta: deveria se tornar a parte que estuda por meios científicos a relação da evidência com a teoria. Assim, segundo Kim, a questão não é normativa, mas metafísica e, portanto, descritiva.
2. O PROBLEMA DA INDUÇÃO
Tendo naturalizado a epistemologia, ainda nos restaria indicar a tese metafísica que fala das coisas que se prestam a realizar o papel de evidência (será visto em 3) e mostrar como Quine resolve o problema da indução em seu artigo Espécies Naturais. Este último tópico é o que faremos neste capítulo.
O problema da indução é basicamente: ‘por que a indução merece nossa confiança quando se trata de obter conhecimento?’ Quine responde afirmando que o fato é que tem havido regularidade na natureza e que percebemos essas regularidades. Por isso, seria melhor perguntar:
“Por que nosso inato espaçamento subjetivo de qualidades concorda tão bem com os agrupamentos funcionalmente relevantes da natureza, a ponto de fazerem as nossas induções tenderem a dar tão certo?”[1]
Baseado na seleção natural de Darwin, ele mesmo responde que essa forneceu aos homens um espaço qualitativo comum (como a percepção de qualidades primárias) e o engenho para reagrupar as coisas em espécies com fins diversos (como o científico), por outros critérios que não necessariamente a similaridade natural que encontramos nas coisas.
O processo científico ‘ensaio-erro’ nos ajuda a formar critérios para desenvolver sistemas modificados de espécies, revisando os padrões de similaridade de acordo com a utilidade para nossas induções e fortificando os que as confirmam. Isso não significa que essas espécies teóricas precisem ser modificações das espécies intuitivas. Mas significa que a partir do nosso senso de similaridade imediato, subjetivo e animal (não-racional) desenvolvemos uma objetividade de similaridades, determinadas por hipóteses científicas. As coisas que são similares teoricamente (agrupamento formado pela similaridade “provocada” por uma teoria) são aquelas que são substituíveis enquanto partes de uma teoria científica.
Então Quine resolve o problema da indução mostrando que a similaridade é essencial para que consistentemente: aprendamos a linguagem, façamos qualquer indução e tenhamos quaisquer expectativas. Além da percepção da similaridade comparativa (‘mais similar que’) ser uma qualidade natural, ela é asserida como um produto da seleção natural. Diz também que é fato que tem havido regularidade no mundo e que a havemos percebido, de um modo que a maioria de nossas induções têm-se mostrado verdadeiras. Isso, através da teorização científica (que reorganiza racionalmente para múltiplos fins as similaridades de propriedades), conduz-nos a predições cada vez mais dignas de confiança. Como ele também se livrou da preocupação com a circularidade ao abandonar a busca por dedução, não haveria problemas em utilizar-se da ciência para descobrir quais são as entidades que produzem efeitos físicos no mundo (evidências) e como elas se relacionam com as teorias.
3. NATURALISMO ONTOLÓGICO E EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA
O problema principal apontado por Quine, que deveria ser resolvido pela epistemologia (sendo ela uma parte da psicologia empírica das ciências naturais), é ‘como a evidência, seja lá o que ela for, se relaciona com a teoria’. Esse, de fato, é um problema importante. Contudo, ele só pode ser resolvido mediante a eliminação do ‘seja lá o que for’, que só é possível se conseguirmos responder a questão imediatamente anterior ‘o que é a evidência?’ E esta é uma questão que direciona os epistemólogos à metafísica.
A questão ‘que entidades podem contar como causas para efeitos físicos?’ é uma questão que perpassou o meio científico desde a explicação aristotélica de ato, potência e motor imóvel, até hoje, com os físicos e epistemológos contemporâneos falando de completude causal do âmbito físico (ou seja, de que todos os fenômenos físicos seriam causados por outros fenômenos físicos e somente fenômenos físicos; sendo ‘fenômenos físicos’ aqueles que são redutíveis a uma lista x de forças).
O Naturalismo Ontológico responde essa questão da mesma forma que a ciência, já que, brevemente citando, o Naturalismo Metodológico se insere dentro do Ontológico e, assim, os métodos e objetos filosóficos seriam os mesmos que os científicos. Na verdade ele tende a afirmar algo mais radical do que as teorias científicas o fazem: a ontologia naturalista afirma que só existem entidades naturais, negando assim a existência e, conseqüentemente, a influência física de entidades não-naturais[2], embora possamos falar delas com sentido (o que foi mostrado pela expansão da Teoria das Descrições de Russell feita por Quine).
O motivo de o Naturalismo Ontológico defender a existência de somente entidades naturais é porque a única evidência que, a princípio, podemos todos compartilhar objetivamente é a evidência sensorial. E, de fato, vemos que elas provocam diferenças causais no mundo natural (físico). Conquanto às afirmações de que tenham que existir entidades não-naturais, Quine em “Sobre o que há” desfaz os argumentos semânticos a favor dessa tese, utilizando-se da Teoria das Descrições de Russell e a expandido também para os nomes próprios. O que nos mostra que não necessitamos aceitar a existência de certas entidades não-naturais, como ‘Pégaso’, ‘alma’ etc. simplesmente ao falá-las. Assim, não há motivos para aceitar a existência desse tipo entidades, embora a própria existência da ciência já nos dá motivos para aceitar a existência das entidades e causas dos efeitos naturais; ambos objetos da pesquisa científica.
Da afirmação anterior sobre a objetividade da evidência sensorial, surge a questão da ‘prioridade epistemológica’, ou melhor, de ‘o que conta como observação’: a recepção inconsciente bidimensional ou a apreensão consciente tridimensional? Quine responde essa pergunta afirmando que, como não tenta uma reconstrução racional e quer justamente um estudo empírico dos processos que ligam a observação à teoria e, assim, devemos nos aproximar o máximo possível dos receptores sensoriais. Só assim poderíamos começar a estruturar adequadamente esse estudo, já que as entidades sobre as quais as teorias se fundamentarão, a saber, as entidades naturais, já estarão estabelecidas pela resposta metafísica do Naturalismo Ontológico à questão levantada pela Epistemologia Naturalizada.
Retornando ao domínio epistemológico, agora com uma epistemologia descritiva, temos como evidências para nossas teorias, segundo Quine, as ‘sentenças observacionais’. Embora esse termo tenha tido diversas acepções diferentes, muitas delas cunhadas pelo Círculo de Viena, Quine o define de uma forma mais precisa: são sentenças não-analíticas sobre as quais todos aqueles que falam a mesma língua (seja uma linguagem física, química, nacional ou qualquer outra[3]) podem concordar com relação ao veredicto (se a sentença é verdadeira ou falsa), baseados apenas na estimulação concomitante e não em nenhuma experiência passada. Essas sentenças representam o tribunal intersubjetivo das hipóteses científicas.
Dessa maneira, as sentenças observacionais (sobre entidades naturais), vistas pela epistemologia, no lado doutrinal são vistas como o depositório de evidência para as hipóteses científicas. E no lado conceitual são vistas como as primeiras que aprendemos quando aprendemos uma linguagem, pois são aquelas de acordo com as impressões concomitantes. Como sentenças desse tipo só podem ser formadas a partir de entidades naturais, a Epistemologia Naturalizada confirma a tese do Naturalismo Ontológico. Este, por sua vez, indica aquilo que há no mundo e o que, conseqüentemente, é alvo do pensamento científico. Contudo, a resposta do Naturalismo Ontológico apenas propicia o início da resposta que a epistemologia descritiva, substituindo a epistemologia normativa, deveria visar encontrar: saber como as evidências se relacionam com as teorias, sendo essas evidências as sentenças observacionais sobre entidades naturais. Para adquirirmos esse conhecimento, segundo o cientificismo próprio de Quine (e alguns outros), teremos que esperar o trabalho de uma psicologia empírica das ciências naturais.
BIBLIOGRAFIA
BLACKBURN, Simon. Cap 2: Metafísica; Compêndio de Filosofia; tr. Luiz Paulo Rouanet. Loyolla, 2002.
KIM, Jaegwon. What is “Naturalized Epistemology”?
NOGUEIRA, Mário. Naturalized Epistemology; Apostila de Aula. Ouro Preto: UFOP, 2007.
_____. Epistemologia e Naturalismo; Apostila de Aula. Ouro Preto: UFOP, 2007.
_____. Naturalismo Metodológico; Apostila de Aula. Ouro Preto: UFOP, 2007.
QUINE, W. V. Epistemologia Naturalizada, Os Pensadores.
_____. Espécies Naturais, Os Pensadores.
_____. Sobre o que há, Os Pensadores.
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[1] QUINE, W. V. Espécies Naturais. P. 198
[2] Entidades não-naturais são entidades que não são nem causas físicas, nem efeitos de causas físicas, nem as entidades não redutíveis ou não supervenientes a entidades ou causas físicas.
[3] O problema da analiticidade, da matemática e da lógica é discutido apenas se nos aprofundarmos no Naturalismo Metodológico, o que não faremos aqui. Mas só para mencionar, Quine não aceita a noção de analiticidade das matemáticas.