Rodrigo Cid:
Qual a natureza da propriedade da beleza?
Rodrigo Figueiredo:
Para responder a questão, tenho que fazer alguns esclarecimentos. Vou admitir a teoria realista dos feixes (bundles), bem parecida com a teoria de Locke, segundo a qual os "particulares" são constituídos por feixes de propriedades não mentais. Tais feixes podem ser divididos em dois grupos: um de propriedades essenciais e outro de propriedades não essenciais ao particular. Estas propriedades estão ligadas numa relação "contingente", na medida em que o objeto pode sofrer alterações em suas propriedades “menos essenciais” ao longo do tempo. Um exemplo: A propriedade de ser humano é essencial a mim, por outro lado parece ser contingente, ou não essencial, o fato de me dedicar nesse momento aos estudos de filosofia. Nós não temos um conhecimento total desses feixes, mas apreendemos algumas propriedades exemplificadas pelos indivíduos, via sentidos. Algumas dessas propriedades se mostram essenciais em dados indivíduos e não essenciais em outros.
Rodrigo Figueiredo:
Para responder a questão, tenho que fazer alguns esclarecimentos. Vou admitir a teoria realista dos feixes (bundles), bem parecida com a teoria de Locke, segundo a qual os "particulares" são constituídos por feixes de propriedades não mentais. Tais feixes podem ser divididos em dois grupos: um de propriedades essenciais e outro de propriedades não essenciais ao particular. Estas propriedades estão ligadas numa relação "contingente", na medida em que o objeto pode sofrer alterações em suas propriedades “menos essenciais” ao longo do tempo. Um exemplo: A propriedade de ser humano é essencial a mim, por outro lado parece ser contingente, ou não essencial, o fato de me dedicar nesse momento aos estudos de filosofia. Nós não temos um conhecimento total desses feixes, mas apreendemos algumas propriedades exemplificadas pelos indivíduos, via sentidos. Algumas dessas propriedades se mostram essenciais em dados indivíduos e não essenciais em outros.
A propriedade da beleza, acredito eu, é uma propriedade não mental que podemos encontrar nos objetos mesmos. Porém em alguns indivíduos ela é essencial, em outros ela é contingente. Exemplo: Um indivíduo produzido com a intenção de ser belo, tem, ou pelo menos pretende ter, a propriedade da beleza essencialmente. Um indivíduo belo, mas que sua beleza é fruto do acaso, tem contingentemente a propriedade da beleza. Ao primeiro indivíduo, ou seja, àquele que tem a propriedade da beleza essencialmente, corresponde as artes que pretendem ser belas, objetos de decoração (e coisas do tipo), que se perdem a beleza já não são nada. Dos indivíduos que tem a beleza contingentemente podemos destacar: a beleza que se encontra na natureza, nos seres que a habitam.
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Rodrigo Cid:
Feixe de Propriedades Não-Mentais... Eu posso concordar com você que cada particular é constituído de feixes de propriedades não-mentais, mas tenho que fazer a ressalva de que apreendemos o particular como particular pelo modo como essas propriedades não-mentais ocorrem em nossa mente. Se tivéssemos outro aparelho de apreensão, como o tem a ameba, poderíamos confundir aquele particular e pensar que ele faz parte de outro particular. Outra coisa: você poderia me explicar melhor que tipos de propriedades podem ocorrer num feixe de propriedades? A propriedade de "ser vermelho" ocorre realmente em um objeto ou ocorre a propriedade x que se reflete como o ser vermelho no nosso aparato mental? Qualquer que seja a resposta, eu, como disse, posso concordar com você que cada particular é constituído de feixes de propriedades não-mentais; mas não sei se tudo que você afirmar como sendo uma propriedade possa realmente ser uma propriedade metafísica. Com isso quero dizer que não sei se existe (e acredito que não exista) uma propriedade como "ser vizinho de" dentro de um feixe de propriedades de uma pessoa, por exemplo. Assim, preciso ter mais claro o que você quer dizer com 'propriedades'. Penso que propriedades são apenas as características das coisas, e não relações entre as características das coisas. Isso pois não é uma propriedade do indivíduo a relação entre propriedades (como o "ser vizinho de"), mas é propriedade do 'estado de coisas' onde se encontram os particulares. Propriedades Essenciais e Propriedades Não-Essenciais Eu concordo em parte com a distinção entre mais ou menos essencial, mas discordo no ponto de que deveríamos usar essa palavra, 'essencial'. Entendo que é preciso que eu tenha a propriedade "ser corpóreo" para que eu tenha a propriedade "ter olho azul", mas isso não me parece que faz uma ser mais essencial do que a outra. Isso porque 'essencial' é oposto a 'contingente'; e se algo é "menos essencial", isso significa que está se aproximando da contingência, e eu não acredito em contingência (a ser justificado mais tarde). Entretanto, algumas propriedades parecem ser mais necessárias para aquele indivíduo ser um indivíduo (ou seja, para aquele particular ser um certo tipo de particular). Mas isso não é o que estávamos falando. Estávamos falando de propriedades que fazem aquele particular ser aquele particular. E se este é o caso, não há propriedades menos essenciais, todas as propriedades seriam igualmente essenciais para fazer daquele indivíduo aquele indivíduo; sem uma propriedade sequer, estaríamos quebrando a lei da identidade. Resumindo: no caso de estarmos falando da correlação entre um particular e um certo tipo de particular, então penso ser possível falarmos de propriedades 'mais' ou 'menos' necessárias, mas não de propriedades mais ou menos essenciais. Contudo, se estivermos falando de um particular com relação a ele mesmo, então penso que todas as propriedades que fazem parte daquele particular são igualmente essenciais para que aquele particular seja ele mesmo. A propriedade de ser humano é essencial a mim, por outro lado parece ser contingente, ou não essencial, o fato de me dedicar aos estudos de filosofia. [Rodrigo Figueiredo] Como eu falei, a propriedade de "ser humano" (que aqui penso como a propriedade de "ter o DNA humano") é tão essencial para você ser você quanto a propriedade de "se dedicar aos estudos de filosofia". Caso existisse uma pessoa com todas as outras propriedades iguais as suas, menos a propriedade de "se dedicar aos estudos de filosofia", ela não seria você; pois o particular que você de fato é tem a propriedade de "se dedicar aos estudos de filosofia". Suponhamos que um particular é um conjunto X de propriedades e que este conjunto tem 5000 elementos (propriedades); se retirarmos um elemento de X, não poderíamos afirmar que o conjunto que restou é X, teríamos que falar que é "X-1". E como X-1 é diferente de X, fica claro que no caso de retirarmos qualquer propriedade que seja (ao afirmar que ela é contingente) do conjunto X, não estaríamos mais falando do mesmo conjunto (particular).
Estas propriedades estão ligadas numa relação "contingente", na medida em que o objeto sofre pode sofrer alterações em suas propriedades menos essenciais ao longo do tempo. [Rodrigo Figueiredo]
Não me parece um bom motivo para a relação que liga as propriedade ser contingente o fato de o objeto sofrer alterações em quais propriedades têm (e não "alterações nas propriedades"). Imagino que você quer dizer com "relação que liga as propriedades" é aquilo que faz as propriedades estarem unidas num particular e o que as faz continuarem unidas. Se for isso, o fato de o conjunto de propriedades sofrer alterações não implica que nem as alterações, nem as relações entre propriedades, nem a relação entre as propriedades do conjunto e o mundo sejam contingentes. Ela (a relação), mesmo ocorrendo essas alterações, pode ser determinada, seguir regras, ser necessária. Alguma dessas propriedades se mostram essenciais em dados indivíduos e não essenciais em outros. [Rodrigo Figueiredo] Não entendi. A Propriedade da Beleza Penso que devemos, primeiramente, nos perguntar: o que é essa propriedade da beleza? Ou ainda: como podemos identificar a propriedade da beleza? As propriedades que dizemos que vêm do próprio objeto (mesmo que seja indiretamente, como expus), como a cor, o tamanho, entre outras, não temos divergências sobre se uma certa propriedade desse tipo pertence a um certo objeto. Propriedades como "ser agradável", "ser amedrontador", entre outras, freqüentemente aceitamos divergência. Como não podemos encontrar na própria coisa a propriedade ser amedrontador ou ser agradável (pois, se não, conseguiríamos indicar onde está essa propriedade) & só é possível indicar o que é amedrontador ou agradável por meio de referência a um ser humano (ou seja, só podemos dizer que algo é agradável ou amedrontador "para alguém", pois sem alguém, não seria mensurável), então o belo, tanto quanto o agradável, o amedrontador e outros que sigam o mesmo princípio, não advém da coisa independentemente de nós; advêm somente da relação entre nós e a coisa. E, diferente das propriedades que dizemos que vêm das coisas, essas outras são um tanto subjetivas (já que aceitamos a discordância). Dessa forma, não acredito que a beleza seja uma propriedade da coisa, mas a percepção de uma conformidade a fins da forma com finalidade desconhecida (mas existente) e relativa ao indivíduo (ou também à sua sociedade cultural). Ou seja, vemos no objeto uma certa harmonia que indicamos bela. Essa percepção da harmonia depende de certas regras que são criadas na vida particular e na vida social e, portanto, é subjetiva e relativa. Por mais que possam existir coisas que todos considerem belas, não há necessidade alguma de que as consideremos belas [Pode ser um fruto do puro acaso que todas as pessoas de determinado tempo considerem algo belo]. Assim, acredito que tudo tem a "propriedade contingente" de ser belo (ou seja, a possibilidade de ser considerado como tendo essa propriedade).
Rodrigo Figueiredo:
À primeira objeção: A sua primeira objeção parece ser: a apreensão dessas propriedades depende de um aparato mental que, no entanto, poderia ser diferente, de tal modo que a apreensão também fosse diferente. Concordo com você que temos que admitir certo "idealismo", pelo menos em relação a algumas propriedades, como é o caso da cores. Mas temos que admitir que há algo no mundo que nos causa a sensação do vermelho e esse algo é invariável: pode variar nossa percepção, mas a propriedade parece permanecer.
À primeira objeção: A sua primeira objeção parece ser: a apreensão dessas propriedades depende de um aparato mental que, no entanto, poderia ser diferente, de tal modo que a apreensão também fosse diferente. Concordo com você que temos que admitir certo "idealismo", pelo menos em relação a algumas propriedades, como é o caso da cores. Mas temos que admitir que há algo no mundo que nos causa a sensação do vermelho e esse algo é invariável: pode variar nossa percepção, mas a propriedade parece permanecer.
Agora a expressão "ser vizinho de" é uma relação, o que eu não ousaria chamar de propriedade. Por outro lado, acredito que essa seja uma relação universal que ocorre entre objetos (mas não vamos a fundo nessa questão, pois não nos parece interessante por enquanto). Os indivíduos têm propriedades, e não relações, em seus feixes.
À segunda objeção: Analisando meu argumento, sou obrigado a admitir que os termos "mais essenciais" ou "menos essenciais" são um pouco estranhos. E também estive pensando que não existe a contingência: dada todas as condições iniciais, tudo parece seguir-se necessariamente. A contingência parece uma ilusão à qual somo levado devido a nossa faculdade de conhecimento ser limitada, não nos deixando conhecer todas as condições necessárias pra que algo ocorra. Para acabar com aquelas aberrações (mais necessário, etc.), ou pelo menos tentar transpô-las, proponho uma distinção. Não sei até que ponto ela pode ser plausível para a discussão. Mas vamos lá. A partir da noção modal de mundos possíveis podemos atestar que há propriedades que existem em mais mundo possíveis do que outras, ou ainda, propriedades que precisam de menos condições para se efetivar. Peguemos o particular "Pelé": a propriedade universal de ser humano é essencial a ele, e existe em mais mundos possíveis do que a propriedade de ser jogador de futebol, que parece contingente a ele, pois existe em menos mundos possíveis que aquela outra propriedade. Podemos tomar um particular e a partir do critério acima proposto, dispô-lo numa espécie de gradação, que chamarei "graus de ser".Dispondo o particular e suas propriedades na gradação, podemos ver que ele não ocupará as extremidades da gradação, exemplo: Fez 1284 gols ← Jogador de F. ← "Pelé" → Ser humano → ter músculo →ter elétrons.
Se observarmos atentamente à gradação, vemos que quanto mais nos afastamos do particular para o lado direito, temos propriedades cada vez mais gerais, que abarcam mais particulares. Por outro lado, para a esquerda, vemos propriedades que são cada vez menos exemplificadas, até chegar a um ponto em que a propriedade somente é exemplificada por aquele particular. A minha idéia é: o lado direito é condição para o lado esquerdo; porém dentro de cada lado vemos condições para as próprias condições (como é condição ter elétrons para ter músculos), o que parece gerar problemas. Assim deveríamos chamar a todo lado direito de propriedades essenciais ou necessárias, e a todo lado esquerdo, não essenciais ou contingentes. Mas devemos ter a consciência que não é bem determinada a cisão entre necessário e contingente, pois parece-nos que, por exemplo, a propriedade de "ter sido jogador de futebol" determina e identifica o que conhecemos por "Pelé", e parece ser também necessária. E ainda, o lado direito é menos mutável do que o lado esquerdo: as propriedades da direita variam com menos freqüência do que as propriedades da esquerda. O lado direito está exemplificando o feixe de propriedades necessárias, e o lado esquerdo o feixe de propriedades contingentes.
Espero ser possível a partir de agora usar os termos 'necessário' e 'contingente' para as propriedades sem mais constrangimentos, na medida em que o que chamamos contingente é apenas algo que nos parece necessário, mas que exige muitas condições anteriores para se dar na realidade. Exemplo: Se é necessário a Pelé ser jogador de futebol que fez 1284 gols, é necessário antes, que ele seja homem, e antes de ser homem, ter músculos, etc.
À terceira objeção: Uma mesa que tem a propriedade (que me parece essencial) de ser feita de madeira e a propriedade (que me parece não essencial) de ser lisa. Se faço um pequeno risco com minha unha em alguma parte da mesa ela deixa de ser completamente lisa. Por isso eu afirmaria que aquela mesa não é mais aquela mesa? Aplicando ao meu exemplo: se eu parar de estudar filosofia eu vou deixar de ser eu mesmo? Acredito que não.
À quarta objeção: O motivo pelo qual eu chamo a relação que une os feixes de propriedade de contingente é o fato de se falarmos que essa relação é necessária, poderíamos argumentar que não seria mais possível alguma mudança nas propriedades não essenciais a um particular: vide o exemplo anterior da mesa de madeira, no qual uma pequena mudança faz com que admitamos que a mesa seja outra, quando, no entanto, não é.
Observação: a quinta objeção, quando fui ler ache estranho aquilo que escrevi; pensarei sobre o caso e te responderei depois. A última delas também não responderei por enquanto, mas somente depois que chegarmos a um acordo nos pressupostos anteriores.
Rodrigo Cid:
Eu concordei com você que as propriedades existem no mundo e são não-mentais. O que eu quis ressalvar era que nós percebemos uma propriedade como uma propriedade somente quando apreendemos essa propriedade. E a apreensão é um processo mental. Então, de fato, não parece haver propriedades no mundo independentes de nossa mente; parece haver apenas X no mundo, que quando X é apreendido por nós, mostra-se como propriedades. Agora, com relação a esse algo no mundo (que tem como "fenômeno" a percepção da propriedade), não tenho como saber que ele é invariável. Eu não sei se esse algo fica mudando o tempo todo mas continua aparecendo a mesma propriedade ou se ele é invariável e também sua propriedade. Como não acredito que podemos ter acesso a essa "coisa em si", não penso que seja possível fazer afirmações como dizer que ela é invariável ou variável. Dessa forma, onde eu queria chegar era que não podemos falar de propriedades das coisas, se não falarmos de nossa mente. Então, se você aceita que devemos aceitar um "idealismo" inicial para podermos falar de propriedades, então podemos continuar sem outras objeções com relação a isso. Eu tenho que perguntar para você: você considera que "ser irmão de" possa ser uma propriedade de algum particular?
MUNDOS POSSÍVEIS... Sobre a questão dos mundos possíveis e da contingência, penso o seguinte: -Suponhamos que um particular é um feixe de propriedades. -Pelé é um particular. -Pelé é um feixe de propriedades. -Uma diferença na quantidade ou qualidade das propriedades faz com que o particular não seja mais o mesmo. Primeiro, julgo necessário que para um particular com vida ser ele mesmo, não basta que ele tenha as mesmas propriedades físicas; é necessário que ele tenha a mesma bagagem intelectual. Afinal, dado que Sócrates poderia ter nascido dos mesmos pais e ter sido um completo burro, não falaríamos que Sócrates é contingentemente filósofo ou contingentemente inteligente. Acredito que se Sócrates não fosse inteligente ou não fosse filósofo, ele não seria o Sócrates de quem falamos hoje em dia. Temos que pensar também na causalidade da vida de uma pessoa. Se falarmos que alguma situação (como a propriedade de ter sido filósofo) é contingente, então estamos falando que uma certa situação não é necessária para que um certo particular tenha chegado a ser aquele particular. Não temos conhecimento de tudo que causa as situações da vida de uma pessoa e das propriedades decorrentes.
Eu admito que algumas das propriedades de Sócrates não mudaram em sua vida, tais como "ter DNA humano" ou "ter o olho azul" (imaginemos que o olho de Sócrates era azul); mas isso não indica nada sobre a necessidade. Dizer que há uma propriedade contingente em Sócrates é dizer que Sócrates poderia não ter uma das características (propriedades) que fazem dele o particular Sócrates. E isso me parece contraditório.
[Me surgiu uma questão intrigante agora, que é: em que momento estamos medindo o particular? Por exemplo, quando falamos de Sócrates, estamos falando de Sócrates em que época?]Peguemos o particular "Pelé": a propriedade universal de ser humano é essencial a ele, e existe em mais mundos possíveis do que Pelé, por outro lado, a propriedade de ser jogador de futebol parece contingente a ele, pois existe em menos mundos possíveis que aquela outra propriedade. Podemos tomar um particular e a partir do critério acima proposto, dispô-lo numa espécie de gradação, que chamarei "graus de ser"[Rodrigo Figueiredo]. Não entendo o motivo de porque existir em menos mundos possíveis que uma certa propriedade faz da outra propriedade contingente? Seguindo esse pensamento, "ser humano" deveria ser contingente, caso pensemos essa propriedade relacionada a "ter elétrons" e ao particular "Pelé". Qual o critério para determinar a fronteira entre a necessidade e a contingência? Não pode ser de relação entre propriedades, pois isso tornará o critério relativo. O critério teria que ser baseado em algum tipo de relação entre propriedade e particular.
É legítimo falar que Pelé poderia ter sido Pelé se não fosse negro, jogador de futebol, etc?[onde "etc" representa todas as outras propriedades que fazem parte do feixe de propriedades que é o particular Pelé]. Ainda não acredito ser possível usar a expressão "necessário" como oposto a "contingente", pois o critério que você estipulou é relativo, e dependendo de que propriedades resolvo comparar (usando-o), posso obter resultados diferentes para a mesma propriedade. Acredito ser melhor o uso de "mais necessário que" do que o uso da dicotomia "necessário x contingente". Isso, pois ainda não consigo perceber que tipo de propriedades podem ser consideradas contingentes em um particular. Então, eu ainda não aceito o uso de "necessário x contingente", mas aceito o uso de "mais necessário que". Uma mesa que tem a propriedade (que me parece essencial) de ser feita de madeira e a propriedade (que me parece não essencial) de ser lisa. Se faço um pequeno risco com minha unha em alguma parte da mesa ela deixa de ser completamente lisa. Por isso eu afirmaria que aquela mesa não é mais aquela mesa? Aplicando ao meu exemplo: se eu parar de estudar filosofia eu vou deixar de ser eu mesmo? Acredito que não.
Você chegou agora num ponto muito interessante, que eu apenas tinha ponderado rapidamente. Um particular está no tempo, e sofre modificações em suas propriedades constantemente. Um particular não é um feixe de propriedades fixas. Se você, no futuro, resolver não estudar filosofia, você não deixará de ser você; mas se uma pessoa que tenha as mesmas propriedades que você tem exceto ter estudado filosofia não seria você como você é hoje (que era aquele de quem estávamos falando em primeiro plano) e, portanto, não seria você (pois você tem a propriedade de ter estudado filosofia). Além disso, a propriedade de ter estudado filosofia abriu portas para você adquirir e perder diversas outras propriedades. Se uma pessoa semelhante a você não tivesse a propriedade de ter estudado filosofia, ela não teria tido acesso às mudanças de propriedades que você de fato sofreu em decorrência direta ou indireta da propriedade de ter estudado filosofia. Como não sabemos o nível dessa influência causal das propriedades nelas mesmas (e, consequentemente, no particular), não acredito que possamos determinar que tipos de propriedades podem ser contingentes, ou seja, não acredito que possamos encontrar propriedades contingentes num particular. Na verdade, eu acredito que essa discussão está sendo feita com a linguagem inapropriada, pois a contingência de propriedades para particulares implica que não estamos levando em conta que os particulares se encontram no tempo. Penso que precisamo encontrar outra forma de falar dessa característica das propriedades. Que relação que une o feixo de propriedades? Uma relação entre quê? O que é unir um feixo de propriedades?
Se eu entendi direito, você está falando que as propriedades de um particular podem mudar. Mas o que isso implica contingência? Não podem as propriedades mudar segundo uma regra (ou mais de uma) necessária?
Rodrigo Figueiredo:
Bem, pretendo admitir primeiramente em relação às propriedades que: ela é algo no mundo; esse algo é por vezes conhecido, e em outras vezes não tanto. Um exemplo: a propriedade de ser homem parece-nos fácil de identificar, porém a propriedade de ser vermelho é-nos mais estranha, na medida em que há uma infinidade de particulares que são vermelhos e cada um por um motivo diferente. Vemos um tomate e um carro vermelhos: qual a razão para acreditarmos que estão eles compartilhando uma propriedade, sendo que não podemos ver relação alguma entre ser tomate e ser carro? Por isso quero admitir certo "idealismo" em relação a algumas propriedades, mas não em relação a todas elas. No caso da propriedade de ser homem, ou da propriedade de ter o DNA humano, não me parece ter que admitir algum idealismo; apesar de não conhecermos todas as condições e propriedades para ser homem.
Esquece o que eu falei do fato das propriedades não mudarem; contudo, as vemos persistir mais do que os particulares que as exemplificam: o tomate vermelho apodrece e perde o seu vermelho, mas o vermelho permanece. Ou não?
O "ser irmão de" me parece uma relação entre particulares, mas não uma propriedade. No seu argumento referente aos mundos possíveis, primeiramente, discordo da quarta premissa: "Uma diferença na quantidade ou qualidade das propriedades faz com que o particular não seja mais o mesmo". Concordo com você que o particular não será exatamente o mesmo (ao longo do tempo) em relação a algumas propriedades, mas será em relação a outras. Esse é o motivo pelo qual tendo a dividir o feixe de propriedades em essenciais, e não-essenciais. As essenciais são aquelas sem as quais o particular nem mesmo existiria sem elas, as não-essenciais são aquelas que ele continuaria existindo perfeitamente sem elas. Mas aqui concordo com você que os dois feixes são necessários e não contingentes. Contudo estão eles em relação de sobreveniência: o segundo feixe é dependente daquele primeiro. Por exemplo: enquanto estudante de filosofia, eu tenho, antes de mais nada, que ser humano; se eu fosse um cão não poderia estudar filosofia.
Quanto ao "Sócrates", proponho que usemos exemplos mais próximos de nós, para ser mais fácil visualizar a questão. Quanto à distinção entre "graus de ser" parece-me que ficou mal formulada. Tomemos os dois feixes de propriedades que constituem o particular Pelé. O primeiro deles, ao qual chamo somente essencial estão as propriedades sem as quais o particular nem mesmo existiria; e se tomamos o critério de mundos possíveis, vemos que em todos os mundos nos quais esse particular existe, ele não pode deixar de ter essas propriedades. Mas dentro desse feixe há propriedades que parecem ser “mais essenciais” do que outras, assim propus a distinção em graus de ser (a partir dos mundos possíveis) entre as propriedades: a propriedade de ter elétrons existe em mais mundos possíveis do que a propriedade de ter músculos, que por sua vez existe em mais mundos possíveis, do que a propriedade de ser homem. Por outro lado, em relação ao feixe com as propriedades não essenciais (não mais contingentes), também há a diferença entre graus de ser: ser jogador de futebol existe em mais mundos possíveis do que ser o jogador que fez 1284 gols (e por isso ficou tão famoso). O particular em questão não pode estar na gradação, coisa que eu ainda não havia atestado.
A partir daqui não chamarei nenhuma propriedade de contingente, mas direi que algumas propriedades são não-essenciais e outras são essenciais ao particular; as não-essenciais são aquelas que dependem de sua relação social com o mundo, que podem variar (pelo menos com relação ao nosso conhecimento). As propriedades essenciais são aquelas que são inatas, que não dependem do convívio social, mas que é o próprio fundamento das propriedades não-essenciais.
Podemos então chamar aos feixes de propriedades pelos nomes: "feixe inato", ao qual identifico com o feixe de propriedades essenciais; e "feixe social", com o qual identifico o feixe de propriedades não-essenciais.
O meu exemplo da mesa, a partir da nova terminologia que pretendo admitir, fica assim: hoje a mesa tem a propriedade necessária, mas não-essencial de ser lisa; amanhã quando eu der um risco, ou lixá-la inteira, ela terá outra propriedade necessária (devido todos os motivos e condições) que, no entanto, ainda é não-essencial; porém sua propriedade essencial (também necessária) de ter forma de mesa (por exemplo), não pode ser burlada sem que o particular deixe de ser ele. No outro exemplo: a propriedade necessária (não-essencial) de me dedicar à filosofia pode deixar de ser uma propriedade minha; mas a minha propriedade necessária (essencial) de ser homem tem que continuar existindo enquanto eu existir.
Quanto à relação que une as propriedades. Não chamarei essa relação (que a mim também parece bastante obscura) de contingente, mas de não-essencial. Pois se falo que a relação é essencial, parece-me que a partir de minha definição de essencial seria contraditório dizer que poderia haver mudanças no particular. Defini aquilo que é essencial a um particular o que está em todos os mundos possíveis onde o particular existe. Se essa relação une de maneira essencial as propriedades, como haveria mudanças nesse particular?
Ps.: Estive pensando que no feixe de propriedades inatas, existem algumas que parecem ser necessárias, mas não-essenciais: por mais que seja inato e necessário o fato de alguém nascer com olhos azuis, o fato de ter um corpo orgânico, logo, ter carbono na constituição de suas células, é "mais essencial" a um ser humano particular do que o fato dele ter olhos azuis, ou ter a cor da pele negra, etc.
Rodrigo Cid:
Parece-me que cada particular é percebido como um feixe de propriedades. Eu defendo que há um X no mundo, que quando o apreendemos, o aprendemos como feixes de propriedades unidas. Assim, penso que um particular tem 1 (uma) propriedade essencial, a de ter a constituição XWERTFDSERT, por exemplo. Penso que a atribuição de propriedades é um processo mental. Dessa forma, normalmente, tomamos essa constituição XWERTFDSERT e a dividimos, falando de propriedades. Falamos que XWERT representa a propriedade de "ser humano" (ou ter o DNA humano) e que XWE representa a propriedade de "ter braços" e que X representa a propriedade de "ser do sexo feminino" etc. Parece-me que esse processo rotineiro que fazemos com as propriedades pode criar infinitas propriedades (ou quase infinitas) num particular, através dessa subdivisão de propriedades. Não me parece que o particular, ele mesmo, tenha todas essas divisões. Parece-me que elas são criadas por nossa mente para que possamos entender as semelhanças que percebemos entre particulares. Assim, parece-me simplesmente que o particular tem apenas 1 propriedade essencial, a propriedade XWERTFDSERT. E várias (e mutáveis) não-essenciais.
Contudo, eu não concordo com a terminologia "não-essencial". Isso porque se estivermos falando de um particular A, ele estará no tempo. E isso indica que nosso pensamento deve versar sobre um particular A no tempo T, já que eu concordo com você que há propriedades mutáveis e imutáveis. Assim, um particular é um conjunto de propriedades "menos essenciais" e 1 propriedade essencial (a sua própria constituição), donde suas propriedades menos essenciais são mutáveis através do tempo. Desse modo a noção dos mundos possíveis se torna mais restrita, pois: -Se estivermos falando de um particular A no tempo T, ele terá 1 propriedades essencial e várias menos essenciais. -Se falarmos de um particular em um mundo possível, onde neste ele tenha a mesma propriedade essencial que o Pelé e diferentes propriedades menos essenciais, por que deveríamos supor que estamos falando do mesmo particular, se o particular de que estávamos falando é um conjunto de propriedades menos essenciais com 1 essencial ocorrendo no tempo?
A = {(x Ps. M.E.) U (1 P.E.)}; T => variação no x; [Legenda: x = variável quantitativa e qualificativa; P(s). = Propriedade(s); M. = Menos; E. = Essencial; A = um particular; U = simbolo numérico de união entre conjuntos; T = tempo].
Acredito que para se falar de um determinado particular é impossível separá-lo de suas propriedades, sejam elas essencial ou menos essenciais.
Acredito, então, que se você concordar comigo que um particular é um feixe de uma propriedade essencial e outras várias menos essenciais que têm a possibilidade de se modificar no tempo, então você não poderá retirar as informações menos essenciais quando estiver falando daquele particular naquele tempo. Se você quiser falar de um particular abordando apenas sua propriedade essencial, então você não está falando de um particular, você está falando apenas de uma parte dele, a parte constitutiva, nos seres vivos, o DNA. Pois, desde o início concordamos que um particular é mais que isso, ele é esta parte essencial e uma parte mutável no tempo que é menos essencial. Entretanto ambas as partes são essenciais para que aquele particular num determinado tempo seja aquele particular.
Assim, se eu falo: "Se Pelé não tivesse tido a propriedade menos essencial X, então ele teria a propriedade menos essencial Y", é porque penso que sei quais as consequências para aquele particular de não atribuir uma das propriedades menos essenciais que julguei como parte daquele particular num determinado instante. Contudo, não temos acesso total a essa causalidade, e retirar alguma de suas propriedades menos essenciais é falar de outra coisa que não o particular A, já que ele começamos a falar dele como sendo A = {(x Ps. M.E.) U (1 P.E.)}. Penso que se trata de uma falácia de mudança de assunto. Começamos a falar de A e quando atribuímos outras propriedades menos essenciais a A, passamos a falar do particular B (e não de A).
Pelé não teria sido a mesma pessoa se não tivesse sido jogador de futebol. Isso porque quando falamos Pelé, estamos nos referindo à pessoa que foi o jogador de futebol tal e tem tais propriedades menos essenciais e uma certa propriedade essencial. Se falamos de Pelé sem ter tido a propriedade menos essencial de ser jogador de futebol, então não estamos falando de Pelé, mas de algo com a mesma genética que Pelé. Se um clone tivesse sido feito de Pelé, este não seria Pelé, pois para ser Pelé, este precisaria ter as propriedades que Pelé tem e ter tido as propriedades que Pelé tem.
Então se eu falar: "Se Pelé não tivesse tido a propriedade menos essencial X, então ele teria a propriedade menos essencial Y", sempre caberá dizer: "Mas eu não sei no que isso modificaria; daí ele poderia não ser mais a mesma pessoa". Assim, em vez de dizer: "Se Pelé não tivesse tido a propriedade menos essencial X, então ele teria a propriedade menos essencial Y", deveríamos dizer: "Se um particular tivesse tido as mesmas propriedades menos essenciais de Pelé exceto X, então ele teria a propriedade menos essencial Y". Contudo, ainda penso que essa contrafactual não possa ser realizada, pois não temos como verificar sua verdade. Não conhecemos tão fundo essa causalidade.
Sobre a sua obs.: Daí, sobre a divisão entre nascer com olhos azuis, ter um corpo orgânico, ter carbono na constituição das células cai no mesmo caso que a repetição de propriedades, como eu explicitei anteriormente. Assim, voltando para o assunto, não concordo com que as propriedades estejam no mundo; mas afirmo que encontramos as propriedades quando apreendemos as semelhanças entre os particulares no mundo. Portanto, o DNA e as propriedades menos essenciais não são das coisas, mas do modo como apreendemos as coisas.
Um exemplo é um particular que dizemos que tem a propriedade de "ser juiz". No caso, penso que ele exerce algo para se sustentar e que esse algo, por se assemelhar a outras coisas que outros fazem, ganhou um nome, a profissão de juiz. Não é o caso que ele tenha a propriedade de ter a profissão de juiz, mas ele tem a propriedade de fazer determinadas ações profissionais que o dão sustento, chamamos isso de "ser juiz". Mas a propriedade de ser juiz, quando atribuída a algum particular já dá a sensação que a universalidade da profissão deve ser embutida como propriedade do particular, e não como relação feita por nossa cabeça. Contudo eu não penso assim. Penso que a universalidade da profissão se dá em nossa mente quando comparamos semelhanças entre as propriedades das profissões de particulares.
Resultando do que afirmei, penso que a propriedade de "ser vermelho" é inventada por nossa mente a partir da real propriedade menos essencial X de um certo particular. Pois este certo particular tem a propriedade menos essencial de ter certas partículas que se refletem como um tom de vermelho (mutável de acordo com o estado ou quantidade das partículas) em cada tipo de luz. Assim, de tudo que dizemos que é vermelho, estamos dizendo que ele tem em sua propriedade essencial a regra para certo tipo de modificação em suas propriedades menos essenciais.
No caso do vermelho do tomate apodrecer é porque parte da constituição essencial de um tomate permite a modificação da propriedade menos essencial "ser do tom tal de vermelho", pois esta varia de acordo com a quantidade e qualidade de partículas Y que se refletem como o vermelho tal. Parece-me que precisamos admitir um idealismo em todas as propriedades, inclusive no caso do DNA, pois o DNA é também uma representação no nosso aparato perceptivo. A atribuição de quaisquer propriedades parece uma atribuição mental, uma divisão da constituição do que algo é realmente feito.
Tendo dito tudo isso, posso concordar com você que podemos dividir o particular em propriedades essenciais e várias e mutáveis propriedades menos essenciais. Contudo também penso que só existe uma propriedade essencial por particular e que este tem que ser visto em um determinado tempo T. Assim, não vejo como, num mundo possível, falar de um determinado particular se ele não tiver alguma das propriedades que eu afirmei que ele tinha. Concordo, então, que podemos usar a terminologia "essencial", mas não oposta a "não-essencial". E em vez de não-essencial usaríamos menos essencial. Eu concordo com sua distinção, mas não com a terminologia. Isso se levarmos em conta que eu penso que só há 1 propriedade essencial: a constituição do particular (e cada propriedade tem regras de funcionamento, que parecem essenciais à propriedade). Assim, sobre a essencialidade ou não-essencialidade, penso que não deveríamos usar esses termos em contraposição nas propriedades. Penso que as únicas dicotomias possíveis no sentido em que estamos procurando é entre inato/não-inato ou mutável/imutável.
Parece possível aceitar que algumas propriedades existem em mais mundos possíveis que outras. Mas para aceitar isso, devemos ter que aceitar primeiro que os mundos possíveis são regidos pela possibilidade metafísica & que devemos aceitar a pressuposição metafísica de que só existem coisas feitas dos materiais que nós sabemos que existem formando essas coisas. Pois se eu não aceitar essa pressuposição e pensar que seja possível que haja um olho que não seja feito de elétrons (por exemplo), então essa medição entre mundos possíveis e propriedades se tornaria inviável. E não é contraditório pensar uma coisa dessas, pois não conhecemos todas as propriedades do universo e nem todos os tipos de relações que podem ocorrer entre elas.
Sobre a relação que une as propriedades ser menos essencial (ou não-essencial, nos seus termos), isso significaria que não é imutável o modo como as propriedades estão unidas. Só que afirmar uma coisa dessas é afirmar que no futuro poderá ser o caso dessas propriedades estarem unidas de outro modo. E eu não acredito que temos como provar a veracidade ou falsidade dessa afirmação. Não podemos saber se essa relação é mutável ou imutável; dela podemos dizer apenas que é inata, em contraposição a não-inata (ou adquirida). Se essa relação une de maneira essencial as propriedades, como haveria mudanças nesse particular? Se a relação que unisse as propriedades fosse essencial, poderíamos dizer que em todos os mundos possíveis onde há H2 e O em certas circunstâncias, há água. Embora a relação que une H2 e O não pareça se alterar, um certo particular de água pode passar por diversas transformações. E seria "não-essencial" se pudesse ser o caso de um dia esquentarmos a água e ela, em vez de evaporar (como costuma fazer), ela congelar. Daí a relação que une as propriedades seria não-essencial. Entretanto, não sabemos se um dia esquentaremos a água e ela vai congelar. Donde me faz dizer que não sabemos se essa relação é essencial ou menos essencial.
Mas, Rodrigo, definitivamente eu penso que seja melhor nós começarmos a falar de imutabilidade/mutabilidade e inato/adquirido do que essencial. Dá uma pensada nesse tipo de distinção que estou propondo para substituir a distinção essencial/não-essencial.
Rodrigo Figueiredo:
Acredito que vai ser difícil nossa discussão, mas vamos lá. Um particular é percebido como um feixe de propriedades, tenho de concordar. Mas acredito que estamos divergindo acerca do que é "perceber". Defendo que perceber é o ato de apreender "coisas" no mundo; por mais que nossa percepção possa estar distorcida em relação à realidade, temos que admitir que nossa percepção é voltada para o mundo externo e, até certo ponto, podemos compreender esse mundo e fazer juízos verdadeiros acerca dele. Acredito que nossa representação da realidade corresponde à realidade (uma realidade limitada); e ainda, que a realidade é independente de nosso pensamento sobre ela: há nela entidades que não dependem da mente, nem da linguagem. Admito que há objetos fora e independente de nossa mente. Essa posição está implicada no nosso uso diário da linguagem tendo em vista a comunicação com as outras pessoas; e pode ser até condição para essa comunicação. Não há conversa se estamos pressupondo um ceticismo acerca das entidades das quais falamos. Por exemplo: Na frase "Pelé é jogador de futebol", estou predicando ao sujeito 'Pelé' algo (ao qual chamo propriedade) que há no mundo independente de minha mente e de minha linguagem, que é "ser jogador de futebol".
Defendo que há particulares no mundo, e se formos investigar a fundo esses particulares constatamos que eles se assemelham em suas partes constitutivas; essa semelhança não é uma mera relação mental que faço, mas parece estar nas coisas. Para usar de seu exemplo: uma pedra tem a constituição XPAFTUAKSD, um homem tem a constituição XÇKQOEWMB; o X que todos os dois possuem, e me parece que isso não ocorre dentro de minha mente, é uma propriedade que tanto a pedra quanto o homem têm, a propriedade, por exemplo, de possuir elétrons em sua constituição. Constatamos semelhanças nos particulares, quando o investigamos, cada vez mais universais, na medida em que tais semelhanças estão sendo exemplificadas por um número imenso de particulares. Entretanto, mesmo investigando exaustivamente os particulares, será difícil chegar ao mais universal dos universais, ou seja, uma propriedade que está em todas as coisas num mesmo tempo e em diferentes lugares no espaço; pois nossa representação do mundo é limitada e chega um ponto em parece-nos vedada a possibilidade de conhecer.
Outro exemplo: um determinado diamante tem a propriedade de ser 'duro', e também a propriedade de ser constituído de carbono. Um homem já não é tão resistente quanto o diamante, mas também tem carbono em sua constituição. Mas agora se pego dois homens: estes têm boa parte de suas constituições parecidas; eles variam em algumas propriedades genéticas e sociais, mas eles não variam em todas as propriedades, as propriedades que fazem deles homens permanecem enquanto eles existirem.
Quando você fala "quando falamos Pelé, estamos nos referindo à pessoa que foi o jogador de futebol tal e tem tais propriedades menos essenciais e uma certa propriedade essencial", eu não posso concordar com você, pois acredito que a função dos nomes não é descrever propriedades, mas apenas se referir àquele objeto portador das propriedades. Quando eu digo 'Rodrigo', a quem eu estou me referindo? Às propriedades que Rodrigo tem? Mas quais propriedades ele tem? Do mesmo modo quando digo Pelé, estou apenas designando alguém que por acaso foi jogador de futebol(...).
Devo te dizer que as propriedades não dependem da linguagem nem da mente. O fato de meu DNA ser um DNA de 'ser humano' não me parece estar dentro de minha mente, ou de qualquer outra pessoa, mas sim em minhas células. Outro exemplo: o fato de Pelé ter sido jogador de futebol não está dentro de minha mente. O fato de Pelé ter o DNA humano também não está dentro de minha mente.
No seu exemplo “ser juiz” – essa também me parece uma propriedade que pode ser atribuída aos particulares (como a de ser jogador de futebol); e é do mesmo modo independente de minha mente o fato de alguém ser juiz, dado o que é ser juiz. Ela é uma daquelas propriedades adquiridas socialmente, e não das propriedades inatas que estão no DNA.
Não acredito que a propriedade "ser vermelho" é uma criação total de nossa mente. As cores dependem da luz, de nosso olho e do objeto em questão: dada as condições de luz o objeto será para nós vermelho. Em condições normais de luz, um tomate maduro será vermelho. Eu já admiti o idealismo em relação às cores, então vamos em frente. Não me parece que devemos admitir um idealismo em relação a todas as propriedades. A propriedade de ter o DNA humano (por mais que DNA possa ser uma mera construção teórica) não está em nossa mente: prova disso é que se levarmos um pequeno tecido humano em um laboratório, eles constatam com 99,9999% de certeza que aquele tecido é humano e não de um macaco.
Aceito a sua proposta de distinção. Os particulares são constituídos de propriedades inatas e adquiridas. Por outro lado podemos constatar entre as propriedades inatas e adquiridas aquelas que são mutáveis e imutáveis. Mas temos que discutir melhor a questão sobre a "representação da realidade", pois parece-me que ainda divergimos quanto a isso.
Defendo que quando falamos e nos relacionamos com a realidade, o que importa é que mesmo usando outras convenções (como o DNA passar a ser ÇPE) a coisa não deixa de ser o que ela é: DNA não deixa de ser DNA. A realidade corresponde completamente à nossa representação dela, todavia por mais afastada que nossa representação possa estar da realidade, ela ainda está totalmente vinculada a ela, pois sua função é a de "captar" no mundo e nos permitir viver nele, e não de "produzir" quimeras. Nossa representação da realidade nos permite conhecer o mínimo necessário do mundo objetivo para sobreviver às necessidades impostas por ele. Podemos exemplificar isso se pensarmos em um mapa: nele temos uma representação da realidade, que embora não consiga abarcar aquela realidade pormenorizadamente, podemos até certa medida nos orientar por ele.
Rodrigo Cid:
Eu defendo que o ato de perceber é o ato de se direcionar ao grande X que é o mundo e, utilizando nosso aparelho cognitivo específico (humano), distinguir particulares e suas características (que estamos chamando de 'propriedades'). Daí percebe-se que eu considero que algo nos vem do mundo, e é por captarmos dele que podemos perceber diferenças e semelhanças nesses particulares, sem que façamos força para isso; a percepção dessa diferença/semelhança é natural. Contudo ela só ocorre da maneira que ocorre por causa do tipo do nosso aparato perceptivo; se tivéssemos outro, poderíamos apreender outro particulares com outras características. Se o particular difere de acordo com o aparato que o percebe, então a percepção daquele particular como aquele particular com aquelas propriedades é relativa ao aparato que está percebendo. Entretanto, como eu disse antes, creio que parcela do particular vem do mundo, pois se não fosse assim, não nos seria tão fácil perceber. Mas parece que há uma constituição específica, pois os particulares se apresentam como um certo particular para qualquer ser que tenha um determinado tipo de aparelho cognitivo (quero dizer: perceptivo). Assim, um ser humano aparece como um ser humano para qualquer ser humano, enquanto um ser humano não parece como ser humano para qualquer ameba.
Mas e então, o que são os particulares que percebemos? Acredito que os particulares que percebemos são divisões que fazemos da realidade de acordo com nosso aparato mental. Eu não estou dizendo que quando vemos um cometa se chocando com um planeta, que é dependente de nossa mente que ali esteja acontecendo alguma coisa. De fato está ocorrendo alguma coisa. Assim como está ocorrendo em muitas partes do universo (partículas dançam no universo). Mas aquilo ser percebido como um cometa ou como um planeta, isso é dependente*. Para negar isso, penso que você deveria ter que me dar um motivo para que eu aceite a divisão (que me parece arbitrária) de particulares a partir do modelo perceptivo humano. [*: Mas não sei se o choque entre eles é dependente de nossa mente. Me parece que algo, seja lá o que for esse algo, ocupa realmente um certo local no espaço, e seu deslocamento (o fato de ele estar se deslocando) parece independente de nossa mente.]
Portanto, somente partindo de certo idealismo inicial, parece-me que podemos falar de particulares como particulares (pois sem esse idealismo podemos apenas falar “ocorre algo neste lugar, que é dentro de X, que é o mundo (realidade)”). Assim, dependendo do tipo de particular, eles se dividem de duas formas:
Particular: constituição XWERTFDSAZXCV + “Propriedades Sócio-Intelectuais” + Regras de Funcionamento das Propriedades em contato com a Realidade + Regras de Funcionamento das Propriedades em contato com outras Propriedades nesta realidade.
Naturalmente, como nem todos os particulares compartilham de consciência, nem todos os particulares têm propriedades sócio-intelectuais; mas então a fórmula seria Particular: XWERTFDSAZX + Regras de Funcionamento das Propriedades em contato com a Realidade + Regras de Funcionamento das Propriedades em contato com outras Propriedades nesta realidade.
Contudo, eu ainda não sei se essas RFPR e RFPP são propriedades da coisa ou do estado de coisas. Pelo fato de eu poder pensar que essas propriedades, se as regras que as regem ou se as regras que regem a realidade onde elas se encontram mudassem, poderiam fazer outras coisas combinadas com as mesmas propriedades, eu imagino que uma propriedade aparecer depende tanto das regras que regem aquela propriedade, quanto das regras que vão reger aquela realidade. Uma analogia que poderia ser usada para se compreender o que eu estou falando é a comparação entre genótipo e fenótipo: o fenótipo só ocorre graças às regras do DNA, às regras da realidade e ao modo como se encontra o estado de coisas onde aquele DNA está se manifestando.
Sim, concordo com você que fazemos juízos verdadeiros sobre o mundo, mas fazemos esses juízos sempre dependentemente, assim: “dado de que chamamos isto que está ocorrendo de chuva, então está chovendo”. Dessa forma, suponha que somos Deus e que nós temos a capacidade de observar todo o universo, toda a realidade, de fora. Digamos, que como Deus, possamos escolher observar o universo com qualquer tipo de aparelho perceptivo e em qualquer tamanho (desde átomos até planetas). Digamos que nós decidamos observar as partículas atômicas das coisas e que decidamos observar o local onde se encontra o que outro (que não Deus) perceberia como a casa da minha mãe. Digamos que “outro que não Deus”, neste dia, neste horário, perceberia dentro da casa da minha mãe uma briga entre ela e meu padrasto. Mas aqui não somos outro, somos Deus, e resolvemos passear pelo mundo com “visão atômica”. Não creio que nós, como Deus, indicaríamos que há qualquer particular como “a mãe do Rodrigo” ou o “padrasto do Rodrigo”, indicaríamos apenas que ali, naquele lugar, naquele tempo, ocorre um determinado fluxo de partículas. Neste caso, nós (Deus) estamos identificando particulares menores com outras regras de funcionamento, e os outros humanos estariam identificando como particulares outras divisões da realidade com outras regras. A escolha por uma das visões para ser a realidade não parece arbitrária? Vale a pena lembrar agora da incompatibilidade entre as teorias físicas que tratam de planetas e as que tratam de partículas.
Assim, quando digo: “Pelé é um jogador de futebol” (digamos que atualmente ele seja um jogador de futebol) não tenho problemas em concordar com você que estou predicando algo de outro algo, mas com a ressalva de que dado o mundo e seu reflexo no nosso aparato cognitivo. E isso não me causa problemas em aceitar que essa sentença é verdadeira. E não me causa problemas, porque penso que uma das funções da linguagem é falar das coisas que percebemos; e percebemos Pelé, percebemos muitos jogos de futebol, percebemos que Pelé é um jogador. Mas não é o caso que a realidade do que percebemos como Pelé é ser Pelé, pois o Deus de visão atômica que supomos, ainda que separasse como pedaço da realidade o isto que determinamos como Pelé, não falaria de tal propriedade como “ser jogador de futebol”, ele falaria apenas de propriedades das partículas quando em contato com outras partículas ou quando sozinhas, nesta realidade.
“Ser jogador de futebol” é um tipo de coisa que pode não ser percebido com outro tipo de aparelho cognitivo, por isso eu não diria que é uma propriedade da coisa. A propriedade de “ser negro” parece diferente de “ser jogador de futebol” no ponto de que a propriedade de ser negro (vista sob o ponto de que ser negro é um reflexo da “propriedade de ser negro”) pode ser encontrada no particular independente do tamanho que se queira observar aquele pedaço de realidade que denominamos de particular Pelé. [Não tenho certeza sobre essa última afirmação]
A semelhança que se encontra nos particulares não está no mundo porque uma certa divisão da realidade não está no mundo. Agora, que há semelhança na constituição de certas partes do que percebemos do mundo, isso é atestado pelo fato de percebermos semelhanças nas divisões e representações da realidade que fazemos (nos particulares que percebemos no mundo).
Dessa forma, mesmo defendendo o que eu estou defendendo, penso que deve me ser dado o direito de falar sobre entidades particulares.
Sobre o homem e a pedra, o caso é o seguinte: Digamos que -QWERT & ASDFG sejam constituições de duas parcelas da realidade que conhecemos por Renato e Roberto. -A combinação QWERT indique uma pessoa morena nesta realidade. -A combinação ASDFG indique uma pessoa morena nesta realidade. Se a percepção daquelas constituições pudesse ser vista como realmente é, em vez de falarmos da propriedade de ser moreno que Renato e Roberto teriam, falaríamos da falta de semelhança entre aquelas partes da realidade que perceberíamos como QWERT e ASDFG. Assim, não é necessário para que encontremos semelhanças naquilo que percebemos que a constituição daquilo seja a mesma; nem mesmo é necessário que haja nada semelhante, pois combinações diferentes podem dar na mesma (ou melhor: semelhante) representação. Poderia aqui ser o caso, entre o homem e a pedra (que serão aqui também representados por QWERT e ASDFG, respectivamente), que QWE e ASD dessem no que você está chamando de “propriedade de ter elétrons”. Assim, a constituição real daquelas duas parcelas da realidade é QWE e ASD, mas quando percebemos aquilo, percebemos como uma propriedade E. Contudo, não há necessidade nenhuma de QWE ou ASD ser de fato E. Há necessidade apenas que, dado nosso aparato cognitivo, percebamos QWE e ASD como E. Por isso eu falo que “ser feito de elétrons” é algo atribuído pela sua percepção.
Tendo justificado a necessidade de termos que aceitar um certo idealismo, posso continuar. Gostaria antes que você me esclarecesse que tipo de percepção eu devo usar para falarmos de particulares. A percepção pelos sentidos humanos ou por esta ampliada (microscópio)? Ou a de Deus (o Deus suposto por nós)? Se estivermos falando da apreensão humana das coisas, então concordo que percebemos semelhanças nos particulares e que quanto mais particulares apresentam determinada característica, esta é chamada de mais universal.
Sobre Pelé, não penso que está em questão se os nomes referem através de sentido ou se referem diretamente, mas o que eu quis dizer é que nomes referem a algo no tempo (seja lá como façam isso) e que, então, não só suas propriedades imutáveis são necessárias para que aquele particular seja aquele particular específico. As propriedades que no passado um particular teve não podem ser retiradas de um particular, pois não estamos certos de que tipos de modificações isso pode causar. Ao falarmos de um determinado particular, estamos tanto falando (seja indiretamente ou diretamente, tanto faz) de algo que tem e teve determinadas propriedades imutáveis e mutáveis & inatas e adquiridas. Ao retirarmos qualquer propriedade do passado desse particular, estamos deixando de falar do mesmo particular.
E discordo, Pelé não foi por acaso jogador de futebol. Pensei que já tínhamos acordado que ser jogador de futebol foi um fato necessário a ocorrer com Pelé, dado os motivos e todo o rumo dos acontecimentos na vida de Pelé e no mundo. 'Pelé' está designando um determinado particular específico & este particular foi jogador de futebol. Se o fato dele ser jogador de futebol é indicado pelo nome ou não, isso, como eu disse, não vem ao caso. O fato é que o objeto que está sendo designado pelo nome foi jogador de futebol. E falar dele sem que ele nunca tenha sido jogador de futebol não é falar dele; é falar de outro particular, criado por nossa imaginação, com um conjunto semelhante de propriedades.
Sobre o “ser juiz” e “ser jogador de futebol”, penso que elas não podem ser exemplificadas para nós em um mundo possível onde a nossa percepção (só a minha e a sua, e não a do resto do mundo) seja sub-atômica e as coisas sejam as mesmas. Se chamarmos tais coisas de propriedades, temos que saber que elas são coisas bem distintas daquilo que estávamos chamando de propriedades (o “DNA” ou o reflexo perceptivo) e, pelo exemplo do mundo possível, parece que ela não é própria do particular.
Parece-me, então, que o idealismo tem que ser admitido com relação a todas as coisas. E daí podemos começar. Podemos iniciar do “DNA”, mas sabendo que estamos falando de um mundo a partir da nossa percepção. E então, eu poderia aceitar o falar de propriedades, de particulares, de DNA e todo o resto.
Parece-me que representamos a realidade baseados em dados da realidade, onde só temos consciência desses dados quando eles já estão decodificados pelo nosso aparelho cognitivo. Penso que a realidade é informação, são dados pairando num espaço próprio para aqueles dados, e que quando são captados por algum aparelho perceptivo, eles são representados como uma realidade possível para aquele particular percepiente, seja uma ameba ou um homem.
Rodrigo Figueiredo:
Acredito como você que há certa relatividade na relação entre o "sujeito" que conhece e o particular (ou o objeto) que é conhecido. Essa relatividade, acredito eu, advém de nossa limitada forma de conhecer os objetos, ou os particulares, e suas relações no mundo. Não acredito, todavia, que o mundo seja um grande X; o mundo mesmo parece estar determinado segundo suas próprias leis, mas a nós, seres de limitado conhecimento, vemos X quando começamos a refletir sobre o que está como fundamento daquilo que para nós não é X. Por exemplo,vemos um homem e acreditamos (acredito que corretamente) que aquele homem tem um X em sua constituição que faz dele homem.
Nossa reflexão faz com que surja aquele X, que corresponde a uma dimensão da realidade à qual não temos acesso direto como temos da dimensão abarcada pelo aparelho cognitivo humano. Entretanto, parece que a realidade nos fornecer dados que nos permitem compreender algumas relações que a regem. O X, portanto, não esta no mundo, mas em nossa fraca capacidade de conhecer as coisas completamente, ou seja, em nossa mente. Olhando para o mundo vemos que de todo efeito podemos procurar a sua causa; mas chega-se um ponto que fica-nos vedado o conhecimento de todo o nexo causal que determina um evento. Mas admitimos que o evento ocorreu, pois observamos o efeito que nos remete a uma causa que o causou (conhecida ou não).
Em relação ao DNA humano: por mais que não podemos identificar completamente em um determinado homem o que é a causa dele ser homem, temos que admitir que há algo em sua constituição (que para nós é um X, mas sua constituição mesma já é determinada) que faz dele homem, dado que ele é compatível geneticamente com os outros homens, ou seja, seu DNA tem estruturas semelhantes às do DNA de outros homens.
Quando digo "água", se sei o significado de tal termo, estou me referindo a algo no mundo que mata minha sede, com o qual me lavo, cozinho minha comida, etc. Quando digo "H2O" estou me referindo àquele mesmo líquido, agora a partir de uma consideração mais aprofundada, tentando me ater às pequenas partes daquela matéria, procurando descobrir as propriedades que não são observadas tão facilmente se olhamos para ela. Ainda nessa mesma substância nós podemos comprovar empiricamente algumas propriedades, tal qual a de "hidratar o corpo animal". Não me parece que tenho que admitir algum idealismo referente à propriedade da água de matar minha sede ou de qualquer outro animal – apesar de, em última instância, eu não saber o porquê da água matar minha sede. O que me parece é que determinadas coisas, às quais chamo propriedades, são mais fáceis de serem atestadas empiricamente, como a propriedade da água de matar a sede, ou a propriedade que tem um particular de ser homem, propriedade essa inscrita em seu código genético, mas as propriedades que estão como fundamento daquelas propriedades (de ser homem, ou matar a sede) nós não conseguimos enxergá-las com clareza total, pois elas estão em uma dimensão à qual não acessamos empiricamente.
Uma questão importante que acredito haver é referente à semelhança. Acredito que há dois tipos de semelhanças uma que se refere metafisicamente aos objetos, e outra epistemologicamente. A propriedade de “ser humano” contida no DNA de um determinado homem é semelhante à propriedade contida no DNA de outro homem; e essa semelhança não é meramente mental, mas está no mundo; a semelhança que está no mundo é a que se refere metafisicamente aos objetos. Por outro lado, acredito que nossa apreensão de semelhanças no mundo, nos dá expectativas de outras semelhanças, às quais não atestamos com clareza, como no caso das cores: vejo que a cor vermelha de um carro e de um tomate maduro são semelhantes, mas não podemos atestar uma raiz comum daquela propriedade que se apresenta a nós como uma propriedade única das duas coisas, que é a propriedade dos dois objetos serem vermelhos. Assim, acredito que algumas vezes temos que admitir certo conteúdo mental à semelhança atestada nas propriedades de dados objetos, mas em relação a outras propriedades do mesmo objeto temos um acesso mais objetivo.
Rodrigo Cid:
Concordo com você que não é o caso que o mundo é um grande X. O mundo é de uma certa forma. Por mais que o mundo seja informação, esta informação tem que ter alguma forma. Assim, concordo com você que o mundo é de uma maneira, mas que quando apreendido por um aparelho perceptivo, ele torna-se um reflexo da constituição que tem. E é deste reflexo que falamos quando falamos dos particulares ou das propriedades. Concordo também que é somente quando nos direcionamos ao mundo que percebemos que o mundo nele mesmo não pode ser percebido (o que eu queria dizer com "um grande X").
Em relação ao DNA humano: por mais que não possamos identificar completamente em um determinado homem o que é a causa de ele ser homem, temos que admitir que há algo em sua constituição (que para nós é um X, mas sua constituição mesma já é determinada) que faz dele homem, dado que ele é compatível geneticamente com os outros homens, ou seja, seu DNA tem estruturas semelhantes às do DNA de outros homens. -Rodrigo Figueiredo.
Concordo. Sobre as supostas propriedades de "matar a sede" ou "hidratar o corpo" da água, penso que não está na constituição da água ser feita também para matar a sede. Se os seres que vivessem na Terra não consumissem água, mas a água fosse exatamente igual ao que é hoje, parece-me que essa propriedade simplesmente desapareceria da água. E quando falamos de propriedades, parece que elas devem ser independentes de o que elas são para alguém (levando em conta que aceitamos que partimos de nossa percepção). Propriedades de uma coisa não podem sumir e aparecer conforme se modificam os particulares a volta dessa coisa. Penso que o motivo de a água matar sua sede é que ela é de uma tal constituição que combina muito bem com as necessidades do seu corpo; mas isso não é uma propriedade da água, ela hidratar seu corpo é uma propriedade do estado de coisas: é graças ao mundo ter suas regras, graças ao seu corpo ter certa constituição e a água ter certa constituição que ocorre o fato de a água hidratar o seu corpo. Caso qualquer um desses três mude, essa propriedade poderá se alterar. Assim, eu não diria que é uma propriedade da água matar sua sede, mas que é uma propriedade do estado de coisas. Propriedades relacionais não podem ser propriedades de particulares. Penso que propriedade é o que é refletido pela presença da coisa na percepção que escolheríamos para adotar. Não está refletido na presença da água que ela hidrata o corpo, seja a vendo com a visão ou visão ampliada. Somente percebemos sua capacidade de hidratação quando adicionamos outro particular.
Sobre a semelhança no mundo, penso que poderíamos dizer melhor "semelhança entre as partes do mundo", a semelhança de refletir um tipo de propriedade ou particular para um certo tipo de aparato cognitivo. Posso, então, concordar com você e admitir que há semelhança no mundo. Acredito que algumas vezes temos que admitir certo conteúdo mental à semelhança atestada nas propriedades de dados objetos, mas em relação a outras propriedades do mesmo objeto temos um acesso mais objetivo. -Rodrigo Figueiredo.
Concordo. Parece realmente haver a distinção entre qualidades primárias e secundárias.
Rodrigo Figueiredo:
Concordo com sua objeção quanto à suposta propriedade da água de matar nossa sede, fui infeliz no exemplo. Agora que concordamos com alguns aspectos de nossa percepção da realidade, a qual ponto devemos voltar na discussão?
Rodrigo Cid:
Ainda não sei. Precisamos fazer uma retrospectiva do que concordamos para podermos seguir em frente.