Descartes expressa sua insatisfação com o conhecimento adquirido nas instituições de ensino da época (autoridade da bíblia ou do aristotelismo), expõe seu objetivo de alcançar algo de certo nas ciências e, com isso, fundamentar a totalidade do saber humano; e propõe realizar essa cruzada desfazendo-se de suas antigas opiniões para que recomece tudo desde os fundamentos. Daí, ele apresenta sua dúvida como sistemática e hiperbólica, assim: (A) o que é provável será tomado como duvidoso e (B) o que é duvidoso será tomado como falso. Direciona-se, então, aos fundamentos e princípios de suas antigas opiniões, pois expor as dúvidas individualmente seria um processo infinito.
Embora Descartes admita que tudo que aprendeu adveio dos sentidos, ele julga prudente não confiar neles, pois eles podem nos enganar (por exemplo: caso do caniço na água), já que já o fizeram alguma vez. Mostra que a loucura poderia servir de argumento para questionarmos situações sensíveis normalmente não duvidosas (como eu estar olhando para várias pessoas agora), mas que pensa ser melhor apresentar um outro argumento a seguir, a saber, que como podemos ter sonhos tão “normais” quanto o cotidiano e tão “absurdos” quanto um dia de um louco, nos é impossível distinguir o sonho da vigília. E, como nos é impossível distinguir o sonho da vigília, o que está se passando agora pode ser ilusão (pois quando estamos dormindo tudo que nos representamos é ilusão); contudo, também quando sonhamos tomamos aspectos da realidade, e só eles, para as nossas representações. Então, se tudo for ilusão, vêm de algo verdadeiro -- o que o diferencia do cético.
Descartes argumenta contra sua própria dúvida, mostrando coisas indubitáveis na natureza corpórea, tanto no sonho, quanto na vigília, a saber, (Y): a figura, a quantidade, a extensão, o espaço, o tempo (objetos da matemática) e outras coisas simples semelhantes. Ciências que tratam de coisas simples, ou seja, (Y), como a Aritmética e a Geometria têm algo de indubitável, pois que em sonho ou acordado elas não se modificam ("2+2=4" é sempre verdadeiro, seja sonhando ou acordado). Mas duvida disso também, dado que poderia haver um Deus que poderia fazê-lo perceber tudo como percebe, embora nada houvesse da forma que se apresenta. Postula também a possibilidade de Deus o enganar no que julga saber com certeza, desacreditando até as matemáticas.[Argumento do Deus Enganador]
Para quem não acredita em Deus, Descartes o supõe como uma fábula ou outro, mas afirmando que quanto menos poderoso for o autor de sua origem, mais será provável que Descartes se engane sempre. Decide, então, suspender seus juízos sobre o que houvera no passado tomado como verdadeiro (suas opiniões), pois não há nada de que ele não possa duvidar atualmente. Embora suas antigas opiniões sejam prováveis, elas são duvidosas; e, enquanto tais, prefere vê-las como falsas para que não influenciem no seu reto caminho do conhecimento da verdade, colocando, assim Deus, uma antiga opinião, como também duvidosa.
Faz, Descartes, uma ficção em sua teoria, supondo a não-existência de Deus e a existência de um Gênio Maligno todo poderoso, que o enganaria em todas as coisas externas, nas matemáticas e no seu corpo; entretanto este Gênio não pode impor nada à sua crença. Sendo assim, suspende seus juízos para escapar às possíveis ilusões. Descartes, então, expressa seu temor frente à sua dúvida (a dúvida metódica), pois que se não solucionada pode nos trazer mais obscurantismo que clareza, nos levando ao mais profundo ceticismo.
SEGUNDA MEDITAÇÃO
Descartes afirma que continuará com seu mesmo método, até que encontre algo de certo ou até que tenha aprendido que não há nada de certo. Diz que tem direito de ter esperança de encontrar algo de certo e indubitável para poder fundamentar um novo paradigma de mundo. Então, se pergunta se após a dúvida descobrirá que de verdadeiro só há que “não exista mais nada certo”.
Procurando algo de certo, Descartes se questiona se pode invocar a certeza de Deus ou a existência de si como indivíduo concreto, mas nada o exige. Todavia, eis que o Gênio Maligno o engana, por isso não há dúvida de que ele (Descartes) é, pois somente enquanto pensa ser alguma coisa e apenas mediante isso que pode ser enganado; “logo eu sou, eu existo” é sempre verdadeira quando enunciada ou pensada.
Se questiona, então, pela natureza desse eu (a res cogitans), dizendo que examinará apenas o que é dado, para que não se equivoque no conhecimento das coisas que afirma serem claras e evidentes. Começa, então, o exame, partindo de suas considerações do corpo humano como máquina biológica e da alma como um ar tênue disseminado no corpo. Descreve a natureza corpórea como tendo extensão, podendo ser captada pelos sentidos, não tendo o poder de mover-se a si mesma, nem de sentir, nem de pensar, já que essas são faculdades de apenas alguns corpos. Afirma que a res cogitans não possui natureza corpórea, por força do Argumento do Gênio Maligno. Explicita alguns atributos da alma dependentes do externo ao do corpo, chegando finalmente ao pensar, que é o único que não pode ser separado dela.
Atentando para as coisas que lhes são conhecidas, procura a natureza da res cogitans; advertindo para o caminho pela ou na imaginação, pois que essa última apenas se forma em detrimento de algo externo que, pos sua vez, fora excluído pela dúvida. Ele destrincha a res cogitans em seus modos, a saber, (Z): duvidar, conceber, afirmar, negar, querer, imaginar e sentir. Cada modo de (Z) remete ao ator que os faz ou sofre; e, por mais que seja ilusório o que imaginamos ou sentimos, as respectivas faculdades realmente fazem parte da res cogitans, pois que implicam em pensamento puro.
Descartes retoma o pensamento do senso comum, segundo o qual a res extensa é mais claramente conhecida que a res cogitans. Começa tomando uma cera, apontando-a como exemplo de res extensa com dadas características específicas. Ao aproximá-la do fogo, a cera se modifica em todas as suas apreensões sensíveis, mas mesmo assim a identificamos. Não fazemos isso pela aparência do corpo ou pela nossa capacidade de imaginar (que nos dá finitas quantidades de aparências), e sim pela extensão, pois que a cera pode assumir infinitas formas além de nossa imaginação. Como na imaginação não conseguimos as variedades de acordo com a extensão (infinito atual) que uma cera pode assumir, é pelo entendimento que a capturamos dessa forma, donde pode ser confusa como no caso da cera ou clara e distinta como no caso do estudo da res cogitans.
Generaliza o conhecimento das coisas no entendimento e não na apreensão sensível, dando o exemplo dos chapéus que observa de sua janela e julga serem pessoas. Depois de verificar que não é com a imaginação ou com os sentidos que se conhece, mas com o entendimento; liga o que não é do entendimento aos animais e o que o é liga ao espírito humano. Afirma que se julga que a cera existe pelo fato de ser observada por ele próprio, eis que ele também existe por observar a cera; que, nela mesma, poderia nem existir, porque enquanto pensasse ver, tocar, sentir ou imaginar, pelo menos ele existiria. É certo apenas que penso percebê-la. E o que foi dito da cera vale para toda res extensa.
Diz que há tanto para se conhecer da res cogitans, advindo dela própria, que quase não seria necessário citar a res extensa, pois o espírito é mais fácil de se conhecer que o corpo, pois que se dá imediatamente: de toda res extensa de existência problemática, temos apenas idéias claras e distintas. Termina a segunda meditação reafirmando dois pontos importantes que aprendera até aqui, que serão analisados, por ele, com mais atenção na próxima meditação: Somente concebemos os corpos pelo entendimento, não pela imaginação ou pelos sentidos; e conhecemo-los por concebê-los pelo pensamento e não pelo fato de apreendê-los pelos sentidos ou pela imaginação.
TERCEIRA MEDITAÇÃO
Reafirma, Descartes, que é uma coisa que pensa, ou seja, uma coisa que (Z); onde aquilo que sente ou imagina se encontra nela na medida em que é um modo de pensar. Diz estar certo que é uma coisa pensante, pois que concebeu isso de modo claro e distinto e, portanto, verdadeiro. Enquanto tomava o que vinha por intermédio dos sentidos como duvidoso, tomava como claras e distintas suas idéias das coisas. Estas últimas estavam presentes no eu. Diz anteriormente ter pensado que havia coisas externas, semelhantes às idéias e de onde elas provinham. Contudo esse pensamento não tem fundamento.
Mostra que duvida de (Y) na medida em que supõe o Deus Enganador, mas quando se volta para o que pensa conhecer claramente, se persuade a pensar que não é possível que seja enganado em (Y), pois que não conseguiria conceber de outra forma. Resolve examinar, então: (i) se há Deus e (ii) se ele é enganador; pois que dessas respostas dependem nossas certezas futuras. Divide, assim, seu pensamento em gêneros, para verificar se neles há verdade ou falsidade.
A idéia é a representação ou a imagem das coisas. No sujeito ela é uma vontade, afecção ou juízo (V/AF/J), pois este, pela ação do espírito, acrescenta algo à idéia que tem da coisa (Ex.: Eu quero... Eu afirmo... Eu temo... etc.). As idéias em si mesmas e sem relações não podem ser consideradas falsas, pois que, dessa forma analisadas, não são mais verdadeiras umas que as outras; quaisquer que sejam elas. Nas afecções e vontades também não há falsidade; pois quando se quer, é verdade que se quer. Afirma, no entanto, que, no juízo, o principal erro é julgar que as coisas externas são similares às internas. Caso as idéias fossem apenas pensamentos sem relações com a res extensa, nunca imputaríamos em erro.
De onde vêm as idéias, segundo o senso comum? (a): De si próprio (faculdade de conceber pensamentos); (b): de coisas externas (ruído, calor etc.); (c): de ficções do espírito (quimeras). Descartes afirma que não sabe, até aqui, de onde desses três vêm as idéias; mas sobre as que parecem vir de (b), se pergunta “porque deve acreditar que são semelhantes às suas causas externas, as idéias?” A resposta do senso comum ensaiada por Descartes é (α): Essa semelhança parece ter sido ensinada pela natureza. (β): Essas idéias não dependem da vontade de quem as sente e são, portanto, diferentes de quem a sente. O senso comum pensa, então, que a coisa externa sempre imprime à idéia sua semelhança.
A crítica de Descartes a (α) é Cα1: Dizer que (α) é dizer que se está fundamentando algo em uma inclinação, não na luz natural, que é a única faculdade para reconhecermos algo como verdadeiro ou falso. Cα2: Como as inclinações não costumam levar mais ao bem que ao mal (ou vice-versa), elas também se desclassificam na possibilidade de distinguir o verdadeiro e o falso. E crítica de Descartes a (β) é Cβ1: Não depender da própria vontade não é um bom argumento, pois que as inclinações não o dependem; podendo até haver uma faculdade que mo represente sem auxílio externo. Cβ2: Se realmente viessem do externo, não implicaria que essas idéias se lhes fossem semelhantes. (“L ser causa de M” não autoriza “M assemelha-se a L”)
Conclui, dizendo que, até agora havia acreditado nas coisas externas apenas por um ímpeto sem fundamento.
Há alguma idéia em mim que tem valor objetivo? - se pergunta Descartes Se tomadas como formas de pensar, todas, igualmente, provêm da res cogitans. Se tomadas como imagens representativas, são diferentes entre si. As idéias que representam substâncias são mais perfeitas do que as que representam modos ou acidentes, sendo das primeiras, deus, a maior. Atributos de deus: Qualidades [DEUS]: infinitude, imutabilidade, eternidade, onisciência, onipotência e a criação de tudo que está fora de Deus.
Fazendo uso do princípio de causalidade, afirma que na causa eficiente (causa que cria) deve haver tanta realidade quanto no efeito (o que foi criado). Disso decorrem dois efeitos: (E1): O nada não produz coisa alguma; (E2): O mais perfeito não decorre nem depende do menos perfeito. É válido (E2), então, para as realidades atuais ou formais e objetivas, pois que para algo existir, deve ter origem em algo que o contenha formalmente ou eminentemente. Assim, a causa deve ter tanta realidade formal quanto à idéia o tem de realidade objetiva, sendo a realidade das idéias objetiva, e a realidade das causas formal. Mesmo que idéias advenham de idéias, chegar-se-á a uma primeira, cuja causa é como um padrão, “na qual toda a realidade ou perfeição esteja contida formalmente ou em efeito” 1, donde as idéias podem facilmente não conservar essa perfeição. Conclui dessa forma que, se percebe que tem idéias que não estão nele nem formalmente nem iminentemente, logo existe algo que não é ele e que é causa dessas idéias, o que será agora examinado.
Exclui as realidades “animadas” (como homem, anima, anjo etc.), pois que podem advir das idéias que tenho das coisas corporais e de Deus. As coisas corporais podem vir dele mesmo, porque apenas (Y) é concebido clara e distintamente nelas. Exclui também as idéias das qualidades sensíveis corpóreas (como o frio) que possuem falsidade material, ou seja, que podem representar coisas que não existem e das quais somos carentes. Como essa falsa representação se aproxima do não-ser, é possível que Descartes como ser imperfeito, seja seu autor. Quanto às idéias claras e distintas que temos das coisas corporais, Descarte fala que substância, duração, número e semelhantes, ou seja, (W1), são modos “como consideramos cada coisa enquanto ela continua sendo” 2 e, assim, podem também advir de si mesmo, a dizer, da própria res cogitans. Como (W2), a dizer, a extensão, a figura, a situação e o movimento de lugar, são apenas modos da substancia e ele próprio, como res cogitans, é uma substancia, é possível que (W2) esteja eminentemente nele.
As Qualidades [DEUS] são eminentes demais para se originarem no próprio eu (a res cogitans), pois que o máximo de realidade objetiva que tem a idéia de Deus implica, no mínimo, o máximo de realidade formal para a causa dessa idéia. Portanto Deus existe, pois só seria possível ter a idéia de uma substância infinita se alguma substância infinita a tivesse causado. A existência de Deus acaba com a hipótese do Grande Enganador, nos levando à existência de um Deus que nos garanta a verdade das idéias claras e distintas da res cogitans. [PRIMEIRA PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS: (D1)]
A noção de infinito é anterior a de finito, assim, a noção de Deus é anterior à noção da própria natureza, pois só podemos conhecer o que nos carece mediante a idéia de um ser mais perfeito, do qual podemos extrair um padrão comparativo. [SEGUNDA PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS: (D2)]
A idéia de Deus não é “materialmente falsa”, pois que é uma idéia clara, distinta e de maior realidade objetiva possível. A idéia de Deus é verdadeira porque não se pode fingir que ela não nos representa algo real. Tudo que Descartes concebe clara, distintamente e com alguma perfeição, está contido na idéia de Deus. Basta, então, que se concebam em Deus todas essas coisas e ainda outras ignoradas, de modo formal ou eminente.
Nesse ponto, um adversário diria: o poder de adquirir tais perfeições me imprimiu tais idéias. E a resposta de Descartes é que essas potenciais perfeições não se aproximam da idéia de Deus perfeito, atual e efetivo. O ser objetivo de uma idéia não pode ser produzido por um ser que existe somente em potência, mas apenas por um ser formal e atual. O homem não pode ser perfeito como Deus, pois que sempre pode aumentar seu conhecimento; o que, para Deus, é impossível.
De onde, Descartes questiona, ele tiraria sua existência, se não houvesse Deus? E responde: (Γ): De si mesmo; (Δ): Dos pais ou de outras coisas menos perfeitas. Se tivesse tirado sua existência de (Γ), não duvidaria, nem desejaria, nem lhe faltaria perfeição alguma; e, assim, seria Deus. Se tivesse tirado sua existência de (Γ), não teria se privado de coisas de fácil aquisição (como alguns conhecimentos que não possui) nem das de difícil aquisição (como as Qualidades [DEUS]). Dessa forma, havendo uma qualidade não possuída por Descartes, surgiria de novo a idéia de Deus. Admitindo-se a existência do eu sem nenhuma causa, ainda deveria existir Deus para que conserve esse eu, já que ele ter existido em algum momento não implica que deva existir atualmente. Ele procura em si mesmo o poder de criar ou de conservar (já que é o mesmo) a si mesmo no futuro, de produzir a si próprio. Contudo, não o sente em si mesmo; donde deriva que ele depende de outro ser. Se, então, depende de um ser externo, Descartes se pergunta se não seria de (Δ). Responde negativamente, pois que a causa de sua natureza deve também ser coisa pensante e ter em si todas as Qualidades [DEUS] atribuídas por Descartes próprio. Se essa causa tem origem de si mesma, ela é Deus e deve possuir em ato todas as perfeições cujas idéias se lhe concebe. Caso tire sua existência de outra causa diferente de si, perguntar-se-á por outras causas até que se chegue a Deus, pois terá que haver alguém que conserve e mantenha o eu, a coisa pensante. Não é possível que as idéias de perfeição não venham todas de Deus, mas venham de outras causas, pois a inseparabilidade das coisas existentes em Deus é uma de suas maiores perfeições.
Se pensarmos na hipótese (Δ), diz Descartes, segue-se que, se eles, os pais, foram responsáveis pelo nascimento de seu filho, isso não implica que eles o conservem atualmente ou que o tenham produzido como res cogitans. Portanto, como o eu existe, e nele a idéia de um Deus perfeito; a existência de Deus fica demonstrada. Não é pelos sentidos. Não é ficção, pois que se não pode acrescentar ou diminuir nada. Então a idéia de Deus é inata. Deus, ao criar esse eu de que falamos, colocou-lhe uma marca, donde é bem provável que conceba, a res cogitans, a semelhança entre ela e Deus, por meio da faculdade usada pela res cogitans para se conceber a si mesma. Deus é o único padrão de perfeição (pois as possui todas e não tem nenhuma carência que determine imperfeição) que a coisa pensante, incompleta, almeja alcançar. Logo, Deus não pode ser enganador, porque esse comportamento baseia-se na carência.
Afirma Descartes, que se deterá mais um pouco na contemplação do Deus perfeito e seus atributos, antes de passar às outras verdades que se poderão inferir dessas até então. Afirma que a presente meditação (a terceira), embora menos perfeita que a contemplação da Majestade divina (maior gozo de outra vida), dá o maior gozo dessa vida.