É preciso antes de tudo deixar claro que com os termos “poesia”, “poema” e “poeta” estão aqui sendo usados especificamente para referir à produção artística e ao produtor desta. Ainda antes de começar a exposição, é essencial lembrar que Platão expõe duas teorias sobre a poesia: (A) A primeira está presente no Íon e (B) a segunda em A República. Ambas, cada uma à sua maneira, desqualificam a poesia.
(A)
Sobre a primeira, cabe inicialmente colocar que ela é uma conversa entre Sócrates e um rapsodo (que chamava-se Íon). Isso faz com que o texto já inicie com um certo tipo de ironia: o fato de a poeia estar sendo apresentada por uma pessoa que está no mais baixo grau da hierarquia dos “poetas”1, um rapsodo.
É interessante também contextualizarmos histórico-culturalmente. No tempo de Platão, as constantes discussões na ágora faziam com que o logos filosófico ganhasse força; e este exigia de todas as coisas o seu fundamento. Daí, então, Platão o utiliza para questionar o logos poético, criticando a poesia a partir de critérios gnosiológicos e não da própria produção poética. Entretanto, a sociedade ainda era educada através dos versos de Homero; o quê parece ter sido a causa da cautela de Platão na desqualificação da poesia.
A tese que ele sustenta afirma que: (a1) os poetas não possuem tecné (que irei aqui chamar de “técnica”) e (a2) são inspirados pelos deuses. Por meio de Sócrates, Platão argumenta resumidamente da forma como a seguir. “Existem maus poetas que já fizeram bons poemas. O bom poema não pode ser fruto da técnica, pois se não 'o mau poeta que já fez um bom poema' teria a técnica de construir bons poemas e, assim, não deveria ser um mau poeta. Levando em conta isso e o fato de os bons poemas serem feitos quando o poeta sente-se fora de si (que é justamente o risco que Platão pensa como associado à mimesis; conforme também exposto na república), a causa de um bom poema é a inspiração divina. No entanto, tanto um bom poeta, quanto um mau poeta, não conhece as técnicas que mimetizam. E como: se alguém tem uma técnica, então ele tem o conhecimento dessa técnica (o conhecimento sem o qual seria impossível tanto exercer, quanto julgar uma tecné). Então, o mau poeta é um embusteiro e o bom poeta é um inspirado.”
Uma objeção levantada pelo próprio Íon à teoria de Sócrates é que não é preciso estar completamente fora de si para fazer/realizar um poema. Ele chega até a recitar uns versos de Homero sem parecer tão fora de si quanto Sócrates havia afirmado. E isso nos indicaria que: ou a teoria exposta por Sócrates é falsa (caso Íon fosse um bom rapsodo) ou que Íon era um mau rapsodo (se a teoria for verdadeira). Essa objeção não é respondida por Sócrates e, após o rapsodo ter recitado essa vez, Sócrates recitou todas as outras.
O quê Platão parece querer, ao restringir os poetas ao enthousiasmo (inspiração divina), é remover deles o conhecimento da técnica e, com isso, toda a proximidade com a tentativa de obter a verdade. Com o poeta fica apenas a habilidade de encantar por meio de inspiração divina. E neste momento histórico, ao sacralizar a poesia, Platão a está confinando para a decadência.
(B)
A segunda teoria platônica sobre a arte encontra-se em A República (conforme já disse). Da mesma forma que a anterior, ela desqualifica a poesia a partir de critérios externos à produção do poema; mas, diferentemente, essa crítica vai progressivamente tornando-se mais forte. Na tentativa da construção de sua polis ideal, Platão critica a poesia nas consequências que ela causa (segundo ele) na alma humana.
Primeiro faz algumas restrições com relação ao seu conteúdo, a saber: menções de que o Hades seja um infortúnio, para não deixar que o guerreiro se amedronte perante à sua morte ou a de um amigo; menções sobre criaturas terríveis e apavorantes, para que os guardas não se tornem efeminados com o medo; e menções de queixas e lamentações advindas de grandes homens, para que todos consigam suportar a desgraça com moderação. Enfim, Platão acha inadequado que situações com exemplos de ações consideradas imorais ou indignas, de deuses ou grandes homens, sejam escritas ou mimetizadas2. E contrariamente para as situações com ações exemplares (os atos de beleza e sabedoria).
A explicação disso está no fato de ele considerar que a influência da mimesis é muito poderosa, tanto para os atores, quanto para os ouvintes. Especialmente para estes últimos, pois é o que rodeia a criança que molda sua alma (segundo o Sócrates). Essa é a justificativa para limitar a poesia. E não só para limitar. Aliado à liberdade que ele concedia aos governantes, e só a eles, de mentir, ele pensava que os mitos também deveriam ser modificados, de modo a não conterem ações inadequadas de bons homens livres, heróis ou deuses, a fim de que os jovens não sejam incitados à maldade pelo fato de virem deuses ou descendentes cometendo atos maus.
As limitações que Platão assere à poesia, como era de se esperar, adentram também a forma do poema. Falo que isso já era de se esperar, pois se Platão acredita que a mimesis é uma forte influência, então isso tem que ser devido à sua forma. Esse poder advém da comunicabilidade de pathos passada através do poeta (ou ator), que dá seu corpo para a representação.
Assim, sobre a forma, Platão a divide em: narrativa, mimesis e as duas misturadas (mista). Ele desqualifica a imitação (mimesis), argumentando que tanto como uma pessoa de uma determinada profissão é mais eficiente se só tiver uma profissão, um imitador o será se só imitar uma coisa; assim, para um guarda poder manter sua máxima eficiência, ele não deve ter outra profissão e, por isso, não deve imitar coisa alguma (salvo na infância, onde isso seria permitido, desde que para imitações de exemplos de vida). O poeta também, por se dedicar à sua própria profissão, não poderá se estabelecer na polis, pois não haverá como ele ocupar duas funções e nem Platão deseja que ele influencie os homens. Ele permite apenas os poetas austeros que poetizem segundo suas restrições e influenciem segundo bons exemplos. Isso faz com que eles queira manter a força da poesia ao seu lado e optar pela forma mista, em detrimento da narrativa pura. E tomando outros tipos de aspectos formais, a saber, o texto, a melodia e o ritmo, ele diz que todos devem estar dentro de uma estrutura rígida, sem muitas variações e que proporcione apenas certas virtudes (como a coragem) essenciais para a manutenção de sua polis ideal.
Posteriormente, no livro X de A República, o presente filósofo passa a rejeitar qualquer poeta mimético em sua polis, pois acredita que a poesia toca as partes apetitiva e impulsiva da alma humana, relegando a parte racional (logistikon) e, por isso, ele afirma que ela corrompe o reto entendimento. O problema disso é que Platão deseja alcançar o Bem, porém este não pode ser alcançado se não pela parte racional, pois o Bem envolve finalidade (telos).
Para argumentar a favor disso, o filósofo primeiramente indica que para cada grupo de objetos semelhantes, devemos ter uma idéia de onde eles provêm; sendo o objeto mera cópia (mimesis) dessa idéia. O objeto artístico seria, segundo ele, a cópia da cópia; e, por isso, afastado da verdade (da idéia) três graus3. Para a idéia, o criador seria Deus; para o objeto, o imitador seria o obreiro; e para a obra artística, o poeta seria o imitador do objeto que já é uma imitação. Em nenhum momento fica claro em Platão o motivo de o poeta não poder apreciar a idéia, tal como o faz o obreiro, mas relevaremos essa objeção, pois o objetivo aqui é apenas explicar sua visão sobre a arte.
Do fato de o poeta ser um imitador e não ser conhecedor de todas as técnicas que imita, dá-se que ele não tem conhecimento das coisas que parece ter, como por exemplo sobre educação. Embora Homero pudesse falar belamente sobre a arte de educar, como ele não tem o conhecimento dessa arte, o quê ele estaria fazendo seria apenas imitando os educadores; assim como o pintor consegue, sem o conhecimento da arte de construir materialmente camas, a partir da aparência da cama, a pintar. Dessa forma, um poeta consegue imitar quem fala bem sobre algum tema e enganar o ouvinte pelo efeito que lhes tem o modo que aquele fala. Além disso, diferente de todos os outros técnicos (estes, conhecedores de tal técnica), o poeta não consegue julgar a qualidade de sua arte. Esses são os motivos pelos quais ele não pode ser crido como um conhecedor ou professor de nenhum desses conhecimentos que ele finge ter (ou seja: tem apenas aparentemente), nem de sua própria arte. Muito menos digno de ser um educador, pois seus poemas são cheios de mas exemplos para os homens.
Assim, Platão bane toda a poesia de sua polis, pois sabe do poder de sedução que ela possui e de influência negativa. Ele chega atá afirmar que seu pior problema “é o fato de poder estragar pessoas sérias” (A República; livro X, seção VII). Contudo, ele não fecha totalmente às portas da polis à poesia; ele, antes, lança um desafio: caso a poesia consiga, em prosa, ser defendida como indispensável a uma boa cidade, então ela poderá voltar a polis.
Cabe dizer, finalmente, que o próprio Platão parece responder esse desafio com o próprio texto da A República: através de uma obra literária mista (parte em discurso direto e parte em indireto), ele parece estar nos exemplificando como poderia ser uma poesia aceita na polis. Na verdade, Aristóteles também parece tentar responder esse desafio; mas isso fica para um próximo tópico.
Notas:
1A hierarquia dos “poetas” é pensada como “poeta > aedo > rapsodo”.
2Outros exemplos de atos considerados imorais ou indignos, segundo Platão, e que consequentemente não devem ser mimetizados, são: risos excessivos, mulheres em trabalho de parto, mulheres brigando com o marido, nem a linguagem ou pensamento dos loucos, nem cavalo relinchando, nem boi mugindo, nem o trovão, nem o barulho dos ventos e nem os instrumentos musicais.
3Os gregos não contavam, como nós fazemos, apenas o intervalo e o término; eles contavam tanto o intervalo, quanto os dois extremos. Esse é o motivo de Platão falar de três graus, e não dois.