O fundo do Poço
Os agentes da Inquisição tinham
conhecimento de que eu descobrira o poço,
o poço cujos horrores haviam sido destinados
a um herege tão temerário quanto eu,
o poço, a imagem do inferno, considerado
como a Ultima Thule de todos os seus castigos.
(Edgar Allan Poe. O poço e o
pêndulo)
O filme
espanhol “O Poço” (2019) do diretor Galder Gaztelu-Urrutia foi um dos mais
vistos na Netflix no último mês. Polêmico e como cenas pesadas, o filme é
passível de algumas interpretações diferentes. Aqui vamos expor o nosso olhar
sobre o filme. Em resumo, o filme consiste em retratar um lugar não
identificado, uma espécie de prisão vertical, sem janelas ou portas, com
diferentes andares e que possui um profundo buraco ao centro. Todos os níveis são
numerados de maneira crescente de cima para baixo e possuem duas pessoas para
cada andar. Pelo buraco desce, diariamente, uma plataforma com comida para
alimentar as pessoas do lugar. A plataforma fica um tempo em cada nível e
depois desce para os demais andares. Os prisioneiros do lugar são mudados aleatoriamente
de andar depois de um certo tempo. Quanto mais abaixo, pior a condição dos
prisioneiros, pois a comida vai ficando escassa. Ao contrário dos demais
prisioneiros que estão ali por algum motivo em específico, o personagem principal,
Goreng, escolheu ir para ali. Cada pessoa ali dentro tem o direito de levar
algum objeto consigo. No caso, Goreng escolheu levar um livro: Dom Quixote de Miguel
de Cervantes. Uma escolha inusitada e um tanto esquisita que alguém vá para
uma prisão cruel por livre vontade para ler um romance.
O Poço
Começo
pelas traduções diferentes que apareceram sobre o filme. Originalmente, o
título em espanhol é “El hoyo”, que pode ser traduzido como “o buraco”. Em
português, o título “O poço” mantém relação com o título original, fazendo relação
com a abertura ao centro que perpassa todos os níveis do lugar. No entanto, em
inglês o título muda um pouco o foco: “The platform”, dando ênfase à plataforma
móvel que conduz os alimentos aos diferentes andares. Perspectivas diferentes
para retratar o mesmo filme.
A cena
inicial do filme retrata um sofisticado restaurante preparando uma grande
quantidade de comida. A comida feita é de excelente qualidade e verificada por
um meticuloso chef de cozinha. Nada mais é dito sobre este local, mas fica
claro onde é preparada toda comida. Goreng acorda no nível 48 e conhece seu
companheiro de andar chamado Trimagasi, que lhe explica todas as regras do local.
Uma regra é muito óbvia para Trimagasi: não se deve conversar com os debaixo,
pois estão abaixo e não adianta falar com os de cima, pois estão acima e não
irão responder. Tudo é muito óbvio, como Trimagasi gosta de repetir. Enquanto
Goreng levou seu livro, Trimagasi está acompanhado da faca mais afiada,
conhecida como “Samurai-plus”. Aos poucos, Goreng vai se adaptando ao local e a
comer sobras dos níveis acima: estocar comida é proibido. Após um mês, os
personagens são desacordados e mudam de nível. Goreng acorda no nível 171 e
está totalmente amarrado e amordaçado por Trimagasi. Neste nível a comida já
não chega e Trimagasi pretende comer o amigo aos poucos para sobreviver. No
entanto, no momento derradeiro, Goreng é salvo por Miharu, uma mulher que desce
todas as vezes pela plataforma procurando o filho perdido. Uma vez solto,
Goreng mata Trimagasi, mas passa a ser assombrado pelo seu fantasma. Em mais um
mês, Goreng acorda no nível 33 junto com uma nova companheira: Imoguiri, que
levou consigo o seu cachorro, Ramsés II.
Imoguiri é
uma antiga funcionária do local e se auto exilou na prisão vertical. Ela explica
o funcionamento básico da estrutura do poço. Ela lhe diz haver 200 níveis no poço,
o qual ela chama de “Centro Vertical de Autogestão” e foi construído para
estimular a “solidariedade espontânea”. Se cada um comesse somente o
necessário, haveria comida para todos. Desse modo, uma mudança precisa ser estimulada para que todos sobrevivam. Goreng ouvindo essa explicação com certo
asco irá formular uma frase decisiva para o filme: “a mudança nunca é espontânea”.
Mais um mês
se passa e Goreng acorda no nível 202. Sua companheira, Imoguiri, havia se suicidado.
Ele fica sozinho e sem comida, obrigado a se alimentar do cadáver da companheira.
Em mais uma mudança e Goreng vai parar no nível 6 acompanhado por Baharat. Essa
será a parceria definitiva do filme. Juntos eles decidem descer todos os níveis
pela plataforma vigiando e redistribuindo a comida nos níveis onde a comida não
chega. Decidem que ninguém tocará na comida até chegar ao nível 51. A partir
daí começaram a distribuição parcimoniosa da comida. No entanto, para chegar
até o nível 51 mataram muitas pessoas dos níveis acima para evitar que eles
pegassem a comida. Ou seja, a boa vontade vem através da violência. Não há solidariedade
espontânea. A violência se faz necessária. Pequena ironia?
No trajeto,
acabam por decidir que uma mensagem deve ser enviada até o nível 0. Uma
mensagem impactante e que permita abalar a estrutura do local. Escolhem uma panna
cotta, uma sobremesa apetitosa, para permanecer intacta por toda a descida e
que deveria retornar para cima da maneira como veio. Acabam feridos no caminho
e Baharat morre. A plataforma desce além do nível 200 dito por Imoguiri e vai
além do nível 250 calculado por Goreng, até chegar ao nível 333, o que
significa dizer que haviam 666 prisioneiros (estariam no inferno da Besta?).
Neste último nível, Goreng encontra o filho de Miharu, na verdade uma menina. Ela
está bem, limpa, mas com fome e, por isso, come a panna cotta. Goreng decide
que a criança seria a mensagem e a coloca na plataforma, que desce mais um nível
para deixa-lo e parte para cima com a criança. O filme se encerra com o
encontro de Goreng com Trimagasi.
Teria Goreng
sonhado o fim da descida? Tido uma ilusão com a criança? Morrido no trajeto? Não
há resposta objetiva. O filme deixa no ar as explicações.
A utopia quixotesca
Muito se falou de que o filme seria
uma espécie de crítica social, uma alegoria das bases em luta permanente para
se manter acima. Agora vendo o filme, posso dizer que não tem a ver com isso. É
preciso uma leitura profunda da obra para se chegar ao cerne da questão, isto
é, devemos ir ao fundo do poço. Há uma retratação da sociedade ultra
individualista, além de chaves políticas para se entender o filme. Logo no
começo Trimagasi acusa Goreng de ser comunista por querer que a comida chegue a
todos. Não acho que foi uma fala à toa. O comunismo é recusado dentro do poço.
O ponto que fica é: há comida para todos, mas ela não chega a todos. E por que?
Porque os primeiros pegam mais do que precisam. Como
mudar isso? A solidariedade espontânea é possível?
Também se pensou em uma analogia com
a Caverna de Platão. De fato, o local sem janelas ou portas pode lembrar o
enclausuramento de uma caverna. No entanto, nada indica que há um fora da
caverna. O acima do poço tem seus operadores que manipulam a comida, assim como
os manipuladores de objetos existentes na alegoria da caverna. Mas onde está o
prisioneiro que vai além dos confins da caverna e retorna para os companheiros
para libertá-los? Se há certa semelhança com a caverna, ela parece terminar por
aí.
O poço me parece retratar a própria
sociedade neoliberal caótica e egoísta. Há o suficiente para todos, mas poucos
ficam com tudo que há. A solidariedade, a autogestão e a ajuda mútua, símbolos
do anarquismo e do socialismo, não são aceitos pelas pessoas que ali estão.
Querer dividir com o outro é mal visto: a solidariedade espontânea não se faz.
Ser comunista é visto como algo ruim até mesmo dentro do poço. O indivíduo é o
limite. Todo o mais deve ser arrancado do outro. A economia do poço gira em
torno do corpo e da sua subsistência. Uma relação cordial com o outro não
existe: a desconfiança é plena. É como se o filme dissesse a Rousseau: “mostre-me
o homem bom”. Ele não existe, não o podemos encontrar em nenhum dos níveis. Todos
estão corrompidos pelo egoísmo. Um darwinismo social embasado nas teorias malthusianas:
não há comida para todos, então alguns deve perecer para a sobrevivência dos
demais. Não há sequer uma revolta contra a estrutura que controla o lugar. Tudo
é aceito por todos da maneira como lhes aparece.
O filme faz uma crítica interessante,
mas um tanto surreal. Mesmo em uma prisão desse tipo, é estranho pensar na banalização
da morte para se manter a própria sobrevivência. O canibalismo é um rito que foi
realizado por certas etnias, mas cujo sentido não é alimentar. Ele tem um
sentido cultural, nunca a sobrevivência puramente biológica do ser humano,
muito menos tem na sua prática a naturalização vista na película. Casos extremos
são a exceção, nunca a regra neste caso. Como exemplo, citamos os Contos de
Kolimá do escritor russo Varlam Chalámov (1907-1982), onde se conta o dia a
dia dos prisioneiros do regime stalinista na prisão de Kolimá uma das piores existentes
na Sibéria. Lá todos os presos passavam fome com as parcas rações que recebiam
e muitos morriam. Mas, mesmo assim, não houve casos de canibalismo. Aconteceram
assassinatos por diversos outros motivos, mas nunca para comer outra pessoa. Foi instituído
até mesmo um sistema socialista de ajuda mútua entre os presos em que todos
deveriam pagar uma taxa em dinheiro para ajudar aqueles que nada tinham. Assim
todos teriam como comprar objetos no mercado da prisão. Desse modo, a banalização
da morte apresentada no filme O poço tem menos relação com a própria
alimentação e uma relação direta com luta individual de cada um para acabar com
a concorrência existente dentro da economia do poço. Uma exacerbação ao máximo
do individualismo.
Por fim, a mensagem que Goreng queria
fazer chegar ao nível acima de todos, o nível zero. Essa mensagem é para os que
estão em cima de todos os prisioneiros do local. Mas quem está em cima (nível
0)? Esse é o nível mais completo, onde está toda a comida, ao contrário do
último nível, que é o mais vazio. O nível zero é onde está toda a estrutura que
movimenta a máquina do poço. Ela já funciona por si mesma, independente das pessoas
ali existentes. Os indivíduos desta sociedade já não enxergam nada além de seus
próprios corpos, incapazes de olharem para além de si mesmos e ajudar o
próximo. Aqui retomamos as questões já feitas: como mudar isso? A solidariedade
espontânea é possível?
Parece que a resposta do filme é
negativa. No conto O poço e o pêndulo de Edgar Allan Poe, a única coisa
que muda a estrutura dominante é a revolução. No filme, Goreng cumpre esse papel
de ser o Dom Quixote do poço levando a mensagem para todos os níveis. O filme
parece não ter fim, pois, de fato, o meio é o que realmente importa, não o fim.
A mensagem tem como destino a nós mesmos. Somos nós o nível 0 e é para nós que
vem a mensagem. Todo socialismo fracassa na prática, mas a mensagem permanece.
Isso é interessante. A sociabilidade é uma utopia distante desgastada pelo
convívio com o outro. Goreng é uma espécie de cavaleiro andante quixotesco querendo
passar-nos a mensagem utópica da ajuda mútua e da solidariedade esquecida por
uma sociedade corrompida pela sua própria egolatria. Mesmo que o mensageiro
tenha morrido no caminho, “uma mensagem não precisa de mensageiro”.
(Luiz Maurício Bentim)