Parasita
Difícil
falar sobre “Parasita”, filme sul-coreano que ganhou o Oscar 2020. A produção
do diretor Bong Joon-ho, que também ganhou os Oscars de melhor roteiro
original, melhor filme estrangeiro e melhor diretor, é muito detalhada. O filme
conta a história de duas famílias de classes sociais distintas: a primeira família
é composta pelos Kim, que vivem em um apartamento semissubterrâneo da cidade e na
mais completa pobreza; a segunda família é composta pelos Park, ricos que vivem
no mais pleno luxo. O filme trabalha com a analogia entre as famílias, como um
jogo de espelhos existente entre elas. O primeiro jogo é que em ambas as
famílias temos um pai, uma mãe, um filho e uma filha. O segundo jogo espelhado
é que os Kim moram na parte baixa da cidade e os Park na parte alta da cidade.
Isso já demonstra uma clara distinção entre classes socioeconômicas. Será nesse
jogo de espelhos que irá se desenrolar todo o filme.
Após
apresentar minimamente a família Kim, o enredo começa a se desenvolver a partir
do momento em que o filho Kim consegue um emprego de professor de inglês na
casa dos Park. Ele terá como função ser o tutor da filha Park nos seus estudos
da língua inglesa. A admiração dos Park pelos EUA fica clara em diferentes
momentos do filme, desde o reconhecimento do estudo da língua inglesa até a
admiração do filho Park pelos índios americanos, o que faz com que os Park
comprem diversos brinquedos vindo dos EUA para a criança. Tendo sido aprovado
como tutor da filha Park, o filho Kim consegue indicar a irmã como professora
de artes do filho Park. No entanto, não é dito que ela é sua irmã, mas ela é apresentada
como uma conhecida distante de um familiar seu e tendo qualificações por ter
estudado em Chicago. A filha Kim, também obtendo sucesso em sua atuação como
professora de artes, consegue indicar o pai Kim como motorista da casa Park,
mas também sem que a família Park soubesse que ele é pai dos filhos Kim. Por
fim, depois de um plano para retirar a atual governanta da casa Park, o pai Kim
consegue indicar a mãe Kim como nova governanta da casa Park, sem que ninguém
soubesse do seu parentesco com os demais empregados da casa.
Todo esse desenrolar do filme já seria
suficiente para justificar o nome do filme. Isto é, cada um dos membros da família
Kim foi infiltrando os outros membros da família com o intuito de ocupar um
espaço dentro da casa Park. Talvez o filme pudesse acabar aí e nada mais contar
de interessante. No entanto, eis que surge o que estava até então oculto até a
metade da película. A governanta antiga volta à casa e, conseguindo entrar na
casa, faz a grande revelação do filme: há um porão escondido na casa e neste
porão vive escondido o seu marido. A questão do subsolo é muito importante para
o enredo do filme. Essa temática perpassa todo o filme, mesmo nos momentos mais
sutis. Primeiramente, no tipo de apartamento em que moram os Kim. Esse tipo de
apartamento semissubterrâneo são chamados de banjiha e são muito comuns
na cidade de Seul, em que há um grave problema de moradias. A história desses
espaços minúsculos remonta ao período de conflito entre as Coreias do Sul e do
Norte, quando o governo sul-coreano temendo um conflito maior entre os Estados
exigiu, a partir 1970, que todos os edifícios residenciais com quatro andares
ou menos tivessem porões que pudessem servir como abrigos em caso de emergência
nacional. Alugar esses espaços era proibido, mas perante a crise imobiliária
atual, o governo acabou por legalizar a residência nesses espaços. Um segundo
ponto sobre a temática do subsolo, remete a construção do porão subterrâneo na
residência dos Park. Essa construção também tem a guerra entre as Coreias como pano
de fundo. O primeiro morador da casa teria construído esse porão como um
abrigo para a sua segurança pessoal em caso de ataque da Coreia do Norte. Como
o conflito direto não ocorreu, o porão acabou esquecido e desconhecido da
família Park. Um terceiro ponto sobre o subsolo se remete a própria
invisibilidade das condições materiais em que vivem as pessoas mais pobres da cidade.
Elas são totalmente ignoradas pelas famílias ricas que usufruem de seu trabalho
sem sequer conhecer as condições em que vivem essas famílias. Como exemplo
maior podemos dar o indivíduo esquecido no subsolo da casa dos Park, que lá
estava há mais de quatro anos para fugir das dívidas inevitáveis que adquiriu
por conta da falência do seu negócio. Uma marca do capitalismo.
Por causa do terceiro ponto, muito se
falou em luta de classes neste filme. Esse é um ponto que gostaríamos de
analisar mais cuidadosamente. De fato, há uma gritante disputa entre as classes
sociais distintas. No entanto, apesar do conflito entre classes estar posto,
isso não é suficiente para justificar a luta de classes estritamente falando. O
que acontece no filme é uma demonstração das faces nocivas do capitalismo que,
através da sua enorme plasticidade, vai se adaptando e cooptando a todos para dentro
da sua lógica. Como justificar uma luta de classes quando o conflito principal
do filme gira em torno das classes mais baixas? Primeiro, a família Kim usou de artimanhas sujas para retirar o emprego do antigo motorista e da antiga governanta,
depois temos a luta física entre a família Kim e ex-governanta e o seu marido, em seguida, como consequência da briga, aconteceu a
morte da ex-governanta, além da total insensibilidade perante a mazela do antigo
“morador” do subsolo da casa. Há, na verdade, uma luta voraz entre as classes
mais baixas pela própria sobrevivência em um sistema que defende a meritocracia
como modelo de vida. Enquanto isso, a família Park é louvada pelo sustento que
dá à família Kim através dos salários pagos oriundos da exploração que sofrem.
Diante de toda essa confusão, nos perguntamos: quem é o verdadeiro parasita? Seria
o morador do subsolo da casa Park? A família Kim que se infiltrou na casa e
sabem se esconder em cada buraco como baratas que fogem da luz? Ou a família Park,
representante das classes mais ricas do país que sugam a mão de obra barata das
classes mais baixas? John Hobson em seu livro “Imperialismo” chama as classes e
grupos beneficiados pelo imperialismo de “parasitas econômicos do imperialismo”,
principalmente as que lucram mediante o capital financeiro. Segundo ele,
o
jogo dessas forças não aparece abertamente. São essencialmente parasitas do
patriotismo e se adaptam às suas cores protetoras. Na boca de seus
representantes há frase nobre, expressiva de seu desejo de ampliar a área da
civilização, estabelecer um bom governo, promover o cristianismo, extirpar a
escravidão e elevar as raças inferiores.
Os parasitas, aos quais Hobson se
refere, são grandes dissimuladores do sistema financeiro que defendem, em
palavras apenas, a liberdade e a moral, mas que exploram ao máximo a mão de obra
livre que defendem. São esses empresários hipócritas que pretendem expandir
seus negócios como se expandiria um império para a vitória do capital. Um parasita
é um organismo que vive de outro organismo, causando-lhe dano. Segundo a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), os 10% mais ricos recebem quase
50% da renda do trabalho no mundo. Afinal, será que ainda não está claro quem é
o parasita?
No final do filme, apesar de todo o conflito
entre as famílias, não aconteceu a consciência de classe, tão cara e necessária
para a constituição da luta de classes. O pai Kim termina seus dias no subsolo
da casa Park arrependido por ter matado o pai Park. E o filho Kim divaga no
sonho liberal de enriquecer através do mérito do estudo para conseguir um dia
comprar a casa Park e libertar seu pai do subsolo. Alguns críticos do filme
interpretaram a cena final como uma moral na qual “só a educação é libertadora,
levando o indivíduo a enriquecer pelo seu próprio mérito”. Essa é uma conclusão
falaciosa e não condiz com a mensagem do filme. Uma propriedade como a dos Park
pode custar até 10 bilhões de wons, ou alguns milhões de dólares. Baseado em um
salário médio sul-coreano ($10 mil anuais), o filho Kim levaria mais de 500
anos para comprar a casa dos Park, ou seja, um sonho surreal.
De fato, o que acontece no final do
filme é o triunfo da ideologia burguesa que consegue abafar a luta de classes e
faz com que as classes mais baixas continuem a lutar entre si na expectativa
de realizar o sonho liberal da ascensão social pelo próprio mérito (eis a
alienação!). Um equívoco crasso que continua alimentando os parasitas burgueses
do suor e do sangue dos pobres e miseráveis que os sustentam.
(Luiz Maurício Bentim)