“E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32)
De Dostoiévski ao
Jesus Polýtropos da Estação Primeira de Mangueira, um convite à
reflexão
Em análoga citação à passagem do Quarto Evangelho, ou o
livro de João, a Estação Primeira de Mangueira, tradicional escola de samba
carioca, traz para seu desfile da noite do próximo domingo, 23 de fevereiro, na
Marquês de Sapucaí, o provocativo enredo “A verdade vos fará livre”.
Provocativo, diríamos, não pelo conteúdo per se, que traz um Jesus
humanizado, redivivo e ressignificado em sua anunciada volta[iii], em nossas tão humanas
facetas, tons e dores. Mas, sim, intrigante, por renovar reflexões clássicas da
literatura, história e filosofia em tempos presentes (anacrônicos?) de
semelhante intolerância. Sim. É preciso reconhecermos os tempos de
recrudescimento, e, neste esforço reflexivo, possibilitar, capacitar, ou mesmo
convidar o leitor a considerá-lo.
A proposta de um Cristo polýtropos – palavra
grega que define o multifacetado – ensejada por Leandro Vieira (carnavalesco
responsável pelo enredo da ‘Verde e Rosa’), nos permite revisitar um clássico
da literatura russa, em que as mesmas humanas divagações se interpõem aos
devaneios filosóficos, éticos e morais dos irmãos Ivan e Alieksiéi Kamarázov,
na obra de Fiódor Dostoiévski[iv]. Esforço que ilustra as
angústias tão caras aos homens ao divagarem sobre temas absolutamente
imperativos à vida, como a liberdade, o amor e a verdade.
Refletir
sobre tão amplo contexto apresenta, contudo, o perigo de perdermo-nos em
divagações. Faz-se, assim, um recorte objetivo e prudente que não almeja
esgotar o tema, tampouco dissertar pelas aleias do debate teológico. O texto
convida a uma espécie de exegese reflexiva... pensar o “e se”, e as im(possibilidades) do diálogo suscitado por Dostoiévski, ressignificado no enredo
da Mangueira. Mas, o leitor poderá questionar, por que um clássico, e nesse
ínterim, por que Dostoiévski? Para justificá-lo, recorremos a George Steiner em
sua crítica literária, Tolstói ou Dostoiévski: “há grandes linhas de
descendência espiritual que relacionam Homero a Yeats, e Ésquilo a Tchékhov. A
esses a crítica deve retornar com apaixonada reverência e com a percepção da
vida, sempre renovada.”[v] Digamos que no presente há
uma pungente necessidade em tal esforço.
A
passagem referida do evangelho de João (João 8, 32) está contemplada no chamado
Livro dos Sinais que aborda, sobretudo, o ministério público de Jesus. Segue à
narrativa da mulher adúltera, ou “Perícopa da Adúltera” (João 7,53 – 8,1-11),
em que Jesus, questionado pelos fariseus sobre o destino da mulher pega em
flagrante adultério, surpreende a todos ao convidar os limpos e livres de
pecado que lhe atirassem a primeira pedra (a pena capital por adultério era, na
Palestina do período, a lapidação[vi]). Diante do exame de
consciência - este o claro ensejo do “atire a pedra quem estiver limpo!” -
Jesus atualiza uma verdade íntima contra aquilo que se propaga e legisla sob o
véu da intolerância. À mulher concede o recomeço, “agora vá”; e o arbítrio, “e
não peques mais” (João 8,11).
O
trecho deságua no imperativo, “conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará”. Verdade essa ilustrada e contemplada na ação do Cristo, em sua
palavra tornada ato, que reitera a máxima do amor ao próximo, único capaz de
ensejar a tolerância com as diferenças. O amor crístico desse caminho trilhado
e modelado pelo Cristo acolhe os que caem, os que pecam, os adoecidos do corpo
e do espírito, os desvalidos, os doentes, os perseguidos e alijados. Na
Palestina do ano I, leprosos, humildes, crianças, doentes, famintos, mulheres,
entre adúlteras e prostitutas, enfim, o cortejo dos oprimidos. Ressignificado
em infinitos tons do verde e do rosa o cortejo compõe o mosaico social da carioca
‘Palestina’ no século XXI, trazendo nas figuras oprimidas de nossa sociedade a
faceta crística da proposta essencial de Jesus, ilustrada na quarta estrofe do
samba enredo[vii]:
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores
do Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe
ladeira
Me encontro no amor que não
encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra
a opressão.[viii]
Em uma analogia crítica, a Estação
Primeira nos convida a um “samba-reflexão”,
apresentando, assim, um Jesus histórico, mais humano, polýtropos,
essencialmente coerente à proposta original, em que “o Verbo se fez carne” para
habitar entre nós
(João
1,14). No primeiro verso a aludir ao local de nascimento de Jesus (Mateus 2,1)
em uma cidade dominada e marginalizada pelo império romano, o menino Jesus nasce
na exclusão (Lucas 2,7). Momento em que cada comunidade carioca passa a representar
a Belém da Judéia. Também como José, os simples de ofício digno, não obstante
sem reconhecimento formal, legiões de desempregados pelo Brasil afora, lutando
por sua família, seja qual for: pai e mãe, pai e pai, mãe e mãe, em um cenário
multifacetado.
Maria, mãe dos homens desde quando
Cristo padece na cruz (João 19, 26-27), ressignificada na mulher de fibra, que ampara
o lar, mas também a comunidade inteira, traduz a luta de cada mulher por seus
direitos, dignidade, reconhecimento e voz. Temática que nos leva à pequena
digressão sobre o movimento ocorrido no seio da ICAR[ix], conhecido como a
Teologia da Libertação.
Criada na década de 70, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), e a Conferência
Episcopal Latino Americana realizada em Medellín-Colômbia, em 1968, traz em seu
cerne a busca pelos direitos e a justiça dos pobres, um olhar caridoso e
libertador, reverberado por intelectuais
cristãos como Gustavo Gutiérrez, frei Betto, Rubem Alves, dentre outros.
O grande propagador dessa teologia no
Brasil foi o frei franciscano Leonardo Boff, doutor em Teologia, que, por meio
dela, uniu a pastoral à teologia. Destarte, introduziu-se nas academias as práticas
pastorais que refletiram nas comunidades, sobretudo nas favelas, libertando os
oprimidos, tornando-os sujeitos desta teologia. Motivo que reforça ser o
Evangelho de Cristo pelos desvalidos. Portanto, “a missão da igreja junto aos
pobres devia ser libertadora e não mais assistencialista.”[x]
À obra de Fiódor Dostoiévski
desloca-se a discussão, amparada no diálogo dos irmãos Ivan e Alieksiéi
(carinhosamente chamado de Aliócha pelos mais velhos), em que se desenvolve uma
das passagens mais intrigantes do pensamento filosófico do autor, nos
auxiliando a refletir sobre a proposta mangueirense. Intitulada “O Grande
Inquisidor”, contemplada no capítulo V do Livro V da obra Os irmãos
Karamázov, a narrativa desenrola o fio de uma provocativa asserção de Ivan
ao irmão caçula, já suscitada no capítulo anterior, em que, com o intuito de instigar-lhe
a emocionada réplica, afirma:
- Devo confessar-te uma coisa –
começou Ivan – Jamais pude compreender como se pode amar seu próximo. E
precisamente, na minha ideia, o próximo que não se pode amar, ou somente a
distância. Li, em alguma parte, a propósito de um santo, João, o
Misericordioso, a quem um passante faminto e transido de frio foi um dia
suplicar que o aquecesse; o santo deitou-se com ele, tomou-o em seus braços e
se pôs a insuflar seu hálito na boca purulenta do infeliz, infectada por uma
horrível moléstia. Estou persuadido de que fez isso com esforço, mentindo a si
mesmo, num sentimento de amor ditado pelo dever e por espírito de penitência.
Para que se possa amá-lo, é preciso que um homem esteja oculto; desde que ele
mostra seu rosto, o amor desaparece.
- O stáriets Zósima falou
por várias vezes disso – observou Aliócha. – Dizia também que muitas vezes,
para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo de amor. Há, no
entanto, muito amor na humanidade, um amor quase igual ao do Cristo, eu mesmo o
sei, Ivan...
- Pois bem, eu, eu não o sei ainda
e não posso compreendê-lo; muitos estão no mesmo caso. Trata-se de saber se
isso provém dos maus pendores, ou se é inerente à natureza humana. Na minha
opinião, o amor do Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na
terra. É verdade que ele era Deus; mas nós não somos deuses. Suponhamos, por
exemplo, que eu sofro profundamente; outro não poderá jamais conhecer a que
ponto sofro, porque é outro, e não eu.[xi]
A impossibilidade do milagre – aqui
interpretado como o exercício consciente de amar ao próximo - se desdobra no
ato de não julgar, na genuína empatia, e no exercício “divino”, portanto sobre humano,
heroico talvez, de tolerância fraterna. O caminhar com as sandálias humílimas
do Cristo. Atos cujo impeditivo seria a própria condição humana, falível,
frágil, intolerante, vaidosa e condenatória. E diante do estupefato e pio
Aliócha, Ivan apresenta-lhe sua estória, um poema por ele inventado “com
ardor”, cujo enredo recita ao irmão à guisa de defesa da justa impossibilidade
do amor crístico entre os homens.
Em seu poema, intitulado “O Grande
Inquisidor”, a ação se passa no século XVI, na Espanha, em Sevilha, no mais
terrível tempo da Inquisição, quando em autos de fé fogueiras ardiam queimando
hereges pela glória de Deus. Cenário que Ivan escolhe (não por acaso!) para o
retorno do Cristo, desejoso em “aparecer, ainda por um instante, ao povo –
atormentado, sofredor, mergulhado em seu fétido pecado, mas amando-O, como
criancinhas.”[xii]
A cena é assim descrita:
Ele desce
sobre “as largas ruas quentes” da cidade sulina, justamente onde ainda na
véspera, em um “magnífico auto de fé”, na presença do rei, da corte, dos
cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, diante da
numerosa população de toda a Sevilha, o cardeal grande inquisidor queimou de
uma vez quase uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei.[xiii] Ele aparece em
silêncio, sem se fazer notar, eis que todos – coisa estranha – O reconhecem.[xiv]
E justo nessa passagem Ivan alerta Aliócha
sobre o caráter intrigante e curioso do povo tê-lo feito, como movido por força
invencível, assediando a figura daquele homem simples, rogando-Lhe bençãos,
tocando-Lhe as vestes... Descreve com estupefata e exagerada riqueza de
detalhes a cena da volta deste Cristo brando, iluminado, de cujo coração arde o
sol do amor, outrora pregado por Ele naquela Palestina do século I.
E diante de um compenetrado Aliócha, Ivan descreve
a peripécia trágica dos eventos que escolhera narrar para fundamentar sua
defesa da aporia do amor crístico. O frenesi do povo já chamava a
atenção dos padres, e, não surpreendentemente, do próprio cardeal inquisidor,
que observava o burburinho causado por aquela figura, de longe, ao lado da
catedral. Era a autoridade ali, acompanhado de seu séquito, sua guarda sagrada
e auxiliares. Segundo Ivan, “um velho de quase noventa anos, alto e ereto,
rosto ressequido e olhos fundos, mas nos quais um brilho ainda resplandece,
como uma centelha.”[xv] A centelha de uma astucia
que reconhece objetivamente o que ali se desenrolava entre o povo, cegamente arrastado
pela comoção daquele reencontro inusitado. Diante da multidão, o cardeal para e
observa, assim descreve Ivan.
Franze as sobrancelhas grisalhas e
bastas, seu olhar irradia um fogo funesto.[xvi] Ele aponta o dedo aos
guardas e ordena que O prendam. E eis que sua força é tamanha e o povo está tão
habituado, submisso e lhe obedece com tanto temor que a multidão se afasta
imediatamente diante dos guardas e estes, em meio ao silêncio sepulcral que de
repente se fez, põem as mãos n’Ele e o levam. [xvii]
A cena revive aquela do jardim de Getsêmani,
intitulada a “Agonia do Jardim”, narrada nos quatro evangelhos como a narrativa
da Paixão. Jesus, por ordem do Sinédrio e traição de Judas Iscariotes, era
preso e levado à fortaleza Antônia para o interrogatório das autoridades
romanas. Dava-se ali o início do suplício do Cristo, sua via Dolorosa,
preso, torturado, julgado e condenado. Na releitura de Dostoiévski, dar-se-ia o
inusitado, o absurdo, segundo Aliócha, e a grande ironia de nossa herança
cristã. Preso pela guarda e asseclas do cardeal, Jesus é levado a um calabouço
apertado e sombrio na sede do próprio tribunal do Santo Ofício. Cristo tratado
como herege, como na análoga (e precipitada) reação de lideranças e autoridades
ao Jesus polýtropos da Estação Primeira de Mangueira. Vejamos a
passagem que descreve o monólogo do inquisidor para, então, traçarmos alguns
pontos de contato com o samba enredo.
Em meio a
trevas profundas abre-se de repente a porta de ferro da prisão e o próprio
velho, o grande inquisidor, entra lentamente com um castiçal na mão. Está só; a
porta se fecha imediatamente após sua entrada. Ele se detém por muito tempo à
entrada, um ou dois minutos, examina o rosto do Prisioneiro. Por fim se
aproxima devagar, põe o castiçal numa mesa e Lhe diz: “És tu? Tu?”. Mas, sem
receber resposta, acrescenta rapidamente: “Não respondas, cala-te. Ademais, que
poderias dizer? Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito
de acrescentar nada ao que já tinhas dito. Por que vieste nos atrapalhar?
Pois vieste nos atrapalhar e tu mesmo o sabes. Mas sabes o que vai acontecer
amanhã? Não sei quem és e nem quero saber: és Ele ou apenas a semelhança
d’Ele, mas amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais
perverso dos hereges,[xviii] e aquele mesmo povo
que hoje te beijou os pés, amanhã, ao meu primeiro sinal, se precipitará a trazer
carvão para a tua fogueira, sabias? É, é possível que o saibas” – acrescentou
compenetrado em pensamentos, sem desviar um instante o olhar de seu
prisioneiro.[xix]
A passagem dispensa interpretações. É de
uma clareza absoluta e inquestionável. Um cardeal, a mais alta “patente” nas
fileiras da Igreja Católica, autoridade que responde diretamente ao Santo Padre
em Roma, cônscio do perigo que representaria o retorno à mensagem simples,
branda e crística do Cristo, determina, julga e condena sua atuação, seja essa
ressignificada e rediviva, mesmo outrora anunciada! Há um projeto de quinze
séculos em andamento, que não admite tamanha digressão.
Em uma das estrofes de seu samba
enredo a Mangueira anuncia (em espécie de tenebrosa expectativa) a reação à sua
releitura da mensagem do Cristo, pois defendendo seu samba como uma reza, faz a
súplica em nome dos oprimidos e reitera a verdade das muitas faces desse “Jesus
da Gente”:
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do
seu lado
E do lado do samba também
Eu sou da Estação Primeira de
Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de
mulher
Moleque pelintra no Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
Ivan, diante de um chocado Aliócha,
prossegue, afirmando sobre o direito da autoridade cardinalícia em assim
proceder diante do quiproquó causado por inusitada e constrangedora aparição.
Diz ser esse o traço essencial do catolicismo romano, permitindo ao cardeal a
última palavra, neste sentido:
Tu, dizem, transferiste tudo ao
papa, portanto, tudo hoje é da alçada do papa, e quanto a ti, ao menos
agora não me apareças absolutamente por aqui, quando mais não seja não me
atrapalhes antes do tempo.
Terás o direito de nos anunciar ao
menos um dos ministérios do mundo de onde vieste? – pergunta-lhe o velho, e ele
mesmo responde: “Não, não tens, para que não acrescentes nada ao que já foi
dito antes nem prives as pessoas da liberdade que tanto defendeste quando
estiveste aqui na Terra. Tudo o que tornares a anunciar atentará contra
a liberdade de crença dos homens, pois aparecerá como milagre, e a liberdade de
crença deles já era para ti a coisa mais cara mil e quinhentos anos atrás. Não
eras tu que dizias com frequência naquele tempo: ‘Quero fazê-los livres?’ Pois
bem, acabaste de ver esses homens ‘livres’ – acrescenta de súbito o velho com
um risinho ponderado. – Sim, essa questão me custou caro – continua ele,
fitando-O, severamente -, mas finalmente concluímos esse caso em teu
nome.[xx]
Pois, com a autoridade do Cristo e sua
palavra tornada cânone nos quatro evangelhos (canônicos), e regra estabelecida
e postulada nos concílios ao longo da Idade Média, a tal ‘liberdade’ anunciada
por Ele passava a ser regida e ordenada pela Igreja, erigida em seu nome. E aí
está a grande ironia: a liberdade crística, anunciada pelo Cristo tornada ato
em seu ministério público era então tutelada pelas lideranças e autoridades,
que faziam dela instrumento de ‘felicidade’ – por sua simplificação – para o
rebanho cristão, reverberadas na estrofe do samba, abaixo transcrita:
Eu
tô que tô dependurado
Em
cordéis e corcovados
Mas
será que todo o povo entendeu o meu recado?
Porque
de novo cravejaram o meu corpo
Os
profetas da intolerância
Sem
saber que a esperança
Brilha
mais na escuridão
Como um enigma terrível e insondável o
exercício da consciência crística custa aos homens, na aporia de Ivan
Karamázov, o sacrifício impossível do despojar-se de si mesmo (vaidades,
desejos, interesses, egoísmo), e acolher o outro, em sua miséria, dor e
sofrimento. Como cruzar a porta estreita em cuja soleira reside o imperativo
“amar ao próximo, como a ti mesmo”, “amar ao próximo como Eu vos amei”? A
natureza humana nos impede de tal nível de abnegação e, perdidos, buscamos uma
autoridade que nos console, ampare, oriente, mas, sobretudo, conduza.
Facilitado assim o ato crístico, mastigado e delegado àqueles que guardam as
chaves do trono pétreo, fazem-no ato cristão, pio e caridoso, pois “só se pode
amar ao próximo” (aquele que nos causa estranheza, desconforto, incômodo,
constrangimento, e até mesmo asco), “a distância.” E assim conclui o velho
inquisidor:
Sabes que
não te temo. Sabes que também estive no deserto, que também me alimentei de
gafanhotos e raízes, que também bendisse a liberdade com a qual abençoaste os
homens, e me dispus a engrossar o número de seus eleitos, o número dos
poderosos e fortes ansiando ‘completar o número’. Mas despertei e não quis
servir à loucura. Voltei e me juntei à plêiade daqueles que corrigiram tua
façanha. Abandonei os orgulhosos e voltei para os humildes, para a felicidade
desses humildes. O que eu estou te dizendo acontecerá e nosso reino se
erguerá. Repito que amanhã verás esse rebanho obediente, que ao primeiro sinal
que eu fizer passará a arrancar carvão quente para a tua fogueira, na qual vou
te queimar porque voltaste para nos atrapalhar. Porque se alguém mereceu nossa
fogueira mais do que todos, esse alguém és tu. Amanhã te queimarei. Dixi.[xxi]
O monólogo do velho cardeal (assim
apresentado por Ivan), terminado com a palavra dixi, do latim, ‘tenho
dito’, eloquente pela vigorosa retórica que garante e justifica a legitimidade
de sua decisão, seria chocante se não fosse tão atual. Para alívio de Aliócha o
irmão oferece uma alternativa, não menos irônica, que veremos na segunda parte
deste ensaio, (publicação futura). Por ora basta-nos observar o tom acusatório
e condenatório que, reverberado em velocidade virtual no século XXI, revisita o
incômodo de uma proposta simples e elogiosa, pungente e consciente com a qual a
Estação Primeira de Mangueira nos presenteia. Faz-se mister, portanto, que a
proposta seja ouvida, vista e apreciada.
É
preciso que o Jesus polýtropos enaltecido pela Mangueira seja visto
pelo povo que se amontoa nos viadutos dos acessos à avenida do samba, com suas
bandeirinhas coloridas de verde e rosa, apertados em emocionada torcida no
Setor 1, ‘termômetro’ e coração da Sapucaí, que abriga os ingressos populares
do desfile. É da concentração da escola, do barracão, das ruelas tomadas pelos
ambulantes e passantes, alijados do luxo das frisas e camarotes, que canta e
ecoa a mensagem trazida pela Estação Primeira de Mangueira: trazer Jesus para
os corações, para as avenidas dos sambas e para a Ágora, mensagem
reiterada em Marcos 16,15, “Ide por todo o mundo, proclamai o evangelho a toda
criatura.”[xxii]
Que
venha, portanto, colorido de verde e rosa. Dixi.
Referências
Bibliográficas
BOFF, Leonardo. "A morte pertence à vida. É seu ponto culminante. Ela nos permite dar um
salto para o outro lado de nós mesmos, invisível a nós, mas real". Entrevista
especial com Leonardo Boff. [Entrevista concedida] IHU On-line. Instituto
Humanitas Unisinos. [s.i], 2018. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/585516-a-morte-pertence-a-vida-e-seu-ponto-culminante-ela-nos-permite-dar-um-salto-para-o-outro-lado-de-nos-mesmos-invisivel-a-nos-mas-real-entrevista-especial-com-leonardo-boff> Acesso em 16 de fevereiro de
2020.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução
de Natália Nunes e Oscar Mendes. Abril Cultural, 1970.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. “O Grande Inquisidor”, em
CAVALIERE, Arlete (org.). Clássicos do Conto Russo. São Paulo: Editora
34, 2017.
SILVA, Bruno Marques. Fé, razão e conflito. A trajetória intelectual de Leonardo Boff.
Niterói, 2007. Disponível em: < file:///C:/Users/w7/Downloads/Dissert-2007_SILVA_Bruno_Marques-S%20(1).pdf> Acesso em: 15 de fevereiro de
2020.
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. Um
Ensaio sobre o Velho Criticismo. Tradução Isa Kopelman. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
[i] Doutora em História Social pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
[iii] A volta do Cristo, também
conhecida como Parousia no Novo Testamento, é tema recorrente em algumas
passagens das escrituras, como em Mateus, 24,27.
[iv] Para o presente ensaio utilizamos
a tradução da Abril Cultural (1970) de Os Irmãos Karamázov para as passagens
do capítulo IV do Livro V, e a para o capítulo V do mesmo Livro V, a tradução
organizada na coletânea organizada por Arlete Cavaliere, Clássicos do Conto
Russo, editada pela Ed. 34, em 2017.
[v] STEINER, George. Tolstói ou
Dostoiévski. Um Ensaio sobre o Velho Criticismo. Tradução Isa
Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 3.
[vi] (Levítico, 20, 10; Deuterônimo,
22, 22).
[vii] Autoria de Manú da Cuíca e Luiz
Carlos Máximo.
[viii] O grifo é nosso.
[ix] Sigla para Igreja Católica
Apostólica Romana.
[x] BOFF, Leonardo. "A morte pertence à vida. É seu ponto
culminante. Ela nos permite dar um salto para o outro lado de nós mesmos,
invisível a nós, mas real". Entrevista especial com Leonardo Boff.
[Entrevista concedida] IHU On-line.
[xi] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos
Karamázov. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Abril Cultural, 1970,
p. 178.
[xii] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. “O Grande
Inquisidor”, em CAVALIERE, Arlete (org.). Clássicos do Conto Russo. São
Paulo: Editora 34, 2017, pp. 185-186.
[xiii] “Para a maior glória de Deus”,
segundo referência da edição (Editora 34), “Divisa da Ordem dos Jesuítas”.
(Ibid, p.186).
[xiv] Idem.
[xv] Ibid, p.187.
[xvi] O grifo é nosso.
[xvii] Ibid, p. 188.
[xviii] O grifo é nosso.
[xix] Ibid, pp. 188-189.
[xx] Ibid, p. 190.
[xxi] Ibid, pp. 205-206.
[xxii] O grifo é nosso.