segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”: De Dostoiévski ao Jesus Polýtropos da Estação Primeira de Mangueira, um convite à reflexão

[http://www.mangueira.com.br/logo. Acesso em 16 de fevereiro de 2020]

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32)
De Dostoiévski ao Jesus Polýtropos da Estação Primeira de Mangueira, um convite à reflexão

(Maria Elizabeth Bueno de Godoy[i]; Alessandro Cardoso[ii])

            Em análoga citação à passagem do Quarto Evangelho, ou o livro de João, a Estação Primeira de Mangueira, tradicional escola de samba carioca, traz para seu desfile da noite do próximo domingo, 23 de fevereiro, na Marquês de Sapucaí, o provocativo enredo “A verdade vos fará livre”. Provocativo, diríamos, não pelo conteúdo per se, que traz um Jesus humanizado, redivivo e ressignificado em sua anunciada volta[iii], em nossas tão humanas facetas, tons e dores. Mas, sim, intrigante, por renovar reflexões clássicas da literatura, história e filosofia em tempos presentes (anacrônicos?) de semelhante intolerância. Sim. É preciso reconhecermos os tempos de recrudescimento, e, neste esforço reflexivo, possibilitar, capacitar, ou mesmo convidar o leitor a considerá-lo.

            A proposta de um Cristo polýtropos – palavra grega que define o multifacetado – ensejada por Leandro Vieira (carnavalesco responsável pelo enredo da ‘Verde e Rosa’), nos permite revisitar um clássico da literatura russa, em que as mesmas humanas divagações se interpõem aos devaneios filosóficos, éticos e morais dos irmãos Ivan e Alieksiéi Kamarázov, na obra de Fiódor Dostoiévski[iv]. Esforço que ilustra as angústias tão caras aos homens ao divagarem sobre temas absolutamente imperativos à vida, como a liberdade, o amor e a verdade.
Refletir sobre tão amplo contexto apresenta, contudo, o perigo de perdermo-nos em divagações. Faz-se, assim, um recorte objetivo e prudente que não almeja esgotar o tema, tampouco dissertar pelas aleias do debate teológico. O texto convida a uma espécie de exegese reflexiva... pensar o “e se”, e as im(possibilidades) do diálogo suscitado por Dostoiévski, ressignificado no enredo da Mangueira. Mas, o leitor poderá questionar, por que um clássico, e nesse ínterim, por que Dostoiévski? Para justificá-lo, recorremos a George Steiner em sua crítica literária, Tolstói ou Dostoiévski: “há grandes linhas de descendência espiritual que relacionam Homero a Yeats, e Ésquilo a Tchékhov. A esses a crítica deve retornar com apaixonada reverência e com a percepção da vida, sempre renovada.”[v] Digamos que no presente há uma pungente necessidade em tal esforço.
A passagem referida do evangelho de João (João 8, 32) está contemplada no chamado Livro dos Sinais que aborda, sobretudo, o ministério público de Jesus. Segue à narrativa da mulher adúltera, ou “Perícopa da Adúltera” (João 7,53 – 8,1-11), em que Jesus, questionado pelos fariseus sobre o destino da mulher pega em flagrante adultério, surpreende a todos ao convidar os limpos e livres de pecado que lhe atirassem a primeira pedra (a pena capital por adultério era, na Palestina do período, a lapidação[vi]). Diante do exame de consciência - este o claro ensejo do “atire a pedra quem estiver limpo!” - Jesus atualiza uma verdade íntima contra aquilo que se propaga e legisla sob o véu da intolerância. À mulher concede o recomeço, “agora vá”; e o arbítrio, “e não peques mais” (João 8,11).
O trecho deságua no imperativo, “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Verdade essa ilustrada e contemplada na ação do Cristo, em sua palavra tornada ato, que reitera a máxima do amor ao próximo, único capaz de ensejar a tolerância com as diferenças. O amor crístico desse caminho trilhado e modelado pelo Cristo acolhe os que caem, os que pecam, os adoecidos do corpo e do espírito, os desvalidos, os doentes, os perseguidos e alijados. Na Palestina do ano I, leprosos, humildes, crianças, doentes, famintos, mulheres, entre adúlteras e prostitutas, enfim, o cortejo dos oprimidos. Ressignificado em infinitos tons do verde e do rosa o cortejo compõe o mosaico social da carioca ‘Palestina’ no século XXI, trazendo nas figuras oprimidas de nossa sociedade a faceta crística da proposta essencial de Jesus, ilustrada na quarta estrofe do samba enredo[vii]:

Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores do Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão.[viii]
           
Em uma analogia crítica, a Estação Primeira nos convida a um “samba-reflexão”, apresentando, assim, um Jesus histórico, mais humano, polýtropos, essencialmente coerente à proposta original, em que “o Verbo se fez carne” para habitar entre nós (João 1,14). No primeiro verso a aludir ao local de nascimento de Jesus (Mateus 2,1) em uma cidade dominada e marginalizada pelo império romano, o menino Jesus nasce na exclusão (Lucas 2,7). Momento em que cada comunidade carioca passa a representar a Belém da Judéia. Também como José, os simples de ofício digno, não obstante sem reconhecimento formal, legiões de desempregados pelo Brasil afora, lutando por sua família, seja qual for: pai e mãe, pai e pai, mãe e mãe, em um cenário multifacetado.
            Maria, mãe dos homens desde quando Cristo padece na cruz (João 19, 26-27), ressignificada na mulher de fibra, que ampara o lar, mas também a comunidade inteira, traduz a luta de cada mulher por seus direitos, dignidade, reconhecimento e voz. Temática que nos leva à pequena digressão sobre o movimento ocorrido no seio da ICAR[ix], conhecido como a Teologia da Libertação.
            Criada na década de 70, após  o Concílio Vaticano II (1962-1965), e a Conferência Episcopal Latino Americana realizada em Medellín-Colômbia, em 1968, traz em seu cerne a busca pelos direitos e a justiça dos pobres, um olhar caridoso e libertador,  reverberado por intelectuais cristãos como Gustavo Gutiérrez, frei Betto, Rubem Alves, dentre outros.
O grande propagador dessa teologia no Brasil foi o frei franciscano Leonardo Boff, doutor em Teologia, que, por meio dela, uniu a pastoral à teologia. Destarte, introduziu-se nas academias as práticas pastorais que refletiram nas comunidades, sobretudo nas favelas, libertando os oprimidos, tornando-os sujeitos desta teologia. Motivo que reforça ser o Evangelho de Cristo pelos desvalidos. Portanto, “a missão da igreja junto aos pobres devia ser libertadora e não mais assistencialista.”[x]
            À obra de Fiódor Dostoiévski desloca-se a discussão, amparada no diálogo dos irmãos Ivan e Alieksiéi (carinhosamente chamado de Aliócha pelos mais velhos), em que se desenvolve uma das passagens mais intrigantes do pensamento filosófico do autor, nos auxiliando a refletir sobre a proposta mangueirense. Intitulada “O Grande Inquisidor”, contemplada no capítulo V do Livro V da obra Os irmãos Karamázov, a narrativa desenrola o fio de uma provocativa asserção de Ivan ao irmão caçula, já suscitada no capítulo anterior, em que, com o intuito de instigar-lhe a emocionada réplica, afirma:

- Devo confessar-te uma coisa – começou Ivan – Jamais pude compreender como se pode amar seu próximo. E precisamente, na minha ideia, o próximo que não se pode amar, ou somente a distância. Li, em alguma parte, a propósito de um santo, João, o Misericordioso, a quem um passante faminto e transido de frio foi um dia suplicar que o aquecesse; o santo deitou-se com ele, tomou-o em seus braços e se pôs a insuflar seu hálito na boca purulenta do infeliz, infectada por uma horrível moléstia. Estou persuadido de que fez isso com esforço, mentindo a si mesmo, num sentimento de amor ditado pelo dever e por espírito de penitência. Para que se possa amá-lo, é preciso que um homem esteja oculto; desde que ele mostra seu rosto, o amor desaparece.
- O stáriets Zósima falou por várias vezes disso – observou Aliócha. – Dizia também que muitas vezes, para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo de amor. Há, no entanto, muito amor na humanidade, um amor quase igual ao do Cristo, eu mesmo o sei, Ivan...
- Pois bem, eu, eu não o sei ainda e não posso compreendê-lo; muitos estão no mesmo caso. Trata-se de saber se isso provém dos maus pendores, ou se é inerente à natureza humana. Na minha opinião, o amor do Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na terra. É verdade que ele era Deus; mas nós não somos deuses. Suponhamos, por exemplo, que eu sofro profundamente; outro não poderá jamais conhecer a que ponto sofro, porque é outro, e não eu.[xi]

            A impossibilidade do milagre – aqui interpretado como o exercício consciente de amar ao próximo - se desdobra no ato de não julgar, na genuína empatia, e no exercício “divino”, portanto sobre humano, heroico talvez, de tolerância fraterna. O caminhar com as sandálias humílimas do Cristo. Atos cujo impeditivo seria a própria condição humana, falível, frágil, intolerante, vaidosa e condenatória. E diante do estupefato e pio Aliócha, Ivan apresenta-lhe sua estória, um poema por ele inventado “com ardor”, cujo enredo recita ao irmão à guisa de defesa da justa impossibilidade do amor crístico entre os homens.
            Em seu poema, intitulado “O Grande Inquisidor”, a ação se passa no século XVI, na Espanha, em Sevilha, no mais terrível tempo da Inquisição, quando em autos de fé fogueiras ardiam queimando hereges pela glória de Deus. Cenário que Ivan escolhe (não por acaso!) para o retorno do Cristo, desejoso em “aparecer, ainda por um instante, ao povo – atormentado, sofredor, mergulhado em seu fétido pecado, mas amando-O, como criancinhas.”[xii] A cena é assim descrita:

Ele desce sobre “as largas ruas quentes” da cidade sulina, justamente onde ainda na véspera, em um “magnífico auto de fé”, na presença do rei, da corte, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, diante da numerosa população de toda a Sevilha, o cardeal grande inquisidor queimou de uma vez quase uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei.[xiii] Ele aparece em silêncio, sem se fazer notar, eis que todos – coisa estranha – O reconhecem.[xiv]

            E justo nessa passagem Ivan alerta Aliócha sobre o caráter intrigante e curioso do povo tê-lo feito, como movido por força invencível, assediando a figura daquele homem simples, rogando-Lhe bençãos, tocando-Lhe as vestes... Descreve com estupefata e exagerada riqueza de detalhes a cena da volta deste Cristo brando, iluminado, de cujo coração arde o sol do amor, outrora pregado por Ele naquela Palestina do século I.
E diante de um compenetrado Aliócha, Ivan descreve a peripécia trágica dos eventos que escolhera narrar para fundamentar sua defesa da aporia do amor crístico. O frenesi do povo já chamava a atenção dos padres, e, não surpreendentemente, do próprio cardeal inquisidor, que observava o burburinho causado por aquela figura, de longe, ao lado da catedral. Era a autoridade ali, acompanhado de seu séquito, sua guarda sagrada e auxiliares. Segundo Ivan, “um velho de quase noventa anos, alto e ereto, rosto ressequido e olhos fundos, mas nos quais um brilho ainda resplandece, como uma centelha.”[xv] A centelha de uma astucia que reconhece objetivamente o que ali se desenrolava entre o povo, cegamente arrastado pela comoção daquele reencontro inusitado. Diante da multidão, o cardeal para e observa, assim descreve Ivan.

Franze as sobrancelhas grisalhas e bastas, seu olhar irradia um fogo funesto.[xvi] Ele aponta o dedo aos guardas e ordena que O prendam. E eis que sua força é tamanha e o povo está tão habituado, submisso e lhe obedece com tanto temor que a multidão se afasta imediatamente diante dos guardas e estes, em meio ao silêncio sepulcral que de repente se fez, põem as mãos n’Ele e o levam. [xvii]

            A cena revive aquela do jardim de Getsêmani, intitulada a “Agonia do Jardim”, narrada nos quatro evangelhos como a narrativa da Paixão. Jesus, por ordem do Sinédrio e traição de Judas Iscariotes, era preso e levado à fortaleza Antônia para o interrogatório das autoridades romanas. Dava-se ali o início do suplício do Cristo, sua via Dolorosa, preso, torturado, julgado e condenado. Na releitura de Dostoiévski, dar-se-ia o inusitado, o absurdo, segundo Aliócha, e a grande ironia de nossa herança cristã. Preso pela guarda e asseclas do cardeal, Jesus é levado a um calabouço apertado e sombrio na sede do próprio tribunal do Santo Ofício. Cristo tratado como herege, como na análoga (e precipitada) reação de lideranças e autoridades ao Jesus polýtropos da Estação Primeira de Mangueira. Vejamos a passagem que descreve o monólogo do inquisidor para, então, traçarmos alguns pontos de contato com o samba enredo.

Em meio a trevas profundas abre-se de repente a porta de ferro da prisão e o próprio velho, o grande inquisidor, entra lentamente com um castiçal na mão. Está só; a porta se fecha imediatamente após sua entrada. Ele se detém por muito tempo à entrada, um ou dois minutos, examina o rosto do Prisioneiro. Por fim se aproxima devagar, põe o castiçal numa mesa e Lhe diz: “És tu? Tu?”. Mas, sem receber resposta, acrescenta rapidamente: “Não respondas, cala-te. Ademais, que poderias dizer? Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito de acrescentar nada ao que já tinhas dito. Por que vieste nos atrapalhar? Pois vieste nos atrapalhar e tu mesmo o sabes. Mas sabes o que vai acontecer amanhã? Não sei quem és e nem quero saber: és Ele ou apenas a semelhança d’Ele, mas amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais perverso dos hereges,[xviii] e aquele mesmo povo que hoje te beijou os pés, amanhã, ao meu primeiro sinal, se precipitará a trazer carvão para a tua fogueira, sabias? É, é possível que o saibas” – acrescentou compenetrado em pensamentos, sem desviar um instante o olhar de seu prisioneiro.[xix]

            A passagem dispensa interpretações. É de uma clareza absoluta e inquestionável. Um cardeal, a mais alta “patente” nas fileiras da Igreja Católica, autoridade que responde diretamente ao Santo Padre em Roma, cônscio do perigo que representaria o retorno à mensagem simples, branda e crística do Cristo, determina, julga e condena sua atuação, seja essa ressignificada e rediviva, mesmo outrora anunciada! Há um projeto de quinze séculos em andamento, que não admite tamanha digressão.
            Em uma das estrofes de seu samba enredo a Mangueira anuncia (em espécie de tenebrosa expectativa) a reação à sua releitura da mensagem do Cristo, pois defendendo seu samba como uma reza, faz a súplica em nome dos oprimidos e reitera a verdade das muitas faces desse “Jesus da Gente”:

Mangueira
Vão te inventar mil pecados
                                      Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também

Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente

            Ivan, diante de um chocado Aliócha, prossegue, afirmando sobre o direito da autoridade cardinalícia em assim proceder diante do quiproquó causado por inusitada e constrangedora aparição. Diz ser esse o traço essencial do catolicismo romano, permitindo ao cardeal a última palavra, neste sentido:

Tu, dizem, transferiste tudo ao papa, portanto, tudo hoje é da alçada do papa, e quanto a ti, ao menos agora não me apareças absolutamente por aqui, quando mais não seja não me atrapalhes antes do tempo.
Terás o direito de nos anunciar ao menos um dos ministérios do mundo de onde vieste? – pergunta-lhe o velho, e ele mesmo responde: “Não, não tens, para que não acrescentes nada ao que já foi dito antes nem prives as pessoas da liberdade que tanto defendeste quando estiveste aqui na Terra. Tudo o que tornares a anunciar atentará contra a liberdade de crença dos homens, pois aparecerá como milagre, e a liberdade de crença deles já era para ti a coisa mais cara mil e quinhentos anos atrás. Não eras tu que dizias com frequência naquele tempo: ‘Quero fazê-los livres?’ Pois bem, acabaste de ver esses homens ‘livres’ – acrescenta de súbito o velho com um risinho ponderado. – Sim, essa questão me custou caro – continua ele, fitando-O, severamente -, mas finalmente concluímos esse caso em teu nome.[xx]

            Pois, com a autoridade do Cristo e sua palavra tornada cânone nos quatro evangelhos (canônicos), e regra estabelecida e postulada nos concílios ao longo da Idade Média, a tal ‘liberdade’ anunciada por Ele passava a ser regida e ordenada pela Igreja, erigida em seu nome. E aí está a grande ironia: a liberdade crística, anunciada pelo Cristo tornada ato em seu ministério público era então tutelada pelas lideranças e autoridades, que faziam dela instrumento de ‘felicidade’ – por sua simplificação – para o rebanho cristão, reverberadas na estrofe do samba, abaixo transcrita:

          Eu tô que tô dependurado
          Em cordéis e corcovados
          Mas será que todo o povo entendeu o meu recado?
          Porque de novo cravejaram o meu corpo
          Os profetas da intolerância
          Sem saber que a esperança
          Brilha mais na escuridão

Como um enigma terrível e insondável o exercício da consciência crística custa aos homens, na aporia de Ivan Karamázov, o sacrifício impossível do despojar-se de si mesmo (vaidades, desejos, interesses, egoísmo), e acolher o outro, em sua miséria, dor e sofrimento. Como cruzar a porta estreita em cuja soleira reside o imperativo “amar ao próximo, como a ti mesmo”, “amar ao próximo como Eu vos amei”? A natureza humana nos impede de tal nível de abnegação e, perdidos, buscamos uma autoridade que nos console, ampare, oriente, mas, sobretudo, conduza. Facilitado assim o ato crístico, mastigado e delegado àqueles que guardam as chaves do trono pétreo, fazem-no ato cristão, pio e caridoso, pois “só se pode amar ao próximo” (aquele que nos causa estranheza, desconforto, incômodo, constrangimento, e até mesmo asco), “a distância.” E assim conclui o velho inquisidor:

Sabes que não te temo. Sabes que também estive no deserto, que também me alimentei de gafanhotos e raízes, que também bendisse a liberdade com a qual abençoaste os homens, e me dispus a engrossar o número de seus eleitos, o número dos poderosos e fortes ansiando ‘completar o número’. Mas despertei e não quis servir à loucura. Voltei e me juntei à plêiade daqueles que corrigiram tua façanha. Abandonei os orgulhosos e voltei para os humildes, para a felicidade desses humildes. O que eu estou te dizendo acontecerá e nosso reino se erguerá. Repito que amanhã verás esse rebanho obediente, que ao primeiro sinal que eu fizer passará a arrancar carvão quente para a tua fogueira, na qual vou te queimar porque voltaste para nos atrapalhar. Porque se alguém mereceu nossa fogueira mais do que todos, esse alguém és tu. Amanhã te queimarei. Dixi.[xxi]

           
            O monólogo do velho cardeal (assim apresentado por Ivan), terminado com a palavra dixi, do latim, ‘tenho dito’, eloquente pela vigorosa retórica que garante e justifica a legitimidade de sua decisão, seria chocante se não fosse tão atual. Para alívio de Aliócha o irmão oferece uma alternativa, não menos irônica, que veremos na segunda parte deste ensaio, (publicação futura). Por ora basta-nos observar o tom acusatório e condenatório que, reverberado em velocidade virtual no século XXI, revisita o incômodo de uma proposta simples e elogiosa, pungente e consciente com a qual a Estação Primeira de Mangueira nos presenteia. Faz-se mister, portanto, que a proposta seja ouvida, vista e apreciada.
É preciso que o Jesus polýtropos enaltecido pela Mangueira seja visto pelo povo que se amontoa nos viadutos dos acessos à avenida do samba, com suas bandeirinhas coloridas de verde e rosa, apertados em emocionada torcida no Setor 1, ‘termômetro’ e coração da Sapucaí, que abriga os ingressos populares do desfile. É da concentração da escola, do barracão, das ruelas tomadas pelos ambulantes e passantes, alijados do luxo das frisas e camarotes, que canta e ecoa a mensagem trazida pela Estação Primeira de Mangueira: trazer Jesus para os corações, para as avenidas dos sambas e para a Ágora, mensagem reiterada em Marcos 16,15, “Ide por todo o mundo, proclamai o evangelho a toda criatura.”[xxii]
Que venha, portanto, colorido de verde e rosa. Dixi.

Referências Bibliográficas

BOFF, Leonardo. "A morte pertence à vida. É seu ponto culminante. Ela nos permite dar um salto para o outro lado de nós mesmos, invisível a nós, mas real". Entrevista especial com Leonardo Boff. [Entrevista concedida] IHU On-line. Instituto Humanitas  Unisinos. [s.i], 2018. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/585516-a-morte-pertence-a-vida-e-seu-ponto-culminante-ela-nos-permite-dar-um-salto-para-o-outro-lado-de-nos-mesmos-invisivel-a-nos-mas-real-entrevista-especial-com-leonardo-boff> Acesso em 16 de fevereiro de 2020.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Abril Cultural, 1970.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. “O Grande Inquisidor”, em CAVALIERE, Arlete (org.). Clássicos do Conto Russo. São Paulo: Editora 34, 2017.

SILVA, Bruno Marques. Fé, razão e conflito. A trajetória intelectual de Leonardo Boff. Niterói, 2007. Disponível em: < file:///C:/Users/w7/Downloads/Dissert-2007_SILVA_Bruno_Marques-S%20(1).pdf> Acesso em: 15 de fevereiro de 2020.

STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. Um Ensaio sobre o Velho Criticismo. Tradução Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.



[i] Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
[ii] Graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Amapá.
[iii] A volta do Cristo, também conhecida como Parousia no Novo Testamento, é tema recorrente em algumas passagens das escrituras, como em Mateus, 24,27.
[iv] Para o presente ensaio utilizamos a tradução da Abril Cultural (1970) de Os Irmãos Karamázov para as passagens do capítulo IV do Livro V, e a para o capítulo V do mesmo Livro V, a tradução organizada na coletânea organizada por Arlete Cavaliere, Clássicos do Conto Russo, editada pela Ed. 34, em 2017.
[v] STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. Um Ensaio sobre o Velho Criticismo. Tradução Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 3.
[vi] (Levítico, 20, 10; Deuterônimo, 22, 22).
[vii] Autoria de Manú da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.
[viii] O grifo é nosso.
[ix] Sigla para Igreja Católica Apostólica Romana.
[x] BOFF, Leonardo. "A morte pertence à vida. É seu ponto culminante. Ela nos permite dar um salto para o outro lado de nós mesmos, invisível a nós, mas real". Entrevista especial com Leonardo Boff. [Entrevista concedida] IHU On-line.
[xi] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Abril Cultural, 1970, p. 178.
[xii] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. “O Grande Inquisidor”, em CAVALIERE, Arlete (org.). Clássicos do Conto Russo. São Paulo: Editora 34, 2017, pp. 185-186.
[xiii] “Para a maior glória de Deus”, segundo referência da edição (Editora 34), “Divisa da Ordem dos Jesuítas”. (Ibid, p.186).
[xiv] Idem.
[xv] Ibid, p.187.
[xvi] O grifo é nosso.
[xvii] Ibid, p. 188.
[xviii] O grifo é nosso.
[xix] Ibid, pp. 188-189.
[xx] Ibid, p. 190.
[xxi] Ibid, pp. 205-206.
[xxii] O grifo é nosso.