sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Necropolítica dos Drones



Necropolítica dos Drones



Vou falar sobre dois assuntos que dificilmente são discutidos juntos: Drones e Necropolítica. Primeiramente, vamos falar sobre o que são drones. Um drone é um veículo aéreo não tripulado controlado remotamente e que pode realizar inúmeras tarefas. As possibilidades dessas tarefas estão em aberto, pois ainda não foram todas esgotadas, no entanto, podemos incluir tirar fotos, fazer entregas, espionagem e uso bélico. É especificamente sobre este último que queremos nos centrar. Cada vez mais cresce o número de drones utilizados em operações militares, desde vasculhamento de área até ataque ao inimigo. Além do controle remoto dos drones, há drones já desenvolvidos com inteligência artificial e capazes de realizar tarefas sem um monitoramento integral. Com o avanço da tecnologia 5G, a tendência é que haja cada vez mais drones aprimorados com inteligência artificial a fazer um tipo de serviço específico, como abater alvos militares, sem que tenha uma contrapartida humana por trás disso.
Necropolítica é um conceito desenvolvido e consagrado por Achille Mbembe em um ensaio de 2003 intitulado Necropolítica. Neste ensaio, Mbembe explica de que maneira a política do Estado tem o poder de decisão sobre quem vive e quem morre. A necropolítica faz relação com o conceito de biopoder em Foucault, que trataria do controle do Estado sobre a vida dos cidadãos. O biopoder se caracteriza pela estatização da vida biologicamente considerada, ou seja, pelo controle do Estado nas várias instâncias da vida humana em sociedade. Para Mbembe, quando se nega a humanidade do outro, qualquer violência se torna possível, de agressões até morte. Dessa forma, a necropolítica é o modo pelo qual a soberania exerce controle sobre a mortalidade e define a vida como a implantação e manifestação de poder. E o que isso tem a ver com drones?

A necropolítica dos drones é a transferência dessa soberania que decide quem deve morrer para o drone, dando a ele a total responsabilidade pelos atos cometidos. Os drones militares operariam com um algoritmo de distinção racial, o que permitiria uma maior facilidade na distinção do alvo. Por outro lado, essa é justamente a lógica pela qual o racismo funciona, o que leva a um tipo de segregação estabelecida pelos drones. Sobre a utilização de drones militares, existem argumentos a favor e contra (Allinson, 2015, p. 115). O argumento pró-drone, defende a regulação do uso do drone de acordo com os princípios básicos da lei de guerra: causa justa, proporcionalidade e discriminação entre combatentes e não-combatentes. O argumento contra-drone, entende o risco do empoderamento de robôs com força letal é muito grande, assim como as decisões particulares para se declarar guerra podem ser reduzidas. Há também uma questão moral sobre a decisão de matar. Se um drone mata alguém injustamente, não há como se considerar ele um agente moral responsável (Allinson, 2015, p. 115). Isso cria um dilema ético sobre a construção de robôs inteligentes capazes de decidir, através de uma inteligência artificial, quem deve morrer e quem pode viver. Um bom filme que discute essa questão é o “Exterminador do Futuro”, em que um androide vindo do futuro é programado para matar uma pessoa específica e, para realizar a sua tarefa, acaba por matar um número alto de inocentes. A própria ONU tem ações propositivas em vista de evitar isso (GIELOW, 2019).
Os drones, já antes usados para supervisionar áreas as quais o exército americano se encontra passam a ser uma arma de combate precisa para eliminação de alvos. Segundo o Bureau of Investigative Journalism, Obama investiu no programa de drones dos EUA, realizando mais ataques no seu primeiro ano do que todo o governo Bush. Um total de 563 ataques feitos por drones, tendo como alvos Paquistão, Somália, Afeganistão e Iraque. Entre 300 a 800 civis morreram nesses ataques (PURKISS; SERLE, 2017). Segundo Jamie Allinson, em artigo específico sobre necropolítica de drones:

[...] o drone não é apenas uma nova tecnologia no sentido cotidiano de uma montagem mecânica e elétrica: ele é uma tecnologia de distinção racial.
[…]
O presente debate sobre drones e sua potencial autonomia perde esse ponto, não por subestimar a autonomia dos drones, mas por superestimar os seus operadores: há já um sistema de reconhecimento de alvos em funcionamento na tecnologia de distinção racial que abrange tanto os drones mecânicos como seus operadores carnais. A lógica da necropolítica discutida neste trabalho refere-se ao desenho de cesura entre populações dignas e indignas de vida e, consequentemente, o exercício do poder soberano da morte contra os membros destas populações. (Allinson, 2015, p. 119)

Allinson demonstra com o seu trabalho como os drones usados militarmente vem corroborar a tese de Mbembe sobre a necropolítica. É como se os drones estabelecessem áreas de domínio ou novas colônias de controle étnico, determinando extrajudicialmente quem tem direito a vida ou não. O recente caso do assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, ocorrido no mês passado em visita oficial ao Iraque, é um típico caso de necropolítica de drones. No caso, o drone utilizado foi o MQ-9 Reaper construído pela americana General Atomics e é considerado o mais avançado drone militar. Com este ataque, os Estados Unidos abriram um precedente inimaginável para o que entendemos por estado de guerra (warfare state) e o direito internacional. Um ataque irresponsável contra o segundo homem mais poderoso do Irã, país o qual eles não estavam em guerra até então. A justificativa oficial americana, dada pelo presidente Donald Trump, de que Soleimani seria “um líder terrorista e um monstro que merecia morrer” não é suficiente para impedir a desestabilização no Oriente Médio. Apesar de ser uma demonstração de força na região, não deixa de ser um ato irresponsável, pois a resposta do Irã não foi nada fraca, de maneira que o presidente americano recuou em sua decisão de fazer uma guerra direta contra o Irã, optando pelos embargos econômicos.
Um dos motivos para isso, é que o Irã tem uma pesquisa avançada no desenvolvimento de drones e são capazes de dar uma resposta precisa aos ataques americanos. O tempo de resposta do Irã ao ataque americano foi rápido e eficaz, o que demonstra que, em qualquer conflito futuro com o Irã que possa envolver os EUA e seus aliados contra o Irã e seus representantes, a ameaça drone precisará ser tratada. É um símbolo claro da crescente presença do Irã no Oriente Médio, que se estende de Beirute a Damasco, Bagdá e Iêmen, através do Golfo de Omã. Não é possível mais subestimar o poder dos drones militares do Irã (Rogers, 2020). No dia 27 de janeiro, houve uma resposta do Talibã com a derrubada de um avião americano com oficiais de alta patente. Não há ainda nenhum indício que ligue o ataque ao Irã, mas o curto espaço de tempo entre um ataque e outro levanta a suspeita.
O Iraque é o mais claro exemplo de como os drones podem ser utilizados de maneira abusiva para eliminar alvos sem grandes responsabilidades por seus atos. O drone é capaz de estabelecer o limite geopolítico sobre uma população inteira, determinando que merece ser protegido e quem deve ser eliminado, caracterizando o regime da necropolítica. Dessa forma, é preciso uma consideração filosófica e ética sobre o assunto, que abranja não apenas os interesses militares de uma nação invasora de outra, mas também e, principalmente, os interesses de toda a população invadida. Isso suscita uma análise consciente sobre os pressupostos por trás do investimento financeiro em drones militares, além de uma excelente fonte de discussão para os direitos humanos, o direito internacional, a filosofia da tecnologia e a filosofia moral.
(Luiz Maurício Bentim)


REFERÊNCIAS

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ÇAM, D. A história do drone que matou o major-general iraniano Qassem Soleimani. Forbes, 07 de janeiro de 2020. Disponível em: https://forbes.com.br/negocios/2020/01/a-historia-do-drone-que-matou-o-major-general-iraniano-qassem-soleimani/. Acesso em 31/01/2020.

ÇAM, D.; HELMAN, C. The Quiet Billionaires Behind America’s Predator Drone That Killed Iran’s Soleimani, 07 de janeiro, 2020. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/denizcam/2020/01/07/the-quiet-billionaires-behind-americas-predator-drone-that-killed-irans-soleimani/#3c510ea25cb0. Acesso em: 31/01/2020.

DOWARD, J. Britain funds research into drones that decide who they kill, says report. The Guardian, 10 de novembro de 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2018/nov/10/autonomous-drones-that-decide-who-they-kill-britain-funds-research. Acesso em: 31/01/2020.

FOUCAULT, M. O Nascimento da Biopolítica. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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GIELOW, I. ONU age para impedir criação de 'Exterminador do Futuro' da vida real. Folha de SP, 30 de agosto de 2019. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/onu-age-para-impedir-criacao-de-exterminador-do-futuro-da-vida-real.shtml. Acesso em: 31/01/2020.

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ROGERS, J. Drone superpower? Iran’s arsenal of unmanned aerial vehicles should not be underestimated, expert warns, 08 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.foxnews.com/tech/drone-superpower-iran-arsenal-unmanned-aerial-vehicles. Acesso em: 06/02/2020.

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