Necropolítica dos
Drones
Vou falar
sobre dois assuntos que dificilmente são discutidos juntos: Drones e
Necropolítica. Primeiramente, vamos falar sobre o que são drones. Um drone é um
veículo aéreo não tripulado controlado remotamente e que pode realizar inúmeras
tarefas. As possibilidades dessas tarefas estão em aberto, pois ainda não foram
todas esgotadas, no entanto, podemos incluir tirar fotos, fazer entregas,
espionagem e uso bélico. É especificamente sobre este último que queremos nos centrar.
Cada vez mais cresce o número de drones utilizados em operações militares,
desde vasculhamento de área até ataque ao inimigo. Além do controle remoto dos
drones, há drones já desenvolvidos com inteligência artificial e capazes de
realizar tarefas sem um monitoramento integral. Com o avanço da tecnologia 5G,
a tendência é que haja cada vez mais drones aprimorados com inteligência artificial
a fazer um tipo de serviço específico, como abater alvos militares, sem que
tenha uma contrapartida humana por trás disso.
Necropolítica
é um conceito desenvolvido e consagrado por Achille Mbembe em um ensaio de 2003
intitulado Necropolítica. Neste ensaio, Mbembe explica de que maneira a
política do Estado tem o poder de decisão sobre quem vive e quem morre. A
necropolítica faz relação com o conceito de biopoder em Foucault, que trataria
do controle do Estado sobre a vida dos cidadãos. O biopoder
se caracteriza pela estatização da vida biologicamente considerada, ou seja,
pelo controle do Estado nas várias instâncias da vida humana em sociedade. Para Mbembe, quando se nega a humanidade do outro, qualquer violência se
torna possível, de agressões até morte. Dessa forma, a necropolítica é o modo
pelo qual a soberania exerce controle sobre a mortalidade e define a vida como
a implantação e manifestação de poder. E o que isso tem a ver com drones?
A
necropolítica dos drones é a transferência dessa soberania que decide quem deve
morrer para o drone, dando a ele a total responsabilidade pelos atos cometidos.
Os drones militares operariam com um algoritmo de distinção racial, o que
permitiria uma maior facilidade na distinção do alvo. Por outro lado, essa é
justamente a lógica pela qual o racismo funciona, o que leva a um tipo de
segregação estabelecida pelos drones. Sobre a utilização de drones militares,
existem argumentos a favor e contra (Allinson, 2015, p. 115). O argumento
pró-drone, defende a regulação do uso do drone de acordo com os princípios básicos
da lei de guerra: causa justa, proporcionalidade e discriminação entre
combatentes e não-combatentes. O argumento contra-drone, entende o risco do
empoderamento de robôs com força letal é muito grande, assim como as decisões
particulares para se declarar guerra podem ser reduzidas. Há também uma questão
moral sobre a decisão de matar. Se um drone mata alguém injustamente, não há
como se considerar ele um agente moral responsável (Allinson, 2015, p. 115).
Isso cria um dilema ético sobre a construção de robôs inteligentes capazes de
decidir, através de uma inteligência artificial, quem deve morrer e quem pode
viver. Um bom filme que discute essa questão é o “Exterminador do Futuro”, em
que um androide vindo do futuro é programado para matar uma pessoa específica
e, para realizar a sua tarefa, acaba por matar um número alto de inocentes. A própria
ONU tem ações propositivas em vista de evitar isso (GIELOW, 2019).
Os drones,
já antes usados para supervisionar áreas as quais o exército americano se
encontra passam a ser uma arma de combate precisa para eliminação de alvos. Segundo
o Bureau of Investigative Journalism, Obama investiu no programa de
drones dos EUA, realizando mais ataques no seu primeiro ano do que todo o
governo Bush. Um total de 563 ataques feitos por drones, tendo como alvos Paquistão,
Somália, Afeganistão e Iraque. Entre 300 a 800 civis morreram nesses ataques (PURKISS;
SERLE, 2017). Segundo Jamie Allinson, em artigo específico sobre necropolítica
de drones:
[...] o drone não é apenas uma nova tecnologia no sentido cotidiano de uma montagem mecânica e elétrica: ele é
uma tecnologia de distinção racial.
[…]
O presente debate sobre drones e sua potencial autonomia perde esse ponto,
não por subestimar a autonomia dos drones, mas por superestimar os seus
operadores: há já um sistema de reconhecimento de alvos em funcionamento na
tecnologia de distinção racial que abrange tanto os drones mecânicos como seus operadores
carnais. A lógica da necropolítica discutida neste trabalho refere-se ao desenho
de cesura entre populações dignas e indignas de vida e, consequentemente, o exercício
do poder soberano da morte contra os membros destas populações. (Allinson,
2015, p. 119)
Allinson
demonstra com o seu trabalho como os drones usados militarmente vem corroborar
a tese de Mbembe sobre a necropolítica. É como se os drones estabelecessem áreas
de domínio ou novas colônias de controle étnico, determinando
extrajudicialmente quem tem direito a vida ou não. O recente caso do
assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, ocorrido no mês passado em visita oficial ao Iraque, é um típico caso
de necropolítica de drones. No caso, o drone utilizado foi o MQ-9 Reaper construído pela americana General Atomics e é
considerado o mais avançado drone militar. Com este ataque, os Estados Unidos abriram um precedente inimaginável para o que entendemos
por estado de guerra (warfare state) e o direito internacional. Um ataque
irresponsável contra o segundo homem mais poderoso do Irã, país o qual eles não
estavam em guerra até então. A justificativa oficial americana, dada pelo
presidente Donald Trump, de que Soleimani seria “um líder terrorista e um
monstro que merecia morrer” não é suficiente para impedir a desestabilização no
Oriente Médio. Apesar de ser uma demonstração de força na região, não deixa de
ser um ato irresponsável, pois a resposta do Irã não foi nada fraca, de maneira
que o presidente americano recuou em sua decisão de fazer uma guerra direta
contra o Irã, optando pelos embargos econômicos.
Um dos motivos
para isso, é que o Irã tem uma pesquisa avançada no desenvolvimento de drones e
são capazes de dar uma resposta precisa aos ataques americanos. O tempo de
resposta do Irã ao ataque americano foi rápido e eficaz, o que demonstra que, em
qualquer conflito futuro com o Irã que possa envolver os EUA e seus aliados
contra o Irã e seus representantes, a ameaça drone precisará ser tratada. É um
símbolo claro da crescente presença do Irã no Oriente Médio, que se estende de
Beirute a Damasco, Bagdá e Iêmen, através do Golfo de Omã. Não é possível mais
subestimar o poder dos drones militares do Irã (Rogers, 2020). No dia 27 de
janeiro, houve uma resposta do Talibã com a derrubada de um avião americano com
oficiais de alta patente. Não há ainda nenhum indício que ligue o ataque ao
Irã, mas o curto espaço de tempo entre um ataque e outro levanta a suspeita.
O Iraque é
o mais claro exemplo de como os drones podem ser utilizados de maneira abusiva
para eliminar alvos sem grandes responsabilidades por seus atos. O drone é
capaz de estabelecer o limite geopolítico sobre uma população inteira,
determinando que merece ser protegido e quem deve ser eliminado, caracterizando
o regime da necropolítica. Dessa forma, é preciso uma consideração filosófica e
ética sobre o assunto, que abranja não apenas os interesses militares de uma nação
invasora de outra, mas também e, principalmente, os interesses de toda a
população invadida. Isso suscita uma análise consciente sobre os pressupostos por
trás do investimento financeiro em drones militares, além de uma excelente fonte
de discussão para os direitos humanos, o direito internacional, a filosofia da
tecnologia e a filosofia moral.
(Luiz Maurício Bentim)
REFERÊNCIAS
ALLINSON, J. The Necropolitics of Drones. International Political
Sociology, v. 9, p. 113-127, 2015.
BUSHWICK, S. How Iran Can Still Use Cyber and Drone Technology to Attack
the U.S., 08 de janeiro de 2020. Disponível
em: https://www.scientificamerican.com/article/how-iran-can-still-use-cyber-and-drone-technology-to-attack-the-u-s1/.
Acesso em: 06/02/2020.
ÇAM, D. A história do drone que matou o
major-general iraniano Qassem Soleimani. Forbes, 07 de janeiro de 2020.
Disponível em: https://forbes.com.br/negocios/2020/01/a-historia-do-drone-que-matou-o-major-general-iraniano-qassem-soleimani/.
Acesso em 31/01/2020.
ÇAM, D.; HELMAN, C. The Quiet Billionaires Behind America’s Predator
Drone That Killed Iran’s Soleimani, 07 de janeiro, 2020. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/denizcam/2020/01/07/the-quiet-billionaires-behind-americas-predator-drone-that-killed-irans-soleimani/#3c510ea25cb0.
Acesso em: 31/01/2020.
DOWARD, J. Britain funds research into drones that decide who they kill,
says report. The Guardian, 10 de
novembro de 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2018/nov/10/autonomous-drones-that-decide-who-they-kill-britain-funds-research.
Acesso em: 31/01/2020.
FOUCAULT, M. O Nascimento da Biopolítica. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, M. El
poder, una bestia magnífica. Edición al
cuidado de Edgardo Castro. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012.
FRANTZMAN, S. J. Iran is becoming a drone
superpower, 19 de julho de 2019. Disponível em: https://thehill.com/opinion/international/453437-iran-is-becoming-a-drone-superpower.
Acesso em: 06/02/2020.
G1. Avião dos EUA cai no Afeganistão e Talibã
assume autoria de ataque, 27 de janeiro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/01/27/aviao-cai-na-regiao-central-do-afeganistao.ghtml.
Acesso em: 31/01/2020.
GIELOW, I. ONU age para impedir criação de
'Exterminador do Futuro' da vida real. Folha de SP, 30 de agosto de
2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/onu-age-para-impedir-criacao-de-exterminador-do-futuro-da-vida-real.shtml.
Acesso em: 31/01/2020.
HASIAN, M. A. Drone warfare and lawfare in a post-heroic age. Tuscaloosa:
The University of Alabama Press, 2016.
MATSUURA, S. Do Afeganistão a Soleimani, o
avanço dos drones em ataques mortais dos EUA, 11 de janeiro de 2020. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/mundo/do-afeganistao-soleimani-avanco-dos-drones-em-ataques-mortais-dos-eua-24183531.
Acesso em: 31/01/2020.
MBEMBE, A. Necropolítica. Arte e Ensaios,
v. 32, p. 123-151, 2016.
PAWLYK, O. Air Force's Future Stealthy Combat Drone Could Use AI to Learn.
Military.com, 20 de
junho de 2019. Disponível em: https://www.military.com/daily-news/2019/06/20/air-forces-future-stealthy-combat-drone-could-use-ai-learn.html.
Acesso em: 31/01/2020.
PURKISS, J.; SERLE, J. Obama’s covert drone war in numbers: ten times
more strikes than Bush. Bureau of Investigative
Journalism, 17 de janeiro de 2017. Disponível em: https://www.thebureauinvestigates.com/stories/2017-01-17/obamas-covert-drone-war-in-numbers-ten-times-more-strikes-than-bush.
Acesso em: 02/02/2020.
ROGERS, J. Drone superpower? Iran’s arsenal of unmanned aerial vehicles
should not be underestimated, expert warns, 08 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.foxnews.com/tech/drone-superpower-iran-arsenal-unmanned-aerial-vehicles.
Acesso em: 06/02/2020.
SEGURANÇA ELETRÔNICA. Drone militar será capaz
de decidir quem matar com base em inteligência artificial. Disponível em: https://revistasegurancaeletronica.com.br/drone-militar-sera-capaz-de-decidir-quem-matar-com-base-em-inteligencia-artificial/.
Acesso em: 31/01/2020.
VILLASENOR, J. Here Come the Drones. Scientific
American, 01 de janeiro de 2012. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/here-come-the-drones/.
Acesso em: 06/02/2020.