Sociedade de
Controle
Continuando
a falar sobre biopolítica, vamos adentrar neste post a questão da sociedade de
controle. Para isso, vamos utilizar como base de discussão o Decreto nº 10.046
de 9 de outubro de 2019, que “Dispõe sobre a governança no compartilhamento de
dados no âmbito da administração pública federal e institui o Cadastro Base do
Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados”.
O decreto,
recém instituído pelo presidente Jair Bolsonaro, unifica a base de dados
pessoais do cidadão e regulamenta o compartilhamento de dados entre diferentes
esferas do governo, o que permitiria uma menor burocracia na documentação
pessoal. O problema é que esse decreto coloca nas mãos do Estado, e não nas
mãos do cidadão, o acesso aos seus dados pessoais. Da forma como foi redigida,
a medida permite um amplo compartilhamento de dados pela administração pública
federal, sem que o cidadão seja informado sobre isso. Dados coletados em um
hospital ou universidade poderiam ser utilizados para outras finalidades
distintas, como Previdência, segurança etc. Em outras palavras, o cidadão perde
o controle sobre onde seus dados irão parar no âmbito governamental. Além de
permitir o recolhimento de dados cadastrais, o decreto permite o recolhimento
de dados biográficos e dados biométricos, como características biológicas e
comportamentais mensuráveis da pessoa natural que podem ser coletadas para
reconhecimento automatizado, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a
retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar. Ou
seja, há uma permissão para uma vigilância excessiva sobre o cidadão através
dos instrumentos tecnológicos mais avançados.
Além disso,
o decreto também ignora a Lei 13.709, sancionada no governo Temer, a Lei Geral
de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que dispõe sobre a proteção de dados pessoais
e cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. A lei 13.709 determina que toda
pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e
garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de
privacidade. Ao que tudo indica, há uma zona de confronto entre o decreto recém
instituído e a LGPD, o que nos permite uma reflexão sobre a passagem de uma sociedade
vista por Michel Foucault como “disciplinar”, para um modelo de sociedade
identificada por Gilles Deleuze como de “controle”. De acordo com Deleuze,
a tecnologia política vista por Foucault para manter a estrutura disciplinar
acaba por se transformar em um total controle sobre o cidadão em suas
instâncias mais pessoais. É o que estamos vivenciando no momento recente do
país com o estabelecimento desse decreto pelo governo Bolsonaro.
O biopoder se caracteriza pela
estatização da vida biologicamente considerada, ou seja, pelo controle do
Estado nas várias instâncias da vida humana em sociedade. A concepção moderna
de Estado possibilitou a consagração do controle exercido, principalmente
através da concepção hobbesiana de Estado. Hobbes através do conceito de poder
soberano irá totalizar o poder nas mãos do corpo político, idealizando uma
unidade do poder. O Estado é fruto
desse poder, que terá sua gênese na paixão do medo da morte violenta, existente
em todos os homens. Será o poder da soberania, oriundo do referido contrato e
da sujeição dos homens a esse poder, que Foucault irá criticar através de seu
conceito de biopoder.
Deleuze
percebe a transição das sociedades disciplinares para a sociedade do controle. A
Sociedade de Controle nasce da combinação entre disciplina e biopolítica, de
maneira que o poder não se faz de forma
única, mas ele tem várias instâncias no qual se manifesta, de modo que a
própria tendência do Estado de ser totalitário necessita de instanciações de
poder para que possa ter e manter o controle sobre os corpos vivos existentes
dentro da sociedade.