quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Mitologias IV




Mitologias IV

Coloco o quarto fragmento da obra “Mitologias” de Roland Barthes sobre os mitos de esquerda:

Existe, portanto, uma linguagem que não é mítica, que é a linguagem do homem produtor: sempre que o homem fala para transformar o real, e não mais para conservá-lo em imagem, sempre que ele associa a sua linguagem à produção das coisas, a metalinguagem é reenviada a uma linguagem-objeto, e o mito torna-se impossível. Eis a razão por que a linguagem propriamente revolucionária não pode ser uma linguagem mítica. A revolução se define como um ato catártico, destinado a revelar a carga política do mundo: ela faz o mundo, e toda a sua linguagem é absorvida funcionalmente neste “fazer”. É por produzir uma fala plenamente, isto é, inicialmente e finalmente política, e não, como o mito, uma fala incialmente política e finalmente natural, que a revolução exclui o mito. Do mesmo modo que a deserção do nome burguês define simultaneamente a ideologia burguesa e o mito, assim a denominação revolucionária identifica a revolução com a ausência do mito: a burguesia se mascara como burguesia, esse mascarar-se produz o mito; a revolução se ostenta como revolução e, dessa forma, suprime o mito.

Perguntam-me se havia mitos “na esquerda”. Claro que sim, na exata medida em que a esquerda não é revolução. O mito de esquerda surge precisamente no momento em que a revolução se transforma em “esquerda”, isto é, aceita mascarar-se, encobrir o seu nome, aceita produzir uma metalinguagem inocente e deformar-se em “Natureza”. Essa deserção do nome revolucionário poder ser tática ou não; este não é o lugar adequado para discuti-lo. De qualquer modo, mais cedo ou mais tarde, essa omissão é sentida como um procedimento contrário à revolução, e é sempre mais ou menos em relação ao mito que a história revolucionária define os seus “desviacionismos”.

[...]

Essa imperfeição, se assim posso me exprimir, deriva da natureza da “esquerda”: seja qual for a indeterminação deste termo, a esquerda sempre se define em relação ao oprimido, proletário ou colonizado. Ora, a fala do oprimido só pode ser pobre, monótona, imediata; o seu despojamento é a exata medida da sua linguagem; ele só possui uma linguagem, sempre a mesma, a dos atos; a metalinguagem é um luxo que ela não pode alcançar. A fala do oprimido é real, como a do lenhador, é uma “fala” transitiva: quase imponente para mentir; a mentira é uma riqueza, pois supõe posses, verdades, formas de substituição. Esta pobreza essencial produz mitos raros e estéreis: fugidios ou pesadamente indiscretos, ostentam a sua natureza mítica e apontam a sua própria máscara; e essa máscara sequer chega a ser a de uma pseudophysis: tal physis ainda constitui uma riqueza, e o oprimido pode apenas “pedi-la emprestada”; ele não consegue esvaziar o sentido real das coisas e conferir-lhes o luxo de uma forma vazia, aberta à inocência de uma falsa Natureza. Pode-se dizer que, num certo sentido, o mito de esquerda é sempre um mito artificial, um mito reconstruído: daí a sua inabilidade. (2003. p. 237-240)

Nesse fragmento percebemos que Barthes introduz o mito de esquerda. Pois não é somente a burguesia que produz mitos, mas a esquerda também é capaz de produzi-los quando há a ocultação e a criação de imagens que não mais pertencem ao mundo, mas que querem estar para além dele e impor-se fixamente. E quando é que a esquerda se torna predominantemente mito? Quando a esquerda “desvia-se”, nos dirá Barthes, quando a esquerda deixa de ser revolução para se tornar um artifício, um algo que perde a sua ação, mas torna-se um construto da natureza. A revolução, por outro lado, é a esquerda em ato: “a revolução se define como um ato catártico, destinado a revelar a carga política do mundo: ela faz o mundo, e toda a sua linguagem é absorvida funcionalmente neste “fazer””. A ação de fazer o mundo, dirá Barthes, de dar uma nova concepção de realidade de transformar e agir sobre a vida, eis o que é, de fato, a revolução. O mito não tem como se apropriar desse ato no seu momento de ação, mas pode somente se apropriar indevidamente daquilo que deixa de fazer, isto é, quando a revolução não é mais revolucionária, mas uma natureza morta.


Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes