Mitologias IV
Coloco o quarto fragmento da obra “Mitologias” de Roland Barthes sobre os mitos de esquerda:
Existe, portanto, uma
linguagem que não é mítica, que é a linguagem do homem produtor: sempre que o
homem fala para transformar o real, e não mais para conservá-lo em imagem,
sempre que ele associa a sua linguagem à produção das coisas, a metalinguagem é
reenviada a uma linguagem-objeto, e o mito torna-se impossível. Eis a razão por
que a linguagem propriamente revolucionária não pode ser uma linguagem mítica. A revolução se define como um ato catártico, destinado a
revelar a carga política do mundo: ela faz
o mundo, e toda a sua linguagem é absorvida funcionalmente neste “fazer”. É
por produzir uma fala plenamente,
isto é, inicialmente e finalmente política, e não, como o mito, uma fala
incialmente política e finalmente natural, que a revolução exclui o mito. Do
mesmo modo que a deserção do nome burguês define simultaneamente a ideologia
burguesa e o mito, assim a denominação revolucionária identifica a revolução
com a ausência do mito: a burguesia se mascara como burguesia, esse mascarar-se
produz o mito; a revolução se ostenta como revolução e, dessa forma, suprime o
mito.
Perguntam-me se havia mitos
“na esquerda”. Claro que sim, na exata medida em que a esquerda não é
revolução. O mito de esquerda surge precisamente no momento em que a revolução
se transforma em “esquerda”, isto é, aceita mascarar-se, encobrir o seu nome,
aceita produzir uma metalinguagem inocente e deformar-se em “Natureza”. Essa
deserção do nome revolucionário poder ser tática ou não; este não é o lugar
adequado para discuti-lo. De qualquer modo, mais cedo ou mais tarde, essa
omissão é sentida como um procedimento contrário à revolução, e é sempre mais
ou menos em relação ao mito que a história revolucionária define os seus
“desviacionismos”.
[...]
Essa imperfeição, se assim
posso me exprimir, deriva da natureza da “esquerda”: seja qual for a
indeterminação deste termo, a esquerda sempre se define em relação ao oprimido,
proletário ou colonizado. Ora, a fala do oprimido só pode ser pobre, monótona,
imediata; o seu despojamento é a exata medida da sua linguagem; ele só possui
uma linguagem, sempre a mesma, a dos atos; a metalinguagem é um luxo que ela
não pode alcançar. A fala do oprimido é real, como a do lenhador, é uma “fala”
transitiva: quase imponente para mentir; a mentira é uma riqueza, pois supõe
posses, verdades, formas de substituição. Esta pobreza essencial produz mitos
raros e estéreis: fugidios ou pesadamente indiscretos, ostentam a sua natureza
mítica e apontam a sua própria máscara; e essa máscara sequer chega a ser a de
uma pseudophysis: tal physis ainda constitui uma riqueza, e o
oprimido pode apenas “pedi-la emprestada”; ele não consegue esvaziar o sentido
real das coisas e conferir-lhes o luxo de uma forma vazia, aberta à inocência
de uma falsa Natureza. Pode-se dizer que, num certo sentido, o mito de esquerda
é sempre um mito artificial, um mito reconstruído: daí a sua inabilidade.
(2003. p. 237-240)
Nesse fragmento percebemos que Barthes introduz o mito de esquerda. Pois
não é somente a burguesia que produz mitos, mas a esquerda também é capaz de
produzi-los quando há a ocultação e a criação de imagens que não mais pertencem
ao mundo, mas que querem estar para além dele e impor-se fixamente. E quando é
que a esquerda se torna predominantemente mito? Quando a esquerda “desvia-se”,
nos dirá Barthes, quando a esquerda deixa de ser revolução para se tornar um artifício,
um algo que perde a sua ação, mas torna-se um construto da natureza. A revolução,
por outro lado, é a esquerda em ato: “a revolução se define como um ato
catártico, destinado a revelar a carga política do mundo: ela faz o mundo, e toda a sua linguagem é
absorvida funcionalmente neste “fazer””. A ação de fazer o mundo, dirá Barthes, de dar uma nova concepção de realidade
de transformar e agir sobre a vida, eis o que é, de fato, a revolução. O mito
não tem como se apropriar desse ato no seu momento de ação, mas pode somente se apropriar indevidamente daquilo que deixa
de fazer, isto é, quando a revolução não é mais revolucionária, mas uma natureza
morta.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes