O filme recente da Netflix “Black Mirror: Bandersnatch” lançado em
dezembro de 2018 traz uma interatividade para os usuários da plataforma. Isso
significa dizer que em determinados momentos do filme os usuários são
convidados a “escolher” entre duas alternativas o que irá fazer o personagem
principal. Tal interatividade permite que o filme tenha finais diferentes
dependendo da escolha que se faz. O filme trata de um jovem programador que
adapta um romance de fantasia ao videogame durante os anos de 1980.
Através de escolhas sempre binárias, o filme caminha para novos rumos.
Vivemos em
uma realidade temporal que chamamos de nossa e a presentificamos em nossas
mentes. O passado dessa realidade é memória e o futuro a ordem posterior dos
acontecimentos. A esse ente que atravessa essa realidade temporal chamamos de ‘eu’,
isto é, uma unidade psíquica conhecida também como ‘indivíduo’. O que
aconteceria se pudéssemos colocar, ao invés de uma, múltiplas realidades
temporais? Teríamos inúmeras possibilidades para esse eu, de modo que ele não
poderia mais ser chamado de indivíduo, já que não mais seria uno. Esses
múltiplos ‘eus’ compõem um feixe temporal.
Se pudéssemos, em hipótese, partir do centro desse feixe para qualquer uma das
direções teríamos diante (atrás, do lado, em cima, etc.) inúmeras possibilidades
que nunca esgotariam a novidade existente do mundo. Estaria o eu nascendo a
cada momento para a eterna novidade do mundo. Tomar uma nova direção é escolher
um outro caminho em que novas experiências nos abririam e uma realidade
temporal diferente da anterior nos seria possível. O que esperar dessa
realidade? Impossível dizer, mas com certeza algo totalmente inesperado.
Parecer ser
com isso que o filme “Black Mirror” parece jogar, ao permitir que o personagem
principal possa “viver” múltiplas realidades, experimentando cada uma das suas
possibilidades e, dessa forma, permitir que aqueles que assistem o filme possam
acompanhar essas mudanças dando-lhes uma sensação de que eles pode, de fato,
mudar o destino do personagem. Falo aqui em “dar uma sensação de que se pode
mudar o destino” porque o próprio filme deixa claro que essa possibilidade não
existe. Em um determinado momento o personagem principal do filme confessa que
ele apenas deixa com que os usuários de seu jogo pensem que podem escolher, mas
o final quem determina é ele. Essa proposta nos leva a uma profunda reflexão
sobre o que somos. Somos apenas uma única realidade fadada ao mesmo destino
independe das escolhas que fazemos, ou somos uma existência (ou seriam
existências?) ainda inexplorada, presos a uma única realidade temporal que nos
faz indizíveis todas as outras possíveis realidades? Que seria de nós se nos
arriscássemos a viver algo novo, realmente estrangeiro, que nos viesse visitar
e nos levar toda a nossa tranquilidade, toda a comodidade que nos cerca?
Provavelmente sentiríamos tamanho incômodo que iríamos querer que o estrangeiro
fosse logo embora e nos abandonasse para que pudéssemos novamente viver ‘em
paz’. Mas a que preço? Por que devemos estar presos sempre ao mesmo, sem
explorar as diversas realidades que nos apresenta a vida? Quão perspicaz é o
prisioneiro de Poe em “O Poço e o Pêndulo” que explora cada detalhe de sua
cela, mesmo que isso signifique arriscar sua vida. Nós, que não somos
prisioneiros, vivemos presos aos mesmos hábitos, aos mesmos gostos, aos mesmos
caminhos... Não deveríamos dar uma oportunidade para a vida e a gama de
possibilidades que essa nos pode apresentar?
(Luiz Maurício Bentim)