Mitologias III
Acrescentamos abaixo mais um fragmento da obra “Mitologias” de Roland
Barthes:
E é aqui que voltamos a
encontrar o mito. A semiologia nos ensinou que a função do mito é transformar
uma intenção histórica em natureza, uma eventualidade em eternidade. Ora, este
processo é o próprio processo da ideologia burguesa. Se a nossa sociedade é
objetivamente o campo privilegiado das significações míticas, é porque o mito é
formalmente o instrumento mais apropriado para a inversão ideológica que a
define: a todos os níveis da comunicação humana, o mito realiza a passagem da antiphysis para a pseudophysis.
O que o mundo fornece ao mito
é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo, pela
maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é
uma imagem natural desse real. E, do
mesmo modo que a ideologia burguesa se define pela deserção do nome burguês, o
mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas; nele, as
coisas perdem a lembrança da sua produção. O mundo penetra na linguagem como
uma relação dialética de atividades e atos humanos; sai do mito como um quadro
harmonioso de essências. Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de
história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de
modo a fazê-las significar uma insignificância humana. A função do mito é
evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia
ou, caso se prefira, uma evaporação; em suma, uma ausência perceptível.
É possível completar agora a
definição semiológica do mito na sociedade burguesa: o mito é uma fala despolitizada. Naturalmente, é necessário entender:
política no seu sentido profundo,
como conjunto das relações humanas na sua estrutura real social, no seu poder
de construção do mundo; é, sobretudo, necessário conferir um valor ativo ao
sufixo des: ele representa aqui um
movimento operatório, atualizando incessantemente uma deserção. (2003. p. 234)
O mito aparece como um construto
que quer se fazer real. Ele não é a antítese do real ou da phýsis, mas ele é uma pseudophýsis,
isto é, um simulacro que quer parecer como o próprio real de maneira que
ninguém mais consiga distinguir o real do seu simulacro. A crítica de Barthes
consiste na ilusão de naturalidade que o mito apresenta, esvaziando todo o
sentido histórico de sua construção e mantendo-se apenas como simulacro do real e as características da ideologia burguesa. Como diz Martino: “Em Mitologias,
Barthes faz uma análise estrutural do cotidiano visto pela mídia. É um conjunto
de valores tão bem construídos artificialmente a ponto de transmitir a ideia de
realidade”[1]. O mito, dessa forma, acaba se esvaziando do
próprio real, se tornando uma fala despolitizada, perdendo, na sociedade
burguesa, todas as suas características políticas e prestando-se unicamente a um serviço ideológico.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes