domingo, 13 de janeiro de 2019

Mitologias III



Mitologias III

Acrescentamos abaixo mais um fragmento da obra “Mitologias” de Roland Barthes:

E é aqui que voltamos a encontrar o mito. A semiologia nos ensinou que a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma eventualidade em eternidade. Ora, este processo é o próprio processo da ideologia burguesa. Se a nossa sociedade é objetivamente o campo privilegiado das significações míticas, é porque o mito é formalmente o instrumento mais apropriado para a inversão ideológica que a define: a todos os níveis da comunicação humana, o mito realiza a passagem da antiphysis para a pseudophysis.

O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural desse real. E, do mesmo modo que a ideologia burguesa se define pela deserção do nome burguês, o mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas; nele, as coisas perdem a lembrança da sua produção. O mundo penetra na linguagem como uma relação dialética de atividades e atos humanos; sai do mito como um quadro harmonioso de essências. Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de modo a fazê-las significar uma insignificância humana. A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia ou, caso se prefira, uma evaporação; em suma, uma ausência perceptível.
É possível completar agora a definição semiológica do mito na sociedade burguesa: o mito é uma fala despolitizada. Naturalmente, é necessário entender: política no seu sentido profundo, como conjunto das relações humanas na sua estrutura real social, no seu poder de construção do mundo; é, sobretudo, necessário conferir um valor ativo ao sufixo des: ele representa aqui um movimento operatório, atualizando incessantemente uma deserção. (2003. p. 234)

O mito aparece como um construto que quer se fazer real. Ele não é a antítese do real ou da phýsis, mas ele é uma pseudophýsis, isto é, um simulacro que quer parecer como o próprio real de maneira que ninguém mais consiga distinguir o real do seu simulacro. A crítica de Barthes consiste na ilusão de naturalidade que o mito apresenta, esvaziando todo o sentido histórico de sua construção e mantendo-se apenas como simulacro do real e as características da ideologia burguesa. Como diz Martino: “Em Mitologias, Barthes faz uma análise estrutural do cotidiano visto pela mídia. É um conjunto de valores tão bem construídos artificialmente a ponto de transmitir a ideia de realidade”[1]. O mito, dessa forma, acaba se esvaziando do próprio real, se tornando uma fala despolitizada, perdendo, na sociedade burguesa, todas as suas características políticas e prestando-se unicamente a um serviço ideológico.


Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes



[1] MARTINO, L. M. S. Comunicação: troca cultural? São Paulo: Editora Paulus, 2005, p. 53.