segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Mitologias II



Mitologias II

Continuando a análise da obra “Mitologias” de Roland Barthes, colocamos mais um trecho:

Se me contento aqui com um esboço sincrônico dos mitos contemporâneos, é por uma razão objetiva: a nossa sociedade é o campo privilegiado das significações míticas. É preciso agora dizer por quê.
Quaisquer que sejam os acidentes, os compromissos, as concessões e as aventuras políticas e sejam quais forem as modificações técnicas, econômicas ou mesmo sociais que a história nos traga, a nossa sociedade ainda é uma sociedade burguesa.
Não ignoro que desde 1789, na França, diversos tipos de burguesia se sucederam no poder; mas o estatuto permanece na sua profundidade: um determinado regime de propriedade, uma determinada ordem, uma determinada ideologia. Ora, acontece um fenômeno notável no que diz respeito à denominação desse regime; como fato econômico, a burguesia é denominada sem dificuldade: o capitalismo se declara abertamente como tal. Como fato político, evita-se a denominação: não há partidos “burgueses” na Câmara. Como fato ideológico, desaparece completamente: a burguesia apagou o seu nome passando do real à sua representação, do homem econômico ao homem mental: ela se acomoda com os fatos, mas não “entra em acordos” com os valores, e submete o seu estatuto a um verdadeiro trabalho de eliminar a denominação; a burguesia se define como a classe social que não quer ser denominada. “Burguês”, “pequeno-burguês”, “capitalismo”, “proletariado” são os pontos de uma hemorragia incessante: o sentido se esvai até o nome se tornar inútil.
Este fenômeno de eliminar a denominação é importante, e é preciso examiná-lo um pouco mais detalhadamente. Em termos políticos, a hemorragia do nome burguês se produz por meio da ideia de nação. Foi uma ideia que foi progredindo pouco a pouco e que serviu para excluir a aristocracia; hoje, a burguesia se dilui na nação, mesmo que, para isso, seja necessário rejeitar os elementos que ela considera alógenos (os comunistas). Este sincretismo dirigido permite que a burguesia recolha a garantia numérica dos seus aliados temporários: todas as classes intermediárias, portanto “informes”. Um uso prolongado não conseguiu despolitizar profundamente a palavra “nação”; o substrato político permanece bem próximo, prestes a se manifestar subitamente: existem, na Câmara, partidos “nacionais”, e o sincretismo nominal ostenta assim o que pretendia esconder: uma disparidade essencial. Assim, o vocabulário político da burguesia postula, já que existe um universal: nela, a política é, aprioristicamente, uma representação, um fragmento de ideologia. (2003. p. 229-230)

Em tempos de “escola sem partido”, tratar da questão “ideologia” faz-se necessário. Ideologia é o todo um sistema de ideias que visa legitimar um poder social, político e econômico. Toda sociedade possui uma ideologia predominante o que, por si só, impossibilita qualquer neutralidade. Quando se fala em escola “sem partido” o discurso que ouvimos é que existe um conjunto majoritário de professores (sempre esse grupo maligno) que estaria contaminando os alunos com ideologias esquerdistas como gênero, marxismo, socialismo, comunismo etc. etc. etc., e o projeto escola sem partido visaria eliminar a ideologia das escolas. Isso é uma grande falácia! Primeiro porque a nossa sociedade é predominantemente ideológica, no entanto, a ideologia que predomina, como bem apontou Barthes é a ideologia burguesa. Depois porque o que se pretende combater é única e exclusivamente os ideais da esquerda assumindo-se que uma escola “sem partido” seria uma escola isenta e imparcial. Mas na verdade o que aconteceria com a aprovação do projeto seria perseguição de tudo que fosse diferente à ideologia burguesa, criminalizando qualquer tipo de ideia que fosse diferente à essa ideologia. Por a ênfase nas palavras de ordem e o a defesa do “correto”, quando o mais acertado é a liberdade no educar. A educação deve ser livre, as crianças livres para aprender todo tipo de ideia seja esta ideia a favor ou contra o status quo. O que a criança vai ser deveria depender única e exclusivamente de suas próprias opções a partir do conteúdo oferecido. No entanto, o cenário que temos é de uma verdadeira guerra ideológica em que a ideologia de esquerda é combatida enquanto a ideologia burguesa se oculta na sua “isenção”. Como bem coloca Barthes “a burguesia se define como a classe social que não quer ser denominada”, ou seja, ela se esconde e se oculta na naturalização da ordem e do progresso. E continua, “hoje, a burguesia se dilui na nação, mesmo que, para isso, seja necessário rejeitar os elementos que ela considera alógenos (os comunistas)”, de maneira que a defesa do Estado se faz pela ideologia burguesa, que nunca se assume e faz parecer com que todo o resto contrário às suas ideias seja tomado como ideológico. Um jogo de ocultação em que poucos conseguem ver as cartas atrás das mangas burguesas.

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes