Sísifo ou o absurdo do amanhã
Em nossa
primeira coluna neste jornal (30/07/2017), e que abriu a categoria “Cidade
Filosófica”, escrevemos sobre a obra “O Mito de Sísifo” do argelino Albert
Camus. Gostaríamos hoje de retomar a temática do absurdo presente na obra.
Segundo Camus, o absurdo não pode ser uma filosofia, mas é um sentimento. É
quando a razão se depara com seus limites e o homem se encontra divorciado do
mundo: não se pode compreendê-lo. Disso surge o homem absurdo, isto é, o
resultado do sentimento do absurdo no homem e sua incapacidade para
racionalizar o mundo. Nas palavras de Camus: “o homem absurdo, ao contrário, não
processa esse nivelamento. Reconhece a luta, não despreza de modo algum a razão
e admite o irracional. Desse modo, ele encobre do olhar todos os dados da
experiência e não está nada disposto a saltar antes de saber. Ele sabe,
somente, que nessa consciência atenta não há mais lugar para a esperança”.
Em que
consiste não ter mais esperança? Significa que não se aceitará mais saltos da
razão ruma a um indeterminado seja espiritual ou metafísico. O homem absurdo se
exprime dentro dos limites da razão e, ao mesmo tempo, se abisma com os limites
desta. Não conseguir ir além é o sentimento que se tem de que há algo além no
mundo que não podemos significar. No entanto, o homem absurdo não se atreve a
conceber o além, um deus ou outros saltos que a razão humana tantas vezes faz.
Ele se contenta em viver nos limites da razão e em perceber a incapacidade do
ser humano de racionalizar o mundo em que vive. Sua existência é aberta dentro
dos limites que lhe é cabível e, por isso, não há esperança para ir além. A
esperança morre com a própria impossibilidade de a razão explicar o mundo. O
homem absurdo não é um pessimista, muito pelo contrário, ele vive de acordo com
as possibilidades que lhe são permitidas pela própria razão, sem permitir que
essa atravesse seus limites através de saltos que não se pode acompanhar.
Sobre essa
ótica, o amanhã é também o absurdo. Pois como esperar por um dia que não existe
ainda? Como dizer que ele virá se não há nada que garanta isso além da própria
esperança humana? E quando esse dia vem (e se ele vier), então há a
manifestação do próprio absurdo, pois o que estava posto como amanhã, e para
além de toda racionalidade humana, surge perante as categorias racionais
novamente para se fazer incompreensível e postular um novo amanhã. E o ser
humano vive esse circulo indefiníveis vezes sem jamais cessar. É nesse ponto
que o homem se aproxima de Sísifo, vivendo por diversas vezes os mesmos hábitos
que o prende a mesma rotina sem que ele sequer perceba isso. O homem absurdo
não é aquele que escapa a isso, mas é aquele que percebe isso, que toma
consciência de si e da sua interminável rotina, percebendo que a pedra que
carrega montanha acima é a mesma que deve buscar quando ela rolar montanha
abaixo, e essa pedra nada mais é do que a sua própria existência, sendo que
esta não podemos nunca deixar de carregar.
O homem
absurdo é esse ser perdido e solitário, sem qualquer esperança sobre o amanhã,
mas que não deixa de viver com plenitude o dia de hoje. Ele é aquele que toma
consciência de sua solitária existência e não foge a ela, mas sente ao máximo o
peso do que significa “existir” em um mundo que não podemos significar. Um
homem ausente de esperança e pleno da angústia que há no próprio existir e no
ato de escolher, pois esse é o ato máximo que condiz com a liberdade, sendo que
o homem absurdo se define pela liberdade que há na existência temporal do seu
ser.
* Esse ensaio foi publicado primeiramente na "Gazeta" do Amapá no dia 02/12/18.