Amanhã há de ser outro dia...
Na
“República” de Platão, Sócrates irá demonstrar o nascimento da tirania depois
de um longo processo de degradação da constituição. Partindo do modelo bom e
justo, que pode ser tanto a aristocracia (mais de um governante) ou a realeza
(um único governante), teremos, com sua consequente corrupção, a timocracia, a
oligarquia, a democracia, para, por fim, originar-se a tirania. Apesar de a
tirania ser colocada como a pior forma de governo por Sócrates, ela é vista
pela maioria das pessoas como sendo a melhor e a mais feliz. Isto se deve a uma
noção das pessoas da natureza humana como sendo voltada para a pleonexía, isto é, a vontade de ter
sempre mais, visando, dessa forma, o seu próprio interesse em detrimento dos
demais. Isso leva a uma concepção da justiça como sendo penosa e não agradável,
o que faz com que se tome a vida do injusto como sendo mais feliz do que a do
justo. Tal tipo de pensamento é apresentado no Livro II pelo desafio de Gláucon
a Sócrates, cabendo a ele responder se a justiça é por si mesma um bem e se é
de qualquer maneira melhor do que a injustiça, sendo agradável para aquele que
for justo. Os livros VIII e IX são a resposta de Sócrates a este desafio,
analisando a vida daquele que é pelas massas considerado o mais completamente
injusto e feliz dos homens: o tirano.
Para provar
o equívoco deste tipo de pensamento, Sócrates irá iniciar a diferenciação entre
desejos necessários e aqueles que não são necessários. Segundo ele, são
necessários aqueles que não somos capazes de repelir e são úteis satisfazer;
não necessários são aqueles que podemos nos libertar. Uma relação entre
necessidade e utilidade é estabelecida, de modo que todos os desejos
necessários sejam úteis, mas o mesmo não pode ser dito dos desejos não
necessários. Serão justamente estes que irão preocupar Sócrates com relação ao
tirano, pois a tirania vem do excesso, excesso este que vem do ambiente
democrático e que acaba por aprisionar a si mesmos. Conforme nos diz Sócrates: “A liberdade em excesso, portanto, não
conduz a mais nada que não seja a escravatura em excesso, quer para o indivíduo,
quer para a nação”. (Rep., 564a).
O excesso, aqui colocado, pode estar indicando uma desmedida por oposição à
célebre frase do oráculo de Delfos: nada
em excesso [μηδὲν ἄγαν]. Isso quer dizer que quando um tirano é levado ao poder pelas massas há
um ponto de mudança entre democracia e tirania dentro do indivíduo e da nação,
esse ponto perpassa pelo excesso.
Podemos
fazer um equivalente contemporâneo dessa visão do tirano quando um povo opta
democraticamente por um governo fascista, isto é, um governo que exalta o
nacionalismo acima de todos, demonstrando-se intolerante a tudo que possa ser
diferente aos seus próprios conceitos. O fascismo é a morte do outro e a
predominância do mesmo sobre tudo que há. Apesar de ser historicamente um
movimento político-ideológico do início do século XX, o fascismo tem uma
capacidade impressionante de se renovar, sendo capaz de se mesclar às demandas
da elite de um país em detrimento do povo. Para Foucault, as massas no momento
do fascismo desejam que alguns exerçam o poder, alguns que, no entanto, não se
confundem com elas, visto que o poder se exercerá sobre elas e em detrimento
delas, até a morte, o sacrifício e o massacre delas; e, no entanto, elas
desejam este poder, desejam que esse poder seja exercido. É assim que nasce o
tirano: através do próprio seio democrático ele é levado ao poder. No entanto,
já nos diz Chico Buarque em sua canção “Apesar de Você”:
Apesar de você
Amanhã
há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar
poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente.