domingo, 16 de dezembro de 2018

Héracles: força, amizade e humanidade


Héracles: força, amizade e humanidade


 Falaremos hoje da tragédia "Héracles", escrita pelo poeta grego Eurípides (c. 480-406 a.C.). Héracles, mais conhecido pelo seu nome latino Hércules, é o herói filho do deus Zeus com a mortal Alcmena. O sentido do nome Héracles é a reunião das palavras "Hera", a deusa esposa de Zeus que perseguia incansavelmente o herói, e Cléos, que significa glória, formando, em tradução livre, a "glória de Hera". Isso se deve a imposição de Hera a uma série de trabalhos a Héracles (os famosos 12 trabalho) nos quais a sua fama ia aumentando. Em seu Héracles, Eurípides subverte o enredo mitológico, pois antepõe os trabalhos ao assassinato de sua família. Quando a história se inicia, o herói encontra-se no Hades para realizar seu último trabalho (capturar Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada do submundo) e sua família está ameaçada de morte pelo tirano Lico, que na ausência de Héracles assassinara Creon, rei de Tebas e pai de Mégara (esposa de Héracles), e usurpara o trono, fiando-se na probabilidade quase nula de o herói escapar dos ínferos com vida. Mas, para azar de Lico, Héracles retorna e acaba com seu breve reinado. É nesse momento, exatamente no meio da peça, que há uma reviravolta nos acontecimentos e Héracles é acometido pela loucura divina que o faz matar sua esposa e filhos. Ato feito, ele acaba adormecido pela deusa Atena para evitar que ele continue a matança pela cidade.

Ao acordar e vendo o horror por ele cometido, Héracles entra em grande melancolia e angústia. Toda a imponência e força divinas do herói caem por terra e ele mostra seu lado frágil e humano. Como poderia ele viver depois de ele mesmo ter matado a sua família? Mesmo que fosse pelos desígnios dos deuses, a dor pelo crime cometido é algo inconcebível: ele se tornou o assassino de sua própria esposa e filhos. Está sozinho e desterrado, condenado por suas próprias mãos. Pensa em se matar e acabar com toda a dor que o acomete por dentro. Será nesse momento que Teseu, o herói que derrotou o minotauro, irá aparecer. Teseu irá persuadir Héracles a revelar sua face humana e encarar a realidade do mundo que o cerca dizendo-lhe: "nobre não é quem renega o fardo divino, mas suporta-o" (v. 1228). Sua força divina que tantas vezes lhe deu a vitória na execução de seus trabalhos, agora era o motivo de sua derrota. Héracles pondera: "Os deuses são duros e eu, com eles, idem. [...] Os homens nada podem: Hera impera [Héra krateî]" (v. 1243 e 1253). Sai a "glória de Héra" [Heracles] e entra o "império de Héra" [Herakrates]. O herói se sente sem rumo quanto a peripécia que se deu em sua vida. Terminado todos os trabalhos, a fortuna (týche) trouxe um evento para o qual ele não estava preparado. Sua família havia sido arrancada de maneira violenta pelas suas próprias mãos! Teseu não o condena. Em troca oferece abrigo e amizade (philía) na cidade de Atenas. A philía é o laço mais forte que une os humanos, impulso de amor e amizade que compõe palavras como “philosophía”: o amor/amizade pela sabedoria. Os deuses são soberbos, incapazes de philía. Eis a parte humana que cabe aos heróis, o que faz com que Héracles diga a Teseu: "Um jugo amigo [phílion]! A um de nós a fortuna [dystychés] atinge" (v. 1403). Dessa forma os heróis se apoiam e podem juntos prosseguir. Em um estudo sobre essa tragédia, Arrowsmith nos diz: "longe de cometer suicídio, o Héracles de Eurípides descobre sua maior nobreza ao recusar a morte e escolher a vida". Ao escolher pela vida, há também uma vida escolhida que deve suportar o fardo da existência e o absurdo do (novo) mundo que se revela a partir de agora para Héracles.