Um Golpe Patológico[1]
Ê, ôô, vida de gado.
Povo Marcado ê, Povo feliz!
- Zé Ramalho,
Admirável Gado Novo
Eu vejo o futuro repetir o passado,
Eu vejo um museu de grandes novidades,
O tempo não para.
- Cazuza, O tempo não para.
Domingo, 17 de abril de 2016. A câmara dos deputados vota com sucesso
pelo impeachment de Dilma Rousseff. O que antes parecia distante de acontecer,
agora se torna cada vez mais próximo e provável. O golpe venceu, o Brasil
perdeu. A decisão final fica por conta do senado. É com grande pesar que vemos
um cenário futuro sem melhora alguma e, possivelmente, catastrófico para o
país. Regressamos 52 anos na história de nosso país. Voltamos para 1964, ano do
golpe militar! Mas agora não precisamos mais de militares para aplicarmos um
golpe em um governante legitimamente eleito; evoluímos. Agora podemos destituir
a democracia sem precisar de um único tiro. Eis o progresso...
Para quem assistiu a sessão em uma das grandes emissoras do país, como
Globo ou Record, pôde perceber que apenas um lado aparecia na televisão: o lado
dos patos patéticos. Todos vestidos de verde e amarelo segurando um pato
ridículo “criado”[2]
pela Fiesp. No entanto, esse não era o único lado existente, o Congresso (e o
Brasil) estava dividido por um muro: de um lado os pró-impeachment, do outro os
contra o impeachment. Estes, porém, não foram vistos na televisão. Durante toda
a cobertura da votação, apenas o lado dos favoráveis ao impeachment era
mostrado, como se todos unanimemente no país estivessem de acordo com isso. O
que não é verdade!
O objetivo de nosso artigo é responder três questões:
(i) Por que o impeachment de Dilma Rousseff é um golpe?
(ii) Por que quem concorda com o impeachment ou é ingênuo ou é mau-caráter?
(iii) Por que o impeachment não resolve o problema do país?
Dito isso, sigamos com a análise dos fatos.
I
Já é sabido, mas não custa lembrar. O processo de impeachment foi aceito
pelo presidente da câmara dos deputados, o senhor Eduardo Cunha. Ele é o único
(no momento) que tem poder para aceitar ou recusar esse tipo de processo.
Poderia tê-lo recusado da mesma maneira que aceitou. O processo nunca foi
analisado, nem mesmo provado. A decisão de aceitar não estava atrelada à veracidade do que havia no processo, mas ao apoio ou não do PT na decisão de se
abrir uma investigação sobre Eduardo Cunha (o mesmo presidente da câmara) no
Conselho de Ética. Como o PT decidiu não apoiá-lo, Cunha resolveu deflagrar o
impeachment contra Dilma Rousseff como uma forma de vingança particular. O
senhor Eduardo Cunha é investigado na Operação Lava Jato por receber propina.
Seu delator, Júlio Camargo, havia dito que Cunha teria recebido em torno de
cinco milhões de dólares[3].
Outro delator, o empresário Ricardo Pernambuco Júnior,“entregou aos investigadores
uma tabela que aponta 22 depósitos somando US$ 4.680.297,05 em propinas
supostamente pagas ao presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDBRJ) entre
10 de agosto de 2011 e 19 de setembro de 2014”[4].
Ao que tudo indica, o deputado Cunha tem mais a temer do que a presidente
Dilma.
Ah, dirão alguns, mas o PT também está bem sujo na Operação Lava Jato.
Correto, não há dúvidas de que o PT se sujou um bocado com as investigações da
Lava Jato. No entanto, não há uma prova sequer (nem mesmo uma acusação formal)
contra a presidente Dilma[5].
Outros dirão: “mas tirar a Dilma é uma maneira de tirar o PT do poder e, com
isso, limpar o país da corrupção”. Certo e errado. Tirar a Dilma, com certeza, retira o PT do poder diretamente, mas não limpa o país da corrupção. Vejamos.
A abertura de um processo de impeachment é algo pessoal que é feito diretamente
contra o presidente da República. Não pode ser usado para atingir um partido
ou, pelo menos, não deveria. O impeachment só deve ser aberto quando se
comprova que o presidente da República cometeu dolosamente, ou seja,
conscientemente, crime de responsabilidade fiscal, o que não foi comprovado no
caso da presidente Dilma Rousseff. “Além disso, como a sanção é a perda do
mandato, a conduta deve ocorrer no [mandato] atual e não no anterior. A
temporariedade é uma das principais dimensões do princípio republicano”[6].
Portanto, a abertura de um processo de impeachment contra a presidente Dilma é,
primeiramente, uma vingança pessoal do deputado Eduardo Cunha e, depois, a utilização
de alguém como bode expiatório para atingir alguns (PT) e limpar outros (Cunha
e sua corja). E como funcionaria esse processo de “purificação”?
Há pouco mais de um mês, vazou a lista da Odebrecht. Nessa lista consta
o nome (e apelido) de uma vasta gama de políticos de vários partidos diferentes
que receberam dinheiro da empreiteira Odebrecht. A Odebrecht está sendo
investigada pela Operação Lava Jato por pagamento de propina a políticos,
lavagem de dinheiro e outras falcatruas. O presidente da Odebrecht, Marcelo
Odebrecht, encontra-se preso e está fazendo recentemente sua delação. Nessa
lista há nomes como o de Jacques Wagner (PT), Geraldo Alckmin (PSDB), José
Sarney (PMDB), Jader Barbalho (PMDB), Eduardo Paes (PMDB), Sérgio Cabral
(PMDB), Francisco Dornelles (PP), Aécio Neves (PSDB), José Serra (PSDB) e,
entre tantos outros nomes (e a lista é bem grande), Eduardo Cunha (PMDB). Mas
que surpresa! Cunha novamente...
Nessa mesma lista, não consta nem o nome da presidente Dilma Rousseff,
nem o nome do ex-presidente Lula. Apesar de todos os gritos de que ambos são
ladrões e acabaram com o Brasil, não há nenhum crime sequer registrado contra
os dois. Novamente dirão nossos interlocutores: “mas isso é impossível! Eles
são comprovadamente ladrões que roubaram o Brasil. E se não há o nome de nenhum
deles na lista (eis o argumento favorito dos meus interlocutores), então é
porque alguém recebeu por eles”. Se há alguém que recebeu por eles, a minha
pergunta é: quem? Onde estão as provas dessa acusação? Onde estão os documentos
que comprovam esta acusação? Falar por falar, qualquer um pode fazer e, nisso,
qualquer um pode ser acusado de qualquer coisa. Mas e as provas do que se diz?
Estamos em um Estado de Direito, onde todos tem direito à inocência até que se
prove o contrário, ou num Estado de Exceção, em que as provas se tornam
dispensáveis? A Operação Lava Jato, até o presente momento, não encontrou uma
única prova contra nenhum dos dois.
Então porque ambos são acusados de crimes que, supostamente, não cometeram?[7]
Outro ponto interessante de se analisar é a debandada de partidos
aliados do governo. Primeiro o PMDB, partido de Michel Temer, o vice-presidente
do país. Temer junto com Cunha armaram a saída do governo para enfraquecer
Dilma e fortalecer o próprio Temer como uma escolha melhor. Um jogo sujo, que
teve o apoio de grande parte do empresariado, além da grande mídia (Globo,
Estadão, Folha e Veja). Depois o PP, partido que tem o maior número de
deputados citados na Lava Jato. Isso é de se estranhar, pois que tipo de acordo
teria sido proposto ao PP para que ele saísse do governo? O fim da Lava Jato?
Quem sabe? O juiz Sérgio Moro já fala em encerrar a Operação Lava Jato até
dezembro[8]...
Não podemos deixar de lado a genialidade de Eduardo Cunha, que na sua
ânsia de poder, soube utilizar muito bem o seu cargo de presidente da câmara
dos deputados para enfraquecer a presidente da República. Há um capítulo do Príncipe, de Maquiavel, que caracteriza
bem esse episódio de nossa recente história, intitula-se "Daqueles que por
atos criminosos conquistaram principados". Eis uma passagem deste
capítulo:
Mas porque há ainda dois modos
de se passar de homem privado a príncipe, o que não se pode atribuir de todo
modo à fortuna ou à virtù, não me
parece que deva deixá-las de lado, ainda que sobre um deles se possa discorrer
mais amplamente em se tratando de repúblicas. Estes são ou quando por algum
meio criminoso e nefasto alguém ascende ao principado ou quando um homem
privado, com o favor de outros cidadãos, torna-se príncipe da sua pátria. E
falando do primeiro modo, mostrar-se-á com dois exemplos, um antigo e outro
moderno, sem entrar nos méritos desta parte: por que eu julgo que basta, a quem
for necessário, imitá-los[9].
Além de conhecer muito bem o regimento da Casa, muito mais do que os
outros parlamentares, Cunha tem uma gama de deputados em suas mãos por acordos
e barganhas políticas. Isso mostra a fraqueza do regimento, pois permitiu que
uma vontade particular (a de Eduardo Cunha) se sobressaísse a vontade geral e,
com isso, instituísse o golpe que visa derrubar a presidente Dilma[10].
Em uma democracia a vontade particular nunca deve estar acima da vontade
geral, pois isso levaria, necessariamente, ao seu fim.
Segundo Maquiavel, poucos são
aqueles que conseguem perceber além da aparência, pois a maioria só percebe
aquilo que parece, sem que este parecer tenha qualquer relação com o ser. Daí a
destreza do príncipe de utilizar-se da aparência para obter resultados que não
serão nunca contestados pelos poucos, já que estes não poderão ir de encontro à
maioria que se apoia na força do príncipe. Nisto consiste a virtù do príncipe,
que nada mais é do que a sua habilidade para se utilizar da ocasião dada pela
fortuna para realizar o fim pretendido tendo como meio a necessidade do povo
que nele se apoia[11].
Eis a tática de Cunha que, se aproveitando dos escândalos da Operação
Lava Jato sobre o PT, soube se utilizar de uma parcela insatisfeita da
população, inflamada pela grande mídia, e, como isso, afastar todos os olhares
de si e de suas atitudes suspeitas e, possivelmente, criminosas. Dos 38 membros
da comissão especial de impeachment na Câmara dos Deputados que votaram pelo
impeachment no dia 11 de abril de 2016, 35 respondem ou já foram condenados por
algum crime, sendo que 4 são alvos de inquérito na Operação Lava Jato[12].
II
Depois, se formos analisar o tipo de público que deseja o afastamento de
Dilma Rousseff, encontraremos uma marca comum entre eles: o ódio à democracia. O que significa isso? A democracia é um
governo que permite (em tese) que qualquer um possa chegar ao governo. Não
respeitar os processos democráticos que elegeram a presidente Dilma Rousseff é
ir contra a democracia deste país. A direita não consegue mais voltar ao poder
pelo voto e agora planeja um golpe como última tentativa de conseguir um lugar.
Isso consolidou um bloco das elites que, insatisfeitas com os programas sociais
e a diminuição do lucro no mercado financeiro, resolveram atacar o atual governo.
A consolidação do bloco das
elites se deu em reação às medidas do governo Dilma para enfrentar a crise
internacional, que contrariaram profundamente seus interesses. A redução da
Selic, em 2012, baixou a remuneração dos rentistas. Na mesma época, a redução
das taxas de juros ao consumidor fez os bancos públicos ganharem o espaço de um
Bradesco no mercado; em poucos anos, esses bancos passaram de 35% para mais de
55% desse mercado. O congelamento dos preços da eletricidade, por exemplo,
gerou perdas significativas para fundos internacionais que compraram ações das
elétricas no Brasil. Para esse grande empresariado, acostumado a comandar o
Banco Central e a política econômica, tais iniciativas afrontaram seus
interesses diretos. Vem daí toda a razão de ser da campanha em favor do
impeachment[13].
Há também aqueles que acreditam piamente que a retirada da Dilma e do PT
do governo resolverá (senão todas) pelo menos grande parte dos males do país.
Como se o desemprego, a inflação e desregulamentação trabalhista fosse um plano
do mal, arquitetado pelo PT e tendo o ex-presidente Lula como seu grande
mentor.
Os neurônios dos impichadores
emitem certezas dos maníacos-obsessivos: todos os males se encerram com o fim
deste governo. Cosmopolitas desconectados do resto do mundo, representam as
recomendações que comandavam as políticas sociais e econômicas desde os anos 80
do século XX. Os remédios estão com validade vencida e a caducidade ocorreu
ainda antes da Grande recessão de 2008[14].
Isso divide o público a favor do impeachment em duas partes: (1) aqueles
que acreditam que o impeachment resolverá os problemas de corrupção do país ao
retirar o PT do governo; (2) aqueles que não acreditam nisso, mas tem
interesses privados com a retirada do PT do governo. Os primeiros são os
ingênuos, os segundos os mau-caracteres.
Acreditar na possibilidade de uma total honestidade em política é ser
totalmente ingênuo de como funcionam as articulações e negociações em política.
Como Maquiavel deixa bem claro no seu Príncipe,
a esfera da política é uma esfera singular que deve ser pensada unicamente e à parte das outras esferas. Isso não quer dizer que a política não dialogue com
as esferas econômica, ética e social, mas que a política tem uma singularidade
para lidar com os seus assuntos e, portanto, não segue a ordem das outras
esferas.
Maquiavel ao escrever o
Príncipe toma uma nova posição com relação a maneira de se lidar com o poder e o
governo do Estado. Não está preocupado em como deveria agir um governante em
sua forma ideal, mas considera “mais convincente ir direto à verdade efetiva da
coisa [verità effetuale della cosa] do que à imaginação dessa [immaginazione di epsa]”.
Portanto, irá se abster de qualquer tipo de formação de governo, de qual o tipo
de governante se deve ter ou como moralmente este deve ser, mas irá se prender
apenas em como deve agir um governante em determinadas situações para que assim
conquiste e/ou mantenha o poder político[15].
A disputa política sempre existiu em qualquer tipo de governo. Em uma
democracia essa disputa se dá através dos partidos e de seus representantes. A
honestidade política é algo um tanto duvidosa, já que os trâmites existentes
são tantos e levam à disputa de interesses coletivos, partidários ou, até
mesmo, pessoais. Um claro exemplo disso é o Panama Papers que
exibe uma gama ampla de políticos no mundo que aparecem como proprietários de offshore suspeitas[16].
Em tese, um político irá fazer o que for preciso para conseguir um acordo que o
beneficie. Isso é a Realpolitik maquiaveliana,
ou seja, onde a disputa pelo poder for extrema, se deve saber lidar com as
vicissitudes existentes para se sair vitorioso nos conflitos políticos.
Governar um país implica em saber lidar com essa disputa de interesses
existentes e utilizar de sua influência para conseguir ter uma boa
governabilidade. Acreditar na pureza da política e na total limpeza moral é uma
irrealidade e uma total ingenuidade. Da mesma forma, se ausentar da política e
crer que todos os políticos são iguais em seus interesses é também uma
ingenuidade. A política é um campo incerto e aquele que sabe lidar melhor com
as oportunidades tem maiores chances de jogo.
Quanto àqueles que não são ingênuos e desejam o impeachment por um
interesse particular disfarçado de interesse coletivo, gostaria de ressaltar
dois movimentos que surgiram com bastante força nos últimos meses. O primeiro é
o "Movimento Brasil Livre" (MBL) e o segundo o "Endireita
Brasil". Ambos defendem a retirada da presidente Dilma e a expulsão do PT
do governo como uma grande solução para o país, além de com isso promover uma
faxina moral. Esses dois movimentos representam a mais extrema direita do país
que se utiliza de qualquer meio que julgar necessário para atingir o seu fim.
Até mesmo o retorno dos militares ao poder já foi proposto, isso vindo de uma
juventude que estava longe de nascer na época em que os militares governaram o
país. Aqueles que tiverem um interesse mínimo no assunto, basta pesquisar o que
significou realmente a ditadura militar para o nosso país e o seus principais
instrumentos de poder: fim dos direitos políticos, fechamento do Congresso
Nacional, perseguição a todo tipo de oposição e (o pior de todos) a tortura
amplamente aceita e executada. Talvez nem todos saibam, mas a tortura é um
crime previsto no artigo V da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual
o Brasil é signatário desde 1948.
Mas a volta dos militares talvez não seja necessária para concretizar o
golpe. Como já foi dito, progredimos e agora basta se aliar ao presidente da
câmara dos deputados, Eduardo Cunha (caso do MBL), ou ao deputado militar e
intolerante Jair Bolsonaro (caso do Endireita Brasil). Esses se reconhecem como
os únicos movimentos legítimos, não reconhecendo nenhum outro movimento
possível para defender o Brasil. Nisso, os líderes desses movimentos são bem
espertos, ao contrário daqueles que seguem os movimentos que, cegos pela
vontade de derrubar Dilma do governo, não se informam minimamente do que se
trata realmente a política que eles defendem em seus manifestos. Pregam o ódio
e a violência em seus discursos e algumas vezes também em atos. Não aceitam o
diferente, não há outro discurso possível a se aceitar. Com isso, promovem
preconceitos de cor, gênero, sexo, classe, escolaridade, o que só contribui
para elevar a desigualdade em nosso país. De modo que o verdadeiro nome destes
movimentos deveria ser "Movimento Burrice Livre" e "Enburrece Brasil". Uma total
vergonha nacional. Como diria o Cobrador do conto homônimo de Rubem Fonseca:
“só rindo”...
III
Se analisarmos o discurso dos 367 deputados que votaram pelo impeachment
da presidente Dilma Rousseff, podemos verificar um verdadeiro show da Xuxa. Era
beijo pra mãe, pro pai, pros filhos, netos etc. Além do agradecimento a Deus.
Pouquíssimos se atentaram ao que realmente estava em questão: o processo de
impeachment. Isso demonstra um total descompromisso dos deputados com a
veracidade do processo. Isso pouco importa, desde que Dilma saia. Se ela é ou
não culpada, pouco importa. Ou seja, Dilma não está sendo julgada com isenção,
como realmente deveria ser, mas a votação do impeachment é política e nada
mais. Somente o judiciário teria capacidade para analisar e julgar a culpabilidade
ou não da presidente Dilma. Ao fim do processo no senado, continuaremos sem
saber se Dilma é ou não culpada. O resultado apenas nos dirá se ela será ou não
impedida. Os que estão conscientes disso não deveriam aprovar de forma alguma o
impeachment, pois é um desrespeito com a democracia de nosso país abrir um
processo de impeachment contra a presidente sem nem ao menos analisar a
veracidade da acusação. Isso é golpe! E para não nos esquecermos disso, não
custa lembrar as palavras do presidente João Goulart, deposto pelo Golpe
Militar de 1964:
Não há ameaça mais séria à
democracia do que tentar estrangular a voz do Povo, fazendo calar as justas
reivindicações desta Nação e destes reclamos que, de norte a sul, de leste a
oeste, levantam seu clamor pelas reformas
de base, sobretudo a Reforma Agrária que será o complemento da abolição do
cativeiro de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em condições
miseráveis[17].
A voz do povo não está em uma direita conservadora e fascista que apoia
deputados corruptos em troca da derrubada da presidente. Esses não representam
a voz do povo! O povo é representado por aqueles que anseiam pelas reformas de
base, que trazem benefícios sociais, trabalhistas, eleitorais, bancários e
agrários ao povo. A voz do povo não está em uma direita infatilóide que até hoje
tem medo do vermelho comunista que nem existe mais; uma direita que tem medo de
distribuir a riqueza do país e acabar com a desigualdade. Querem sugar tudo pra
si, querem benefícios para os ricos, melhorias para a classe média, mas sempre
se esquecem dos pobres. Os revoltados contra os governos Lula e Dilma estão
incomodados porque seus privilégios foram maculados. Essa classe de intocáveis
começou a sentir a pressão pela redistribuição de renda. Os programas sociais
do governo Lula, principalmente o "Fome Zero" e o "Bolsa
Família" permitiram que mais dez milhões de famílias saíssem da miséria
extrema. O Bolsa Família inclusive é um programa modelo que já foi exportado
para 52 países[18].
Inclusive a Índia, que teve um crescimento econômico extremo no último ano,
estuda implementar o seu bolsa família[19].
O governo Lula trouxe benefícios históricos para o desenvolvimento do país como
aumento do PIB, criação de universidades federais, melhorias dos bancos
estatais, aumento do salário mínimo, redução da pobreza, redução da
desigualdade. No governo Lula o desemprego só diminuiu, caindo de 12% em 2002
para 6% em 2011[20].
Lula iniciou aquilo que Jango não conseguiu, pois foi destituído antes disso:
Não receio ser chamado de
subversivo por proclamar a necessidade da revisão da atual Constituição da
República, que não mais atende aos anseios de nosso povo. É antiquada porque
legaliza uma estrutura econômica já superada, injusta e desumana. O povo tem
que sentir a democracia que ponha fim aos privilégios de uma minoria proprietária
de terras[21].
Já em 1964, o presidente Goulart sabia que o que era preciso fazer para
acabar com a desigualdade no país: revisar a Constituição e fazer a reforma
agrária. Deu um prazo para isso: em 60 dias os latifúndios começariam a ser
divididos. Não teve sequer tempo para iniciar seu trabalho, foi deposto 18 dias
depois por uma elite desesperada para manter seus privilégios...
A reforma agrária é algo que até hoje não foi feita nesse país. Algo
posto, pelo presidente João Goulart, como essencial para por fim a desigualdade
no Brasil. Após o fim do governo militar, os latifúndios permanecem e a reforma
pouco avançou. Lula foi o que mais assentou famílias comparado aos governos FHC
e Dilma, no entanto, é ainda muito pouco para o que deve ser realmente feito.
Dos latifúndios existentes, 40% são improdutivos. Isso dá mais de 200 milhões
de hectares[22].
Isso é um total absurdo se pensarmos que existem milhões de famílias que vivem
da terra e ainda não possuem terras. A questão de terras nesse país sempre foi
um agravante, desde a época das antigas capitanias hereditárias. Séculos depois
e ainda vivemos a mesma disputa por terras, agora transformada em um business agrário e financeiro que ao
invés de distribuir, concentra.
O movimento tríplice de mercadorização,
ultraconcentração e internacionalização, que se observa no movimento de crise
cíclica das commodities, depende
fundamentalmente de uma completa desregulação do mercado de terra relativamente
aos regimes fundiários constitucionalizados, por um lado; e, por outro, de uma
subvenção à valorização do preço de terras, mesmo na crise das commodities. E isso requer a captura do
Estado a um dado pacto de poder – o do sistema do agronegócio, marcado com o
selo da ilegitimidade. Daí que tal pacto de poder não se sustenta a médio
prazo, nos marcos do estado de direito da Constituição de 1988[23].
O Brasil nunca vai avançar como nação enquanto não avançar no seu enorme
problema de desigualdade social. Para isso é preciso resolver a questão de
terras, redistribuir renda com a taxação de grande fortunas e bancos privados,
estimular o crescimento das industrias nacionais, além de melhorar o acesso ao
crédito à classe mais baixa da população e investir assiduamente nos programas
sociais. A concentração de renda é um total descaso com os problemas reais do
país. Isso vindo de uma elite que se diz indignada com o governo do PT, mas que
desconhece, de fato, quem são os brasileiros, pois sequer se dão ao trabalho de
ir além da janela da própria casa. O Povo Brasileiro é um povo tão
diverso quanto o número de estrelas no céu.
De 2012 para 2013, o número de
brasileiros com renda mensal superior a 160 salários mínimos (maior faixa da
pirâmide social pelos critérios da Receita) caiu de 73.743 para 71.440. Esta
pequena elite que corresponde a 0,3% dos declarantes de IR concentrou, em 2013,
14% da renda total e 21,7% da riqueza, totalizando rendimentos de R$ 298 bilhões
e patrimônio de R$ 1,2 trilhão. Isso equivale a uma renda média individual
anual de R$ 4,17 milhões e uma riqueza média de R$ 17 milhões por pessoa[24].
Os dados, a partir da declaração de Imposto de Renda, demonstram o
quanto o Brasil pouco avançou na distribuição de renda e ainda continua a ser
um país extremamente desigual. Apesar dos avanços apresentados no governo Lula,
ainda há muito a ser feito para uma melhoria efetiva do país. No entanto, não
será com ênfase em uma política neoliberal com a defesa de redução nos
investimentos sociais, maior rentabilidade a bancos e mercado financeiro
através da elevação da taxa Selic, desregulamentação trabalhista e controle
cambial que conseguiremos avançar em melhorias reais. A crise política do
Brasil é apenas uma parte de uma crise maior dos governos de esquerda na
América Latina. Houve mudanças nos governos de Honduras, Venezuela, Argentina;
um golpe no governo do Paraguai retirando o presidente Lugo. Evo Morales foi
derrotado em um referendo que decidiria sobre uma outra reeleição sua na Bolívia. O Peru
está em processo de eleições com dois candidatos à direita e um possível
retorno dos Fujimori ao poder. E Cuba, depois de um acordo com os Estados
Unidos, apenas aguarda a morte de Fidel para uma guinada maior à direita. A
falta de crescimento do PIB, o aumento do desemprego e a queda no preço das commodities é um dos grandes indicativos
dessa crise.
Estes anos de bonança e
Governos de esquerda mudaram muitas coisas no continente. Durante a década de
ouro, entre 2002 e 2012, os níveis de pobreza caíram de 44% para 29%, enquanto
que os de pobreza extrema diminuíram de 19,5% para 11,5%, com um aumento
considerável das classes médias. Também houve um aumento notável do gasto
público. E isso implicou em inclusão social. Uma amostra: entre 1999 e 2011,
segundo a Unesco, o nível de escolarização inicial passou de 55% a 75%. No
entanto, os cidadãos não se conformam. Querem mais e melhor. E tudo indica que
quase nenhum Governo ficará em pé diante desta onda[25].
A derrubada da presidente Dilma Rousseff, portanto, não resolverá os
problemas do Brasil. Seu sucessor direto, Michel Temer, nada mais é do que uma
marionete de Eduardo Cunha que acentuará a política econômica neoliberal e
reforçará a derrocada dos programas sociais. No mais, não é disso que o Brasil
precisa. Em nada o impeachment contribui para o desenvolvimento do país. Visto
isso, pergunto: vale a pena apoiar um golpe à democracia apenas pelo gosto
pessoal? Vale a pena apoiar Temer e Cunha nessa empreitada?
Àqueles que, entre golpistas e defensores do governo, não se encaixam em
nenhum dos dois, apenas suscito a reflexão e a defesa da democracia. Não fui um
dos 54 milhões que votaram em Dilma Rousseff, não concordo com a política
econômica adotada no seu segundo mandato e discordo em muita coisa com o seu
governo. No entanto, respeito os processos democráticos deste país. Sendo assim,
não posso ser conivente com o total descaso e falta de respeito àqueles que
legitimamente elegeram Dilma presidente. No mais, uma terceira via pode ser
construída. Mas essa via necessita de uma mudança radical na politica, uma
política alternativa que não inclui a lógica binária aqui apresentada. Essa é a
política do “ou”. Aos curiosos da proposta, a casa é de vocês!
[1] Uma leitura prévia deste artigo
foi feita pelos professores Reginaldo Farias e Maria Elizabeth Godoy. Agradeço
a ambos pelas críticas e sugestões enviadas.
[2] O
artista plástico holandês Florentijn Hofman acusa a Fiesp (Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo) de plagiar, em sua campanha contra aumento
de impostos chamada "Não vou pagar o pato", a obra Rubber
Duck (ou pato de borracha), exposta em São Paulo, em 2008, e em cidades como
Amsterdã e Hong Kong. Para mais, ver: BBC. “Artista holandês acusa Fiesp de
plagiar pato amarelo”. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160329_pato_fiesp_fs. Acesso em:
19 de abril de 2016.
[3] Ver: G1. “Delator relata pedido de propina de Cunha,
que o desafia a provar”. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2015/07/delator-relata-pedido-de-propina-de-cunha-que-o-desafia-provar.html.
Acesso em: 19 de abril de 2016.
[4] AFFONSO, J.; MACEDO, F.;
COUTINHO, M. “Delator aponta propina de R$ 52 milhões em 36 parcelas a Eduardo
Cunha”. Estadão. Disponível em:
http://politica.estadao.com.br/blogs/faustomacedo/
delatorapontapropinader52milhoesem36parcelasaeduardocunha.
Acesso em: 15 de abril de 2016.
[5] A inclusão de trechos da delação
de Delcídio Amaral em que a presidente Dilma é citada é recente e, portanto,
não pode configurar na decisão pelo impeachment. Lembremos também que a citação
do nome de Dilma pela delação de Delcídio, não a torna há torna formalmente
investigada pelo STF. Portanto, o julgamento do impeachment é de outra ordem.
Para mais, ver: BULLA, B. “Menções de Delcídio a Dilma, Lula e Temer são
incluídas em investigação de quadrilha na Lava Jato”. Estadão. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,mencoesdedelcidioadilmalulaetemersaoincluidaseminvestigacaodequadrilhanalavajato.
Acesso em: 21 de abril de 2016.
[6] SERRANO, P.; BONFIM, A. “Quando
impeachment é golpe”. Carta Capital.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/872/quandoimpeachmentegolpe1725.html.
Acesso em: 07 de abril de 2016.
[7] Ressalto em nota que as
investigações devem continuar e se for provado algum crime de Dilma ou Lula,
eles devem responder por isso. No entanto, o que quero enfatizar aqui é a
necessidade de provas para se acusar alguém e não a mera opinião, mesmo que
esta opinião esteja vindo de um grande veículo de informação.
[8] MACEDO, F.; AFFONSO, J.;
HISAYASU, A. "Moro sonha com o fim da Lava Jato até dezembro". Estadão. Disponível em:
http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/moro-sonha-com-fim-da-lava-jato-ate-dezembro/.
Acesso em: 18 de abril de 2016.
[9]MAQUIAVEL, N. O Príncipe.
[Edição Bilíngue]. Tradução de José Antônio Martins. São Paulo: Hedra, 2010, p.
97.
[10] Agradeço ao professor Gabriel
Chati por essa brilhante observação.
[11] MENEZES, L. M. B. R. A Política
do Invisível. In: CARVALHO, M.; FIGUEIREDO, V. (Org.). Filosofia do Renascimento e Moderna. 1ed. São Paulo: ANPOF, 2013,
p. 429.
[12] EBC. “36 deputados da comissão
do impeachment respondem por crimes na Justiça; 4 deles pela Lava Jato”.
Disponível em:
http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2016/04/dosdeputadosquevotaramnacomissaodeimpeachment36
respondemporcrimesnajustica.
Acesso em: 13 de abril de 2016.
[13] BAVA, S. C. A disputa é nas ruas. Le Monde Diplomatique Brasil, ano 9, n. 104, março de 2016, p. 3.
[14]BELLUZZO, L. G.; GALÍPOLO, G. A
ponte para o passado. Carta Capital,
ano XXII, n. 897, 20 de abril de 2016, p. 28.
[15] MENEZES, op. cit., p. 427.
[16] Para maior informações sobre o
PanamaPapers, ver: https://panamapapers.icij.org/about.html.
[17] Discurso do presidente João
Goulart em 13 de março de 1964 na Central do Brasil, Rio de Janeiro. Grifo
nosso.
[18] PORTAL BRASIL. “Modelo do Bolsa
Família foi "exportado" para 52 países”. Disponível em:
http://www.brasil.gov.br/cidadaniaejustica/2016/01/modelodobolsafamiliafoiexportadopara52paises.
Acesso em: 19 de abril de 2016.
[19] DRUMMOND, C. “A Índia acelera e
avança”. Carta Capital. Disponível
em: http://www.cartacapital.com.br/revista/896/aindiaaceleraeavanca. Acesso em:
23 de abril de 2016.
[20] Dados: (i) "DADOS GOVERNOS FHC/PSDB E LULA-DILMA/PT POR
HILDEGARD ANGEL, jornalista" Disponível em: https://leonardoboff.wordpress.com/2014/10/11/dados-governos-fhcpsdb-e-lula-dilmapt-por-hildegard-angel-jornalista/;
(ii) "Desemprego sobe, mas FHC segue na frente". Disponível em:
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/206208/Desemprego-sobe-mas-FHC-segue-na-frente.htm;
(iii) "O (des)emprego dez anos
depois". Disponível em:
http://www.cartacapital.com.br/economia/o-desemprego-dez-anos-depois; (iv) FGV:
Pobreza caiu 50,6 com Lula e 31,9 com FHC" Disponível em:
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,fgv-pobreza-caiu-50-6-com-lula-e-31-9-com-fhc,65287e;
(v) "A real taxa de desemprego no Brasil" Disponível em:
http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1471; (vi) "Miséria, Desigualdade
e Estabilidade: O Segundo Real". Disponível em:
http://www.cps.fgv.br/cps/pesquisas/site_ret_port/RET_Sumario.pdf.
[21]Discurso do presidente João
Goulart em 13 de março de 1964 na Central do Brasil, Rio de Janeiro.
[22] PELLEGRINI, M. "O Brasil tem latifúndios: 70 mil deles".
Carta Capital. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/brasil-tem-latifundios-70-mil-deles-1476.html.
Acesso em: 03 de março de 2016.
[23] DELGADO, G. C. “O Movimento do
Mercado de Terras”. Le Monde
Diplomatique Brasil, ano 9, n. 105, 2016, p. 11.
[24] ALVARENGA, D. “71 mil brasileiros
concentram 22% de toda riqueza; veja dados da Receita”. Disponível
em:http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/08/71milbrasileirosconcentram22detodariquezavejadadosdareceita.html.
Acesso em: 29 de dezembro de 2015.
[25] CUÉ, C. E.; LAFUENTE, J. “América Latina vive o fim da era dourada
daesquerda no poder”. El PaísBrasil.
Disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/27/internacional/1456608633_490106.html.
Acesso em: 21 de abril de 2016.