domingo, 11 de maio de 2014

O Pomo Russo da Discórdia


A Ucrânia está prestes a passar por um referendo que irá determinar os rumos do país. As regiões de Donetsk e Luhansk vão às urnas dispostos a declarar independência. Um referendo é algo que parece ser extremamente democrático, pois permite que seus próprios cidadãos determinem os rumos de seu país pelas suas próprias decisões. No entanto, isso não é mais do que um sutil ardil para se determinar vontades particulares. Como bem ressaltou Rousseau no Contrato Social, nós não devemos confundir a vontade de todos com a vontade geral, pois a primeira nada mais é do que vontades particulares em conjunto, e a segunda é a união soberana de todos em uma só vontade. Ou seja, o conjunto de vontades particulares não determina o que é melhor para o Estado, mas somente se a vontade particular for extinta e os cidadãos abraçarem a coletividade é que poderemos ter uma Vontade Geral.

A unidade ucraniana está em risco e o referendo talvez não seja a melhor saída. Na introdução do Leviathan, Hobbes claramente irá associar a sedição à doença do Estado que se não for sanada pode levar a sua morte. A morte do corpo político nada mais é do que a guerra civil que levaria novamente ao estado de guerra de todos contra todos. A Ucrânia está à beira de uma guerra civil declarada, já que esta já começou desde que o lado separatista iniciou um estranhamento com o lado governista. E qual seria o real motivo por trás disso?

Desde que o presidente russo Vladimir Putin tomou todas as medidas para retomar a região da Criméia para o domínio da Rússia, que a discórdia se instaurou dentro da Ucrânia. Mas quem pensa que a Ucrânia é o único problema da região, em muito se engana. A Ucrânia é apenas um recado velado à Europa, mas propriamente à União Europeia. Idealizada desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a União Europeia acabou por se concretizar no fim do século XX com a instauração da zona do euro. Os países membros vêm, desde então, aumentando e chegam ao leste europeu em meados dos anos 2000. Isso dá uma clara insatisfação à Moscou, que vem perdendo poder desde o fim da U.R.S.S. Putin será o homem que irá retomar com rédeas fortes a crescente decadência russa, fazendo profundas reformas políticas e econômicas no país e restaurando sua força perante a Europa e aos Estados Unidos. Como a Rússia nunca foi convidada para participar da “festa” da União Europeia, Putin resolve aparecer sem ser convidado e lançar o pomo da discórdia* entre os demais líderes europeus anunciando a sua presença e deixando claro que ele não vai aceitar a expansão da UE no leste europeu sem que a Rússia também participe disso.

A disputa entre a Rússia, a UE e os EUA claramente não será resolvida com sanções econômicas ou pressões argumentativas. O presidente dos EUA, Barack Obama parece não poder dar conta da instabilidade criada no seio europeu e suas ameaças a Putin nada mais fazem do que fortalecê-lo. Inclusive se corre o risco da Rússia se aproximar ainda mais da China, o que daria uma nova configuração geopolítica ao mundo. As lideranças europeias parecem ignorar isso, o que nos faz lembrar a década de 1930 em que a Europa fechou os olhos para o movimento bélico da Alemanha nazista e quando volto a abri-los, os blindados alemãs já haviam passado por cima da França. É claro que o contexto mundial não é o mesmo, mas nada impede o paralelo que traçamos como um aviso para a vontade de poder russa.

Enquanto os principais membros da UE, Inglaterra, França e Alemanha, acharem que podem resolver as coisas internamente sem chamar Moscou para se sentar à mesa das negociações, a discórdia irá claramente se expandir na Europa, iniciando-se pelo leste europeu e indo rumo ao centro europeu, mostrando que a dita unidade europeia nada mais é do que uma grande falácia.

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* A lendária Guerra de Troia começou numa festa dos deuses do Olimpo: Éris, a deusa da discórdia, que naturalmente não tinha sido convidada, resolveu acabar com a alegria reinante e entregou anonimamente aos olímpicos uma linda maçã, toda de ouro, com a inscrição "Para a mais bela". O que levou a disputa entre as três deusas mais poderosas, Hera, Afrodite e Atena.