domingo, 20 de abril de 2014

CONTRATUALISMO: JUSTIÇA E NATUREZA





 

Para entendermos a base do contratualismo moderno, utilizaremos na composição deste texto o posicionamento de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Primeiramente faremos uma análise do estado de natureza de ambos, para depois relacionar a teoria do direito natural à formação da sociedade civil.

Hobbes no Leviathan irá apresentar o estado de natureza humano no capítulo XIII. Segundo ele, o homem é igual por natureza tanto nas faculdades do corpo como na do espírito[1]. Se todos os homens possuem força e inteligência semelhantes, então estão na mesma condição natural. Na natureza não há qualquer tipo de poder capaz de coagi-los a agir segundo regras e, dessa forma, todos tem direito a todas as coisas. Isso levará a disputa entre os homens e a discórdia, sendo esta de três tipos:
 (i) competição – por lucro
 (ii) desconfiança – para manter a própria segurança
 (iii) glória – pela reputação
Os homens, sem um poder comum capaz de mantê-los em temor respeitoso, estão em estado de guerra de todos contra todos[2], pois nenhuma lei pode ser feita antes de se ter concordado quanto à pessoa que deverá fazê-la. O estado de natureza se caracteriza pelas paixões dos homens chamadas de direito natural e a razão que determina a lei natural. De acordo com a definição de Hobbes, direito natural é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; já a lei natural é um preceito ou regra geral, estabelecida pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua própria vida ou privá-la dos meios necessários para a preservar, ou omitir aquilo que se pense melhor contribuir para a preservar[3]. Dessa maneira a melhor maneira de se preservar a vida é buscando-se a paz. A paixão que faz o homem tender para a paz é o medo da morte e a razão irá conduzi-lo a preservar a sua própria vida. No entanto, se certo e errado não têm lugar na condição natural, como Hobbes determina no cap. XIII, então as leis da natureza, que ele concebe como requerimentos da moralidade, não poderiam ser aplicadas fora do Estado. O Estado é o mais perfeito artifício criado pelo homem e representa a união de todos os homens juntos. Sua criação, apesar de não ser natural, se faz por analogia à natureza. Enquanto os homens possuem corpos físicos dados pela natureza, o Estado é um corpo político criado a partir da arte humana[4]. Faz-se a necessidade de se determinar os meios para a constituição da sociedade civil.
Os fundamentos para a construção do corpo político se dá através de um pacto de todos os homens com todos os homens para a formação de um terceiro, isto é, o soberano. O pacto não é feito entre o povo e o soberano, pois as pessoas não possuem nenhuma unidade para serem chamadas de ‘povo’ antes da existência da sociedade, assim como, o soberano só passa a existir depois do pacto. O soberano, portanto, não faz parte do pacto, pois foi formado a partir deste, e, devido a isso, não tem de responder pelo pacto que foi formado. O soberano é a representação do corpo político e o seu poder é chamado de poder soberano e este consiste no poder e na força que cada um dos membros lhe transferiu por meio do pacto[5]. O poder soberano tem três principais características:
(i) ele é irrevogável – nenhum dos contratantes do pacto pode revogá-lo, pois uma vez que todos cederam seus direitos ao soberano, somente ele teria o poder para destituir o corpo político.
(ii) ele é ilimitado – o poder soberano é o maior poder que os homens podem atribuir a outros homens. O poder é absoluto porque se outro poder o limitasse, o soberano seria o poder limitador e não o limitado.
(iii) ele é indivisível – pelo mesmo motivo o poder soberano não pode ser dividido, pois seria uma maneira de limitá-lo.
As leis civis baseiam-se nas leis naturais, leis estas que conduziriam ao pacto instaurador do Estado como poder soberano. A justiça como um requerimento moral é derivada do requerimento moral de procurar a paz. A justiça é um requerimento moral porque transferência de direitos é um meio de fazer a paz, direitos são transferidos através de contratos, e a justiça é um meio de manter os contratos.
Rousseau entende que todo processo de desigualdade humana se dá com o início da sociedade civil, através da instituição da propriedade privada. A natureza, ao contrário, seria o lugar para uma bondade natural existente na essência humana, que foi perdida quando o homem se tornou social. Para ele, o estado de natureza humano deve ser entendido como uma hipótese filosófica para falar da humanidade em geral e não somente de uma particularidade dos homens. Hobbes, segundo Rousseau, tomou as paixões sociais como sendo paixões naturais e por isso classificou o homem como egoísta, amante da glória e competindo por tudo. No entanto, no estado de natureza o homem é dotado de uma piedade natural que tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata em ver sofrer seu semelhante[6]. O estado de natureza do homem é o que melhor guarda as suas paixões e liberdade originários, apesar de que não há como a ele retornarmos. Por isso, Rousseau irá idealizar uma maneira pela qual possamos resgatar valores de nossa natureza perdida e colocá-los em prática na sociedade. O propósito de Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos. Nisso terá importância a sua obra mais conhecida: o Contrato Social. Em primeiro lugar, ele visa um modo de vivermos em sociedade sem perdermos com isso a nossa liberdade, pois para ele “renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, inclusive aos seus deveres”[7]. A liberdade é, portanto, inalienável. Mas como é possível manter-se a liberdade ao mesmo tempo em que se cria uma sociedade?
De acordo com Rousseau, o soberano, seja ele uma assembleia ou um monarca, é uma pessoa moral cuja vontade será desde então a vontade de todo o corpo político, logo, a vontade de todos os seus membros. Essa vontade de todos os homens envolvidos no corpo político será chamada de vontade geral. A soberania é o exercício da vontade e tem três principais características:
(i) ela é inalienável – a soberania deve sempre residir no povo e que este não pode confiar seu exercício aos governantes, quaisquer que eles sejam.
(ii) ela é imprescritível – só pode ser exercida no corpo da nação e não pode de modo algum ser exercida por um indivíduo.
(iii) ela é indivisível – a vontade não pode ser particular, mas de todo o povo e, somente assim, uma vontade geral.
Essas três características se complementam na formação de uma soberania que responde por todo o povo. A passagem do estado natural ao estado civil produziu no homem uma mudança considerável, substituindo em sua conduta o instinto pela justiça e imprimindo às suas ações a moralidade que anteriormente lhes faltava[8]. Dessa forma, Rousseau não poderia rejeitar a ideia de lei natural sem que, com o mesmo golpe, privasse o contrato social de toda sanção moral, de maneira que, o contato social se justifica na lei natural. As leis civis constituem atos da vontade geral, instituídas por todo o povo para governar todo o povo e sendo, dessa forma, o povo legislado por si próprio. A liberdade moral é a única que torna o homem senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade[9]. Os maiores bens que devem se encontrados em todo sistema de legislação são a liberdade e a igualdade[10], pois será a partir dessa estreita relação entre liberdade e igualdade que Rousseau construirá a sua justiça, uma vez que a liberdade entre os homens só pode ser mantida se não houver alguém desigual, de modo que a desigualdade provoca a injustiça entre os homens. No seio da sociedade, a igualdade, que é a condição de liberdade para todos, só pode ser realizada se der ao soberano uma autoridade absoluta sobre todos os membros da associação. Se sobrassem aos particulares alguns direitos dos quais pudessem usufruir sem a permissão do soberano, a vontade geral deveria inclinar-se diante das vontades particulares ou, ao menos, medir-se com elas e, dessa forma, deixaria de lhes ser superior e de lhes impor sua lei.
Tanto em Rousseau quanto em Hobbes, o contrato social é obra da razão. Em Hobbes o contrato permite que os males do estado de guerra instaurado pelo estado de natureza seja instinto através da formação de um poder comum que cause a todos um temor que leve a obediência e a paz promovendo, dessa maneira, a saúde e a segurança do corpo político. Em Rousseau, o contrato só foi possível porque a sociabilidade tem como efeito tornar a razão ativa e fornecer assim o remédio para o mal pelo qual a própria sociedade é responsável. Dessa maneira, o contrato em Rousseau instaura uma vontade geral que irá legislar sobre todos os cidadãos as leis que eles fizeram para si.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes



[1] HOBBES, T. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo Martins Fontes, 2008, p. 106. Demais citações à obra serão abreviadas por Lev.
[2] Lev., p. 109.
[3] Lev., p. 112.
[4] A analogia da arte com a natureza, e a relação do corpo político com o corpo natural, pode ser claramente observada na Introdução do Leviatã.
[5] HOBBES, T. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2010, XIX.10. As citações desta obra são seguidas de capítulo e parágrafo.
[6] ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 189.
[7] ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Editora Cultrix, 2002, I.4. Citações à obra serão abreviadas por Contrato seguidas do livro e do parágrafo referentes.
[8] Contrato, I.8.
[9] Contrato, I.8.
[10] Contrato, II.11.


BIBLIOGRAFIA:

BROOKE, C. Rousseau’s Political Philosophy: Stoic and Augustinian Origins. In: RILEY, P. The Cambridge Companion to Rousseau, 2007, p. 94-123.

HOBBES, T. Leviatã. Organizado por Richard Tuck. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

________. Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

HOEKSTRA, K. Hobbes on the Natural Condition of Mankind. In: SRINGBORG, P. The Cambridge Companion to Hobbes’s Leviathan, 2007, p. 109-127.

RILEY, P. How Coherent is the Social Contract Tradition? Journal of the History of Ideas, v. 34, n. 4, p. 543-562, 1973.

ROSENFIELD, D. L. Introdução. In: HOBBES, T. De Cive. Elementos Filosóficos a respeito do Cidadão. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 19-45.

ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social e outros escritos. Tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.

_________. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SORELL, T. Hobbes’s Moral Philosophy. In: SRINGBORG, P. The Cambridge Companion to Hobbes’s Leviathan, 2007, p. 128 – 153.