A Genealogia da Moral
de Nietzsche tem o intuito de demonstrar que doutrinas morais reverenciadas
como verdadeiras não são fixas ou eternas. Ele entende que há algo de auto alienador
na história da moralidade e irá utilizar discussões genealógicas
quasi-históricas para subverter a confidência dos sistemas de crenças
tradicionais. Para isso, ele irá questionar não apenas a verdade destas
crenças, mas o valor da própria moralidade. Sob que condições o homem inventou
para si os juízos de valor ‘bem’ e ‘mal’? Dessa forma, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão[1]. Nietzsche
pretende (i) demolir o fundamento metafísico pelo qual os valores da tradição
cristã se erigiram e; (ii) demonstrar que esta construção não é divina, mas
histórica e humana.
Quando falamos em fundamento metafísico, é difícil não nos
lembramos de Kant e sua Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, que nada mais é do que a busca e a fixação do
princípio supremo da moralidade, o que constitui só por si no seu propósito uma
tarefa completa e bem distinta das demais investigações morais. O trabalho de
Kant é metafísico no que ele investiga a ideia e os princípios de um objeto que
não pode ser descoberto no reino da experiência, chamado vontade pura. Nietzsche irá se opor à tal metafísica dizendo ser a
natureza mais instável do que a ciência pode aceitar. O tratamento genealógico
de Nietzsche das ideias morais tem o intuito de perturbar a pretensa ‘pureza da
moral’ e a pressuposição dos fundamentos da moral pela sugestão de um olhar
diferente para o contexto histórico dos valores morais. Para compreendermos
como Nietzsche pretende encaminhar a sua discussão, precisamos averiguar um
termo chave da sua filosofia: a vontade
de poder. Segundo Müller-Lauter,
Vontade
de poder não é um caso especial do querer. Uma vontade "em si" ou
"como tal" é uma pura abstração: ela não existe factualmente. Todo
querer é, segundo Nietzsche, querer-algo. Esse algo-posto, essencial em todo
querer é: poder, Vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu
âmbito de poder. Alargamento de poder se perfaz em processes de dominação. Por
isso querer-poder (Macht-wollen] não é apenas" 'desejar', aspirar, exigir."
A ele pertence o 'afeto do comando". Comando e execução pertencem ao um da vontade de poder[2].
Na Genealogia, a
vontade de poder é a ideia de que toda afirmação é também uma negação, que toda
condição ou asserção de um significado deve trazer algum ‘outro’, algum
obstáculo ou contra força. Isso fica claro quando percebemos que os valores
cristãos sucederam em recolocar os valores nobres pela elevação dos valores dos
sem poder, do fraco e do comum para um status maior. Tanto a moral do nobre quanto a moral do escravo são expressões da
vontade de poder. O nobre concebe a noção de ‘bom’ de si mesmo como sinônimo de
belo e nobre. Nietzsche vai buscar esse sentido na própria etimologia grega da
palavra agathós (bom) cujo
superlativo é áristos (melhor),
palavra que também significa nobre em
grego[3]. O ‘ruim’ é o homem comum,
destituído de nobreza, sem nome e fama. Segundo Nietzsche, a tresvaloração se
dá a partir do ressentimento judeu, do escravo, que tem o ‘mau’ como o ‘bom’ da
outra moral, a moral nobre. O ‘ruim’ é, portanto, uma criação posterior,
contrário ao ‘mau’ que é o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral
escrava. Como são diferentes as
palavras ‘mau’ e ‘ruim’, ambas aparentemente
opostas ao mesmo sentido de ‘bom’[4].
Dessa maneira, se faz uma inversão dos valores. Onde antes havia o bom, o nobre
e o forte é, na moral do escravo, substituído pelo ‘mau’. O ‘bom’ passa a ser o
homem comum, fraco, porém piedoso e temente a Deus.
De acordo com Nietzsche, a moral do povo discrimina entre a
força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato
indiferente que fosse livre para
expressar ou não a força. A liberdade não consiste em separar a mesma coisa em
duas, duplicando a ação e chamando uma parte de causa e a outra de efeito como
se faz com o raio e o trovão, mas em entender que ambas são a composição de uma
mesma força. Tal separação leva a sublime falácia de interpretar a fraqueza
como liberdade, quando na verdade a ação
é tudo. A constituição da liberdade está no próprio cerne da natureza
própria de cada um. No entanto, a doutrina do livre arbítrio e da
responsabilidade estabelecida pela moral do escravo, demonstra o quanto esta
moral não estava satisfeita simplesmente com a retificação, mas ela quer
converter a moral do nobre para a perspectiva do escravo, de tal maneira que o
forte queira renunciar seus modos de vida e formas de poder mundanos.
A moral do ressentimento irá criar uma intima relação entre
culpa e dívida, que na língua alemã se resuma a uma única e mesma palavra: Schuld. Surge o homem responsável, que
relaciona o sentimento de justiça à máxima segundo a qual ‘o criminoso merece
castigo porque podia ter agido de outro modo’[5]. O não
esquecimento de uma dívida se firma na memória pela dor. Dessa forma, Nietzsche
demonstra que a maneira pela qual se era explicado o castigo como feito para
‘expiar’ a pena cometida, na verdade, em nada explica a sua origem, pois o
castigo não foi inventado para castigar, assim como a mão não foi feita para pegar
nem o pé para andar. Todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de
que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o
sentido de uma função[6].
Segundo Nietzsche, o castigo se apresenta sobre dois aspectos:
(i) duradouro – o costume, o ato, uma certa sequência
rigorosa de procedimentos.
(ii) fluido – o sentido, o fim, a expectativa ligada à
realização desses procedimentos.
O castigo teria o valor de despertar no culpado o sofrimento
da culpa, nele se vê o verdadeiro instrumento dessa reação psíquica chamada má consciência. Seria a má consciência
uma doença que infecta o homem quando este foi definitivamente encerrado no
âmbito da sociedade e da paz[7]. Se
Nietzsche tiver razão, não há motivo real para se pensar uma moralidade na
própria natureza do homem, mas somente no seu sentido social e cultural. A
moral não tem, portanto, sua fundamentação em paradigmas metafísicos, mas é
humanamente construída através do próprio movimento da história.
Luiz
Maurício Bentim da Rocha Menezes
[1] NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, Prefácio 6, p. 12.
Demais citações à obra serão abreviadas por Genealogia
seguidas da parte, parágrafo e página da tradução utilizada.
[2] MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche.
Tradução de Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: ANNABLUME, 1997, p. 54-55.
[3] A palavra áristos possui o mesmo radical de areté conforme demonstra JAEGER, W. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 26-8.
[4] Genealogia, Primeira Dissertação, §11, p. 28-29.
[5] Genealogia, Segunda Dissertação, §4, p. 48.
[6] Genealogia, Segunda Dissertação, §12, p. 61.
[7] Genealogia, Segunda Dissertação, §16, p. 67.
BIBLIOGRAFIA:
HATAB, L. J. Nietzsche’s on Genealogy of Morality: An Introduction. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008.
JAEGER, W. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche.
Tradução de Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: ANNABLUME, 1997.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SCHACHT, R. (Ed.). Nietzsche, Genealogy, Morality. Essays on Nietzsche’s Genealogy of
Morals. Berkeley; Los Angeles; Oxford: University of California Press,
1994.