sábado, 16 de abril de 2011

O argumento ontológico

O argumento ontológico (Rowe, 2007, cap. 3) começa com um conceito de Deus e estabelece sua existência com base em princípios a priori (princípios cuja verdade podemos saber sem termos de verificar no mundo). Anselmo foi um dos maiores defensores desse argumento. As definições e os pressupostos iniciais de que parte o argumento ontológico estão apresentados a seguir: (a) Uma coisa contingente é algo que existe e poderia não existir, ou algo que não existe e poderia existir; (b) Uma coisa impossível é algo que não existe e não poderia existir; (c) Uma coisa necessária é algo que existe e não poderia não existir; (d) Uma coisa possível é algo que não é impossível; (e) “X não existe” equivale a “X existe apenas no entendimento, e não na realidade”; (f) “Deus” equivale a “o ser maior do que o qual nenhum é possível”; (g) “Maior” equivale a “mais digno”, “mais perfeito”; “maior” é um atributo de grandeza.

Anselmo pensa que:

(i) qualquer coisa que tenha um atributo de grandeza é superior a se não o tivesse, e que
(ii) existir na realidade é uma qualidade produtora de grandeza, 

Ou seja, ii nos diz que uma coisa meramente possível – uma coisa que existe apenas no entendimento – seria melhor se tivesse existido na realidade1. E isso é uma comparação entre uma coisa possível e ela mesma, e não entre uma coisa existente e outra não-existente. O que Anselmo quer provar é que “o ser maior do que o qual nenhum é possível” existe na realidade.

A partir desses dados, podemos passar ao argumento ontológico de Anselmo. Ele procede por redução ao absurdo2. Suas premissas fundamentais são:

(1) Deus existe no entendimento.
(2) Deus poderia existir na realidade (Deus é um ser possível).
(3) Se algo existe apenas no entendimento, e não na realidade, então poderia ser maior do que é.

E estes são os passos seguintes de Anselmo, onde começa a redução ao absurdo:

(4) Suponha que Deus existe apenas no entendimento (ou seja, que Deus não existe na realidade).
(5) Deus podia ser maior do que é.
(6) Logo, Deus é um ser maior do que o qual é possível haver outro.
(7) O ser maior do que o qual nenhum é possível é tal que um ser maior é possível. [Contradição]
(8) Logo, é falso que Deus exista apenas no entendimento;
(9) Logo, Deus existe na realidade e no entendimento.

A objeção de Gaunilo (Rowe, 2007, p. 34) a esse argumento é que se substituirmos “Deus” por outras variáveis que sabemos não existir – como a ilha maior do que a qual nenhuma outra é possível –, pelo argumento de Anselmo, teríamos provado que elas existem. A resposta de Anselmo é dizer que o raciocínio do argumento ontológico aplica-se somente a Deus, pois coisas finitas e limitadas não podem ter perfeições infinitas e ilimitadas. E, dado que o raciocínio de Anselmo é sobre coisas possíveis, ele poderia dizer também que é impossível tal ilha existir. Deixo ao leitor a avaliação da resposta de Anselmo.

Outra crítica é que não sabemos se Deus é um objeto possível e, portanto, não podemos saber que ele existe a partir do argumento de Anselmo. Pode ser que seja sempre possível haver um ser maior (como ocorre com os números) e pode ser o caso de a grandeza ter um limite máximo (como os ângulos de um triângulo). Só se as coisas existentes forem tão perfeitas quanto podem o ser é que o Deus de Anselmo será uma coisa possível, pois se algo existente tem uma imperfeição que poderia não ter tido, então há um ser meramente possível que é maior que um ser existente.

Portanto, dados o conceito anselmiano de Deus, o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza e a premissa de que Deus, como Anselmo o concebe, é uma coisa possível, segue-se de fato que o Deus de Anselmo existe. Afirmar que Deus é possível e que existir é maior que não existir sugere que Deus seja um objeto existente, porque tal conceito não pode se aplicar a um ser inexistente. No entanto, de fato, isso não prova que exista na realidade algo que exemplifique o conceito, pois por mais que “existir” fosse um conceito para definir algo – como em “Deus é o ser absolutamente perfeito que existe” – isso não falaria nada sobre a existência de um objeto que se adéqüe a tal conceito. Normalmente só conseguimos determinar empiricamente se existe na realidade algo que corresponda ao conceito. O argumento de Anselmo só nos mostra que se algum objeto cair sob o conceito de Deus – o ser absolutamente perfeito que existe – tal objeto terá de ser existente.

Notas

1 Pode haver uma controvérsia com relação a se toda coisa meramente possível seria maior se fosse existente. Por exemplo, é debatível se uma guerra meramente possível seria maior se fosse existente.

2 Redução ao absurdo é o método lógico de supor a verdade de uma certa premissa e depois mostrar que essa suposição nos leva a uma contradição; donde tal premissa leva ao absurdo e, então, não pode ser verdadeira – o que faz de sua negação uma verdade.

Referências

Rowe, William (2007). Introdução à Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Revisão científica de Desidério Murcho. Lisboa: Verbo, 2011.