sexta-feira, 15 de abril de 2011

A crença nos milagres e a experiência mística/religiosa

Um dos apelos teístas pela crença na existência de Deus são os milagres. Tem sido um grande problema da Filosofia da Religião saber (1) se é possível acreditar em milagres; e, se for, saber (2) se é razoável acreditar que ocorreu um milagre. Rudolf Bultmann (Rowe, 2007, p. 137) acredita que não, pois pensa que os milagres fazem parte de uma mundividência pré-científica. 




Na mundividência moderna, o mundo é um domínio autônomo e fechado, onde um acontecimento natural se explica por meio de outro acontecimento natural. Seria impossível acreditar na mundividência moderna, usufruir seus frutos e, ao mesmo tempo, acreditar na mundividência pré-científica do novo testamento.

A objeção mais simples a Bultmann é que é possível fazer tal coisa, dado que várias pessoas ainda hoje acreditam tanto nas ciências, quanto nas coisas fantásticas do novo testamento. Na verdade, há pessoas que querem até rejeitar a mundividência científica a favor de uma visão pré-científica do mundo, dado alguns resultados desagradáveis das tecnologias. Bultmann pensa que essas pessoas não importam; o que importaria seria a mundividência na qual elas estão inseridas, que é a mundividência científica. A mundividência científica deixa pouco ou nenhum espaço para Deus e para os milagres. Quando, por exemplo, a televisão quebra, acreditamos que houve uma falha elétrica, e não a ação de anjos, demônios ou espíritos. Rowe (2007) pensa que podemos assumir que atribuiremos menos acontecimentos a forças sobrenaturais. Mas Bultmann quer muito mais: ele quer que “aceitar a ciência moderna” seja comprometer-se com a rejeição de qualquer explicação de acontecimentos naturais por meio de atividades sobrenaturais. Não encontrei nenhuma justificação por essa afirmação tão forte.

David Hume, de outro modo, pensa que é possível acreditar em milagres, mas acredita que nunca é razoável fazê-lo. Para Hume, “milagre” tem de ser um acontecimento que não seria produzido apenas por causas naturais e que resulta da ação de um ser sobrenatural. Uma objeção à definição de Hume de “milagre” é que as condições de Hume não são necessárias para que algo seja um milagre. O milagre pode ser apenas um acontecimento impressionante que serve a um propósito benéfico; além disso, ele não precisa ser uma violação da causalidade natural. A resposta de Hume é que existe uma diferença entre o que percebemos como milagre e milagres que não percebemos (milagres visíveis e milagres invisíveis). Não podemos confundir as condições para acreditarmos que algo é um milagre e as condições para algo ser um milagre. E, se num acontecimento que consideramos um milagre, não há violação da ordem natural por um ser sobrenatural, por que não diríamos apenas que foi uma feliz coincidência em vez de um milagre genuíno?

O argumento de Hume contra os milagres é o seguinte:

(1) Os indícios empíricos a favor de uma lei da natureza são extremamente fortes.
(2) Um milagre é uma violação de uma lei da natureza.
(3) Logo, os indícios contra a ocorrência de um milagre são extremamente fortes.

Tais indícios a favor de uma lei da natureza são extremamente fortes porque são frutos da observação de uma regularidade. Quando ocorre um acontecimento que parece ser uma violação de uma lei da natureza, pensamos que houve uma causa natural não conhecida para aquele acontecimento. Por isso, nunca é razoável acreditar que houve um acontecimento que violou as leis da natureza. Os que acreditam, acreditam a partir de relatos de testemunhas. E é sempre mais razoável acreditar que as testemunhas se enganaram do que acreditar que as leis da natureza foram violadas, a não ser que o número de testemunhas seja muito grande, que as testemunhas sejam instruídas e que não sejam destemperadas.

O problema de Hume é que há acontecimentos imagináveis que seriam violações de leis da natureza e que seriam razoáveis de acreditar se tratarem de violações, como por exemplo, a decomposição de um corpo morto se reverter e seu dono voltar à vida. Outras duas objeções contra Hume são que (1) nem sempre temos apenas indícios diretos (testemunhos) para asserir que houve um milagre; às vezes os indícios indiretos (um acontecimento ser mais bem explicado por X) são melhores/maiores que os diretos – às vezes, dizer que algo foi um milagre é a melhor explicação; e que (2) se a experiência anterior tivesse tanto peso quanto Hume propõe, não poderíamos rever nossas leis ao ocorrerem exceções às leis: teríamos que falar que essas exceções, tais como os milagres, não ocorreram de fato. Daí, teríamos que considerar a prática científica de rever as leis, quando houver ocorrência de exceções, como irrazoável. Assim, pensa Rowe, se há boas razões para pensarmos que Deus existe e que vigia providencialmente sua criação, então, então haverá boas razões para pensarmos que certas violações das leis da natureza são fruto da intervenção divina, já que há acontecimentos que seriam mais bem explicados dizendo-se que são milagres (violações das leis da natureza). E também, se há boas razões para acreditar que Deus existe e vigia providencialmente sua criação, é razoável acreditar na ocorrência esporádica de milagres. Mas se não há boas razões para acreditar na existência de Deus ou na sua vigia providencial, a ocorrência de certas violações não será uma base razoável para acreditarmos que o Deus teísta causou essa violação.

Além dos milagres, uma outra justificativa pela racionalidade da crença na existência de Deus é a experiência mística e religiosa. Esta é pensada pelos teístas como uma consciência pessoal direta de Deus e como uma justificação racional forte para a crença em Deus. Há algumas definições de experiência mística e religiosa, mas utilizaremos a de Rowe (2007, cap. 5). Ele chama de experiência religiosa aquela experiência em que se sente a presença imediata do divino. A sensação de presença do divino é diferente da crença de que há algo divino presente. É também possível que uma pessoa tenha contato com Deus, mas que, como não sabe que está na presença de Deus, não tenha a experiência da presença imediata do divino. O que podemos concluir é que do fato de que alguém teve uma experiência da presença imediata do divino, isso não significa que o divino exista. O divino, segundo a definição de Rowe, é qualquer objeto que seja reconhecido como divindade por um grupo de teístas ou inteístas. A questão principal aqui não é se as pessoas têm experiências religiosas, mas a de ser ou não razoável pensar que suas experiências são verídicas ou delusórias. O importante é saber em que medida a existência de experiências religiosas místicas (de união com o divino) e amísticas (tendo o divino como externo) dão uma base racional para a crença no divino.

As experiências religiosas podem ter conteúdo perceptivo (pelos cinco sentidos) ou não. Às vezes podem ser descritas como a sensação da presença de um ser imensamente benéfico. Mas é essa sensação uma alucinação? O crente no divino falaria que temos que ter uma boa razão para pensarmos que a experiência religiosa é delusória; e, na ausência de tais razões, é racional vê-las como provavelmente verídicas. Daí surge a pergunta: uma pessoa ter uma experiência que considera ser de um objeto particular é uma boa razão para acreditar na existência desse objeto particular? O crente responde que devemos utilizar o princípio da credulidade:

uma experiência é uma boa razão para acreditar que uma afirmação é verdadeira se essa experiência justificar racionalmente a crença na afirmação, não havendo razões para pensar de outro modo. Razões para pensar de outro modo são: A) razões para pensar que a afirmação é falsa ou B) razões para pensar que dadas as circunstâncias em que ocorre, a experiência não é suficientemente indicativa da verdade da afirmação (Rowe, 2007, p. 80).

O problema dessa resposta é que ela pressupõe que temos uma idéia do tipo de razões temos de ter para questionar nossas experiências. No caso de um objeto público, como uma serpente, sabemos que tipo de razões serviria para torná-la ilusória ou real, mas no caso do divino não sabemos, já que dependeria inteiramente da vontade do divino se revelar aos homens. Por isso, sempre será muito difícil encontrar razões A ou B, embora possamos pensar que uma experiência de ouvir Deus mandando-nos matar pessoas piedosas é delusória, se Deus for considerado sumamente bom. O princípio de credulidade torna, no mínimo, duvidoso que consigamos justificar, a partir dele, as experiências religiosas como percepções genuínas da realidade.

Outra objeção é que se o princípio vale para o Deus cristão, também vale para as experiências religiosas de todos os outros deuses; isso faz com que a pluralidade de religiões, das quais muitas inconsistentes entre si, torne racional não acreditar que as experiências religiosas sejam percepções genuínas da realidade, dado que se o forem farão a realidade ser contraditória. É neste ponto que o teísta, principalmente o místico, afirma que há uma experiência universal que os místicos de todas as religiões compartilham. Este tipo de experiência mística é chamado de experiência mística introvertida e é reconhecida pelas seguintes características:

“1. Um estado de consciência desprovido dos seus conteúdos comuns: sensações, imagens, pensamentos, desejos, e por aí em diante. 2. Uma experiência de unidade absoluta, sem distinções ou divisões. 3. Sensação de realidade, de se ter experiência de realidade última. 4. Sentimento de que se tem experiência do divino. 5. Sensação total de paz e felicidade. 6. Intemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo na experiência.” (idem, p. 85)

O que devemos nos perguntar com relação a esse tipo de experiência é se ela é capaz de dar bases racionais para acreditarmos na realidade do divino. Os místicos dizem que, como os místicos de todas as religiões têm o mesmo tipo de experiência mística introvertida, é racional pensá-la como uma percepção genuína da realidade – já que, por exemplo, muitas pessoas terem a percepção de uma serpente conta para que seja racional acreditarmos que a percepção da serpente advém de uma serpente real e não de uma alucinação. Isso forneceria as bases racionais para a crença na existência do divino, seja lá o que for o divino.

O problema com esse argumento é que mesmo a experiência mística introvertida difere de religião para religião; a experiência de união total com a divindade será diferente para um católico e para um seguidor de Kali ou de Brahma. Pode, sim, ser o mesmo tipo de experiência aquela dos místicos introvertidos, mas não precisamos acreditar que é a mesma experiência e nem que a experiência diz respeito a um mesmo objeto. A resposta do místico para isso é dizer que todos os místicos têm a mesma experiência, mas a diferença advém das interpretações que as diferentes religiões fornecem. A experiência de contato com uma realidade una junto com sentimentos de paz, graça e alegria ocorrem, mas a conexão entre a realidade que o místico encontra e o divino não é parte da experiência, é apenas interpretação. Assim, a unanimidade da experiência dos místicos ainda seria um ponto a favor da crença na experiência mística como percepção genuína da realidade, mas não é um ponto a favor da crença de que o divino existe, dado que o mesmo objeto pode causar essas experiências, embora não seja divino.

Rowe (2007) nos mostra a discussão entre Russell e Broad. Russell argumenta contra a experiência mística implicar a existência de um ser divino, dizendo que os místicos produzem estados anômalos do corpo e da mente; o que faz com que as percepções dos místicos sejam provavelmente delusórias, assim como as percepções daqueles sob o efeito de drogas alucinógenas, álcool e semelhantes. A resposta de Broad para isso é dizer que talvez seja necessário que o místico tenha estados anômalos para perceber o que ele chama de aspecto que transcende a realidade física. Assim, encontrar tais aspectos anômalos nos místicos seria exatamente o que deveríamos esperar caso existisse essa realidade – que apenas seria percebida pelo nossa mente em determinadas condições.

Daí, Broad argumenta da seguinte forma:

(1) Há um acordo considerável entre os místicos no que diz respeito à realidade de que têm experiência.
(2) Quando há um acordo considerável entre observadores acerca daquilo de que entendem ter uma experiência, é razoável concluir que as suas experiências são verídicas, a menos que haja uma razão positiva para considerá-las delusórias.
(3) Não há razões positivas para considerá-las delusórias.
(4) Logo, é razoável acreditar que as experiências místicas são verídicas.

Russell pensa que os estados mentais e corporais anômalos vão contra a premissa 3, e Broad pensa que são exatamente esses estados anômalos que esperaríamos caso a realidade do místico existisse – já que para percebê-la (ou senti-la) exigir-se-ia uma mudança em nosso tipo de observação. O impasse aqui é que a premissa 2 pode não se aplicar à experiência mística, enquanto se aplica a casos onde pessoas bêbadas alucinam sapos. Pois para o caso dos sapos, temos como descobrir as razões positivas para falarmos que a experiência é delusória; mas no caso do místico, nunca teríamos.

A saída intermediária sugerida por Rowe é que os não-místicos não têm razões para pensar que as experiências místicas são verídicas e nem para pensar que elas são delusórias, enquanto os místicos têm justificação para o fazer. Donde, ele conclui que, embora possa ser uma boa saída falar que a experiência dos místicos, por ter um caráter universal, é verídica, não há bases para falar que suas interpretações são verdadeiras, e nem menos para falar que entram em contato com qualquer tipo de ser divino pessoal (e muito menos o Deus teísta).

Referências

Rowe, William L. (2007). Introdução à Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Revisão científica de Desidério Murcho. Lisboa: Verbo, 2011.