quinta-feira, 21 de abril de 2011

A crença apropriadamente básica e a crença básico-comprovada de Plantinga

Alvin Plantinga (1981) pensa de modo semelhante a William James sobre a aceitar uma crença sem indícios conclusivos, mas por outros motivos; ele diz que é correto, racional, razoável e adequado acreditar em Deus sem indícios e sem argumentos: quem aceita a crença na existência de Deus sem indícios ainda está em seu direito intelectual de acreditar. Mas para Plantinga “indícios” significa algo bem específico: significa “uma crença que sustenta outra crença”. Ele pensa que “nem todas as nossas crenças racionalmente defendidas podem ser racionais apenas em virtude de se sustentarem em outras crenças que defendemos e que são indícios das primeiras.” O processo de tornar racional uma crença por meio de outra crença racional tem de chegar ao fim. “Tem de haver crenças cuja adoção é racional sem as basearmos em outras crenças que sejam indícios a favor das primeiras” (Murcho, 2009, p. 109). Crenças essas, que são chamadas por Plantinga de “crenças básicas”. Assim, uma crença básica é aquela que não se fundamenta em outra crença, ou seja, é uma crença sem indícios.

Por sua vez, um indício é uma crença racional que sustenta uma crença adequadamente: ele é uma proposição em que se acredita e que sustenta outra proposição. E ele chama de “crença apropriadamente básica” aquela crença que não se fundamenta em outra crença e que é racional adotar, mas se baseia numa situação que dá à pessoa justificação racional para adotá-la, como quando nos baseamos na percepção para sustentar crenças relativas a ela.

Sua tese vai contra a perspectiva indiciarista. A objeção indiciarista consiste em dizer que o crente não cumpriu certo tipo de obrigações morais ou intelectuais, ou que o crente possui algum tipo de imperfeição intelectual. A objeção indiciarista principal é a obrigação com relação a aceitar uma crença não básica apenas com base em indícios suficientes, que o crente não cumpre. Lembrar aqui que o indiciarista já tem uma concepção de quais crenças (ou que tipo de crenças) são básicas. Sua concepção se baseia num fundacionalismo clássico, onde uma crença só é apropriadamente básica para alguém se for auto-evidente ou incorrigível (no fundacionalismo moderno) – ou, no caso do fundacionalismo medieval, auto-evidente ou evidente sensorialmente – para esse alguém.

Plantinga pensa que o fundacionalismo moderno e o medieval são auto-referencialmente incoerentes e devem ser rejeitados. O critério de basicidade do fundacionalismo moderno é “para qualquer proposição A e pessoas S, A é apropriadamente básica para S se, e só se, A é incorrigível para S ou auto-evidente para S”. Tal critério, diz Plantinga, não respeita a si próprio no que diz respeito a ser apropriadamente básico, pois não é auto-evidente e nem incorrigível. E, além disso, Plantinga não vê como o fundacionalista poderia apresentar um argumento a favor desse critério partindo de premissas auto-evidentes. Assim, o critério do fundacionalismo moderno não seria ele mesmo fundado em alguma coisa auto-evidente.

Plantinga acredita que o fundacionalista poderia escolher o critério por tê-lo percebido como verdadeiro e, a partir daí escolher seus exemplos; mas se outros – como a comunidade cristã – não o percebem como verdadeiro, por que deveriam aceitá-lo? Se na minha frente vejo um computador e formo a crença de que há um computador na minha frente, essa crença é apropriadamente básica, pois em certas situações é racional aceitá-la sem que eu tenha outras crenças que a sustentem; mas isso não respeita o critério fundacionalista; donde, ele deve estar errado. Mesmo que façamos como os fundacionalistas e escolhamos um critério, nenhum irá funcionar, diz Plantinga, pois nenhuma “condição esclarecedora necessária e suficiente para a basicidade apropriada se segue de premissas claramente auto-evidentes através de argumentos claramente aceitáveis” (idem, p. 72). Pois escolhemos por indução, diz Plantinga: escolhemos nossos exemplos paradigmáticos de crenças apropriadamente básicas e depois traçamos a distinção – indicando o critério – a partir de uma indução dos mesmos.

Então, o epistemólogo pode começar com, por exemplo, a crença numa Grande Abóbora como exemplo paradigmático de crença básica irracional e a crença em Deus como algo a que se aplicaria o conceito de crença apropriadamente básica a partir dos exemplos paradigmáticos de crenças apropriadamente básicas traçadas pelo epistemólogo para fazer a indução. Para isso, ele teria que argumentar que há uma diferença relevante entre Deus e a Grande Abóbora; o que para Plantinga pode ser o fato de termos uma tendência natural para ver o “toque” de Deus, enquanto não temos esse tendência com relação à Grande Abóbora. Por isso, quem se compromete com a crença de que a crença em Deus é apropriadamente básica, mesmo sem um critério de basicidade pré-estabelecido, não está obrigado a supor que todas ou quase todas as crenças são apropriadamente básicas.

As crenças apropriadamente básicas estão submetidas sempre a condições pessoais: na condição C, S tem justificação para aceitar p como básica. Nessa condição C: (i) algo deve “parecer-me de certa maneira” e também (ii) deve haver ausência de condições que possam fazer tal “parecer-me de certa maneira” ser posto em dúvida. Se puder ser posto em dúvida, então não tenho a justificação para aceitar p como básica. A crença em Deus é apropriadamente básica porque, quando observamos certas coisas, temos uma disposição para acreditá-las como criadas por Deus ou como tendo o “toque” de Deus. Por exemplo, adquirimos a crença de que Deus está presente a partir de quando sentimos que Deus está presente, ou a crença de que Deus me perdoa quando me sinto perdoado de ter feito algo ruim, ou a crença de que Deus criou o mundo quando observo a imensidão do espaço etc. Plantinga pensa que proposições como “Deus me fala”, “Deus criou tudo isso”, “Deus desaprova o que fiz”, “Deus me perdoa”, “há que agradecer a Deus e louvá-lo” são apropriadamente básicas em certas situações. E que a crença na existência de Deus se implica auto-evidentemente dessas proposições. Donde grosso modo a crença em Deus poderia ser dita como apropriadamente básica.

A objeção a isso é que se a crença em Deus é apropriadamente básica (sua aceitação é justificada por uma situação), não poderia também ser apropriadamente básica qualquer crença bizarra que quiséssemos? A resposta de Plantinga é que o fato de ele rejeitar os critérios para a basicidade do fundacionalismo, e não ter outros critérios, não indica que ele não pode falar sobre crenças não básicas e crenças básicas. Pois, por exemplo, uma pessoa que não saiba explicitamente os critérios para um termo ter sentido ainda pode falar sobre termos com sentido e termos sem sentido, tanto quanto uma pessoa pode falar que não pode ser básica a proposição que é a negação de uma sentença auto-evidente (pois esta seria necessariamente falsa), mesmo que ela não tenha os critérios de basicidade.

De modo geral, o que Plantinga acredita é que, por vezes, as pessoas se encontram em situações que geram e tornam racional sua crença de que Deus existe. Essas situações criam crenças apropriadamente básicas, das quais podemos inferir a existência de Deus (ou seja, certas crenças apropriadamente básicas implicam a existência de Deus). Um exemplo de crença apropriadamente básica da qual se infere a existência de Deus é: a crença apropriadamente básica de que se tem a experiência de Deus; dela infere-se a existência de Deus. Mas tal crença só poderá ser apropriadamente básica se a experiência pessoal e a situação a tornarem racional. Para que uma situação torne racional a minha crença X adquirida por uma experiência de X (a minha crença básica X), é necessário: (i) experiência adequada, e (ii) ausência de razões para pensar que a crença é falsa ou que a experiência não aponta suficientemente para a verdade da crença. O exemplo, dado por Plantinga (Murcho, 2009, pp. 64-73), de situação que torna a crença em Deus apropriadamente básica é: K nasceu e foi educado numa comunidade teísta, e acredita nas informações que recebe de sua comunidade sem nenhum indício para isso. A crença em Deus, então, seria básica. E seria racional porque não há boas razões para K pensar que não há Deus ou que sua comunidade não tem justificativas racionais para a crença em Deus. Aqui, então, a crença em Deus seria apropriadamente básica. Mas o interessante aqui é saber se a crença em Deus pode ser “apropriadamente básica para adultos contemporâneos, relativamente sofisticados, que contataram com”: 1) razões a favor da descrença, e “2) a disparidade entre as religiões do mundo no que diz respeito a que crenças religiosas se sustentam racionalmente em experiências religiosas” (idem). Se algum religioso percebe que tanto suas crenças em Deus, quanto as crenças de um hindu em Brahma, são apropriadamente básicas, e pensa que Deus e Brahma são incompatíveis, ela quererá dar argumentos e razões a favor de sua crença.

A princípio, Plantinga aceita que as crenças de outras religiões também são apropriadamente básicas para seus crentes. Mas o problema disso é que defender tal coisa é um prato cheio para o ateísta, pois se todas as religiões têm crenças apropriadamente básicas e se há religiões com crenças inconsistentes entre si, então: ou essas crenças não são apropriadamente básicas, ou esse tipo de crença não pode servir de base para comprovar a existência de nenhum ser.


Uma segunda resposta de Plantinga foi falar que as crenças cristãs estão justificadas para os crentes e também são racionais num sentido mais forte. Ele diz que uma crença é racional se, e só se, estiver comprovada; e uma crença está comprovada se, e só se, “for produzida pelo funcionamento apropriado de uma faculdade cognitiva nas circunstâncias em que essa faculdade foi concebida (por Deus ou pela evolução) para operar eficientemente” (idem, p. 103). As crenças produzidas por tal funcionamento apropriado são as crenças básico-comprovadas, que por definição são racionais e, portanto, apropriadamente básicas.

Assim, Plantinga muda de uma epistemologia internalista para uma epistemologia externalista. A internalista diz que uma pessoa está justificada em ter uma crença quando ela está ciente dos fundamentos que sustentam a crença; tal crença é racional neste caso. A externalista sustenta que a comprovação é uma questão objetiva. Para avançar argumentos a favor dessa nova epistemologia externalista, Plantinga nos diz que há uma faculdade chamada sensus divinitatis, pela qual podemos ter a crença básico-comprovada de que Deus existe, e que é análoga à percepção, dando-nos ciência de Deus de modo imediato e palpável. Tal faculdade é corrompida pelo pecado e é por isso que algumas pessoas não entram e não conseguem entrar em contato com Deus. Assim, o ateísmo é um resultado do defeito no sensus divinitatis; e, como Plantinga define racional em termos de função apropriada, o ateísta não pode ser racional, dado lhe faltar o funcionamento apropriado do sensus divinitatis.

Sobre se tal sensus divinitatis existe, Plantinga fala que muito provavelmente existirá, caso Deus exista, pois é provável que o Deus teísta tenha criado os humanos com alguma capacidade de saber racionalmente que Ele existe. Contudo, tal faculdade muito provavelmente não existirá, caso Deus não exista. “A questão da racionalidade da crença de que Deus existe é inseparável da questão da verdade ou falsidade dessa crença” (Parsons, p. 104). Se Deus existe, muitas pessoas terão crenças básico-comprovadas (conhecimento) da existência de Deus, e estas serão racionais num sentido forte. O sentido forte é quando a crença é “produto de uma faculdade cognitiva operando apropriadamente nas circunstâncias na qual foi concebida para proporcionar crenças verdadeiras” (idem).

A conclusão de Plantinga é que se a crença teísta será muito provavelmente comprovada apenas caso Deus exista, então, para chamar um teísta de irracional, os objetores terão primeiro que avançar argumentos contra a crença de que Deus existe, pois só se ele não existir é que a crença teísta será muito provavelmente não-comprovada. E, da mesma forma, sua tese chega à conclusão inesperada de que para argumentar que a crença em Deus é básico-comprovada, os crentes terão que formular argumentos a favor da existência de Deus; o que, intrigantemente, é contrário à motivação da epistemologia internalista de Plantinga. Mas a maior objeção que se faz a essas conclusões de Plantinga é que o fato de a crença teísta não estar básico-comprovada mostra que provavelmente Deus não existe. E ela não estaria básico-comprovada, caso a maioria das explicações naturalistas sejam cogentes. Conectar a racionalidade da crença teísta com a verdade do teísmo, como o fez Plantinga, é perigoso para o teísmo, pois um argumento contra a racionalidade da crença torna-se um argumento contra a verdade do teísmo.

Referências

Martin, Michael (org.) (2007). Compêndio Cambridge de Ateísmo. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Edições 70, no prelo.

Murcho, Desidério (org.) (2009). Fé, Epistemologia e Virtude: Ensaios de Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, no prelo.

Parsons, Keith (2007). “Alguns Argumentos Ateístas Contemporâneos”, in Martin (2007).

Plantinga, Alvin (1981). “É a Crença em Deus Apropriadamente Básica?” Trad. de Vítor Guerreiro. In Murcho (2009).