Pretendo neste texto apresentar brevemente a crítica platônica às teses quanto ao ser de Heráclito e Parmênides; posteriormente, pretendo expor a Teoria das Idéias de Platão em seus aspectos gnosiológico, ontológico e ético; para, a seguir, indicar a crítica de Heidegger a ontologia e a Platão.
IntroduçãoO pensamento mitológico-poético do ser humano sempre se perguntou sobre a unidade originária dos seres; o que as religiões sempre tentaram responder é “o que é o fundamento do mundo em sua totalidade?”, ou seja, “o que causa a realidade, a ordem e a unidade do mundo?”. Elas tentaram de diversas formas, mas o principal é que todas elas falavam de algo divino (revelado por algum tipo de experiência mística) e da semelhança entre o divino e o humano; o que justificaria a inteligibilidade da physis. A physis é justamente esse mundo do qual se está perguntando: ela é “o fundo de visibilidade de onde provém e a partir de onde se mantém a imposição da presença de todos os seres” (Furtado, J. L. Curso de Ontologia; disciplina de graduação em Filosofia-UFOP, 2009, p. 6).
Com os gregos e, especificamente, com os pré-socráticos, a questão sobre o fundamento passou a ser uma questão trabalhada no domínio da Filosofia, e não mais da experiência mística. A Filosofia visava investigar a verdade só dispondo do logos, passando pelo crivo da razão de outros homens. Eles acreditavam que havia um domínio originário que seria causa das outras coisas sem ser ele mesmo causado, e que ele seria permanente e ordenador. Ordenador porque unificaria a multiplicidade dos entes e permanente porque dele teria que advir a substância da qual as coisas se originam. A esse domínio os pré-socráticos chamavam de arké.
Podemos citar dois grandes pré-socráticos, Heráclito e Parmênides, que tentaram responder a questão da arké. Eles começam um estudo sobre os seres e os não-seres. Ao questionar o que eles são, até que ponto eles são válidos e reais, ponto de divergência entre os dois, o que é, como ocorre e se ocorre o vir-a-ser (isto é, o não-ser tornar-se) eles partem para um estudo mais aprofundado da realidade. Suas investigações partem de um espanto para com relação ao movimento – expresso pelo Paradoxo de Zenão – e de uma tentativa de responder como ele é possível. Acabou-se considerando o logos como a determinação imanente da realidade, sendo real tudo aquilo que pode ser pensado sem contradição e irreal o contraditório. Assim, perceber o movimento e não conseguir racionalizá-lo não é um problema, pois o critério para a realidade não é o sensível, mas sim o racional.
Heráclito dizia que todas as coisas mudam o tempo todo, que tudo flui (pantha rei), e que não há nada que permanece nas coisas; por isso, não podemos obter um conhecimento das coisas que fosse necessário e universal. Ele não acreditava que havia outra realidade além da physis; mas pensava que o real, aquilo que existe, dá-se de forma não-permanente: hora é e logo depois não é mais o que era, segundo as regras do vir-a-ser (devir) da physis, e pensa o logos como a lei da mudança. Parmênides, por sua vez, acredita que as coisas tenham condições de identidade: ele pensa o ser como unidade inerente a todo ente (o ser é uno e o não-ser não é). E, por isso, pensa que há algo de permanente nos seres, pensa que eles têm essências, e que a mutabilidade que percebemos nos entes é apenas ilusão.
A Crítica Platônica e a Teoria das Idéias
Platão, também ao pensar sobre o ser (ou seja, sobre o fundamento sem fundamento daquilo que se manifesta), desenvolve sua própria teoria metafísica, criticando e conciliando ambos Heráclito e Parmênides. Ele afirma que o mundo que entramos em contato através de nossos sentidos é mutável e ilusório, e que a verdadeira realidade é algo de permanente e imutável. Ele afirma que há dois tipos de coisas: aquilo que é sempre o mesmo e não tem geração, e aquilo que tem geração e nunca é o mesmo. Sobre o primeiro, Platão diz que é a idéia. Esta, como agrupa diversos particulares num mesmo conjunto sob um aspecto definidor, é o real, e o mundo sensível é apenas um tosco reflexo desse mundo ideal. Esse real paradigmático – a idéia – é o que fundamenta a existência dos entes e de suas propriedades, e é dito ser a essência dos entes. O conceito, expressão lingüística da idéia e diferente da mesma, agrupa indivíduos de modo a restringir um tipo, por meio de uma característica essencial a cada indivíduo daquele tipo; e se for fundado no ser do ente (a essência do ente), e não em mera convenção, será uma definição imutável e válida para sempre.
“Através da teoria das idéias (eidos) Platão visa o imutável e permanente que constitui o ser do ente de tal modo que garante a validade eterna e a certeza absoluta do discurso humano a ela referida (...) a teoria das idéias vem resolver os problemas de conhecimento (a garantia da verdade dos valores e conceitos em geral), da linguagem (a idealidade das significações), do desejo (a possibilidade de uma satisfação justa e verdadeira) e da lei (possibilidade de um ordenamento jurídico/político conforme a justiça)” (Furtado, J. L. Curso de Ontologia; disciplina de graduação em Filosofia-UFOP, 2009, p. 15).
Assim, as idéias fazem-nos ver a verdadeira face do ente (sua inteligibilidade), e não apenas seus aspectos sensíveis. E, daí, torna-se paradigma para os entes; é aí que a idéia torna-se ideal: o que nos aparece é simples aspecto da verdadeira realidade. Essa separação forte entre o que é e o que aparece modifica a noção de verdade como aletheia, comum aos gregos anteriores a Platão, que era a verdade como o desvelamento da physis. Como o mundo das idéias é o mundo originário da physis, para Platão, a verdade passou a ser vista como adequação entre o adequação do discurso com o que é visto: “a apreensão de uma casa em seu ser é a intuição da idéia universal que lhe corresponde e que constitui a verdadeira aparência e visão da casa” (Furtado, J. L. Curso de Ontologia; disciplina de graduação em Filosofia-UFOP, 2009, p. 16). O verdadeiro é aquilo que a partir de um conjunto de idéias pré-estabelecidas mostra-se ao pensamento como necessariamente verdadeiro. As idéias são aprióricas e não dependem da existência dos entes que participam delas; nós não as abstraímos, nós as intuímos.
Tendo as idéias existência por si próprias, elas podem fundamentar uma correta apresentação do mundo em todos os seus aspectos, sejam eles ontológicos, éticos, estéticos etc. E de fato, a partir da idéia do Bem, as idéias assumem um aspecto normativo-paradigmático importante. Para Platão, é a idéia de Bem (a unidade das idéias de beleza, simetria e verdade) é o que dá a unidade das idéias entre o ser e o dever ser. O Bem faz com que os seres se adéqüem ao modelo: os faz serem como deveriam ser, faz com que as partes em relação mantenham o todo em harmonia. Por isso ele tem uma função paradigmática.
Mas como a teoria do conhecimento de Platão diz que a partir da sensibilidade apenas podemos alcançar opiniões, ele tem de nos dizer como faremos para obter conhecimento; que ele fala que é por meio da intuição intelectual da forma. Platão acredita que por meio do conhecimento das idéias podemos obter conhecimento das essências das coisas, pois nas idéias não há possibilidade de velamento. Isso seria algo como obter o conhecimento da idéia de justiça – saber a definição de justiça – para conseguir saber, para toda a ação, se ela é justa ou não. O que seria obtido através da dialética, onde passamos da pluralidade de opiniões para a unidade da idéia, tentando verificar se o nosso discurso corresponde à realidade, através do embate de posições. A tarefa da Filosofia seria, então, para Platão, conhecer que idéias são (existem) e conhecer o que uma idéia é (essência), passando da aparência ao real, ou seja, do sensível ao inteligível.
Sabendo, então, por exemplo, que podemos saber verdadeiramente se uma ação é correta ou incorreta de acordo com a idéia de justiça, virtude etc (entre outros termos morais), Platão pode sem problemas fundamentar uma teoria ética e política dos ordenamentos sociais; já que, desde sua mocidade, ele já estava direcionado para o pensamento e para a prática política.
Como as idéias são reais e o mundo sensível ilusório, os atos justos que vemos no mundo são apenas aspectos imperfeitos da idéia de justiça. Assim, da mesma forma que a alma pode acessar o mundo das idéias para ver a idéia de “mesa”, assim também pode fazer para ver a idéia de “justiça” e de outros termos morais. E ele pensa que a alma pode realizar tal tarefa por ela ser da mesma imaterialidade que a idéia; e pensa que ela realiza tal coisa através de um deslocamento que realiza na dialética. Assim, ao obter o conhecimento das idéias (estas que se fundamentam na idéia de Bem), teríamos também obtido tanto o conhecimento ético, quanto o ontológico. E a partir desse conhecimento, como o homem naturalmente deseja a virtude, a beleza e a verdade, ele teria um comportamento ético. E a partir dessas idéias éticas, seria possível – como o fez Platão posteriormente – fundamentar uma política em idéias éticas que fossem verdadeiras.
A Crítica de Heidegger
A crítica principal de Heidegger à Ontologia é que ela, principalmente depois de Sócrates, foi se esquecendo da questão do ser, ou seja, foi se esquecendo de que a questão sobre a essência da manifestação daquilo que é ainda é uma questão em aberto. A partir da aceitação de Platão de que o ser é e o não ser não é, a pesquisa ontológica se direcionou por um caminho equivocado, a saber, pensar o ser como se fosse um ente.
Daí, Platão acabou sustentando um conceito de “verdade” como a adequação entre o intelecto (expresso pelo discurso) e a coisa [veritas est adequatio rei et intelectus]. E essa, segundo Heidegger, é uma noção muito diferente da verdade como aletheia, sustentada pelos pré-socráticos. Tal noção, aletheia, era a verdade como aquilo do ser que se desvela, era um atributo de uma coisa (uma coisa poderia ser verdadeira ou ser ilusória/falsa). Com Platão, a verdade torna-se um atributo das idéias – ou seja, torna-se apenas um atributo do que é representável pelo intelecto humano. Assim, afirma Heidegger, Platão toma uma postura idealista ao fazer a verdade ser atributo de idéias, pois estaria falando que ser é pensar e que a verdadeira realidade é o pensamento. E isso faz com que pensemos a realidade sem levar em conta o devir e a inserção das próprias coisas que, através da consciência ou alma, entificamos no mundo. Algumas coisas como o movimento não podiam ser racionalizadas, mas eram percebidas no mundo; se o critério do real fosse o logos, não poderíamos falar de algo que percebemos que existe na realidade. Além disso, ao começarmos a trabalhar com as idéias, nessa perspectiva entificante, perdemos aquilo que é o ser.
O ser, ou seja, o fundamento da manifestação do ente, não é ele próprio uma manifestação do ente. Na verdade ele é a parte que se esconde do ente, e é fundamento sem fundamento da manifestação do ente. E tal fundamento não tem nenhuma necessidade de ser algum tipo de ente; ele é apenas algo no ente que permite que o ente exista no nosso horizonte de visibilidade. Heidegger acreditar que ser é aparecer, e o aparecer não é nada parecido com um ente – até a forma lingüística é um verbo, e não um substantivo.
Por isso, Heidegger critica Platão: ele tornou a verdade um atributo das idéias, removendo as coisas existentes e não racionalizadas do mundo como mera ilusão, e fez com que a Filosofia se afastasse do problema do ser, por assumir uma perspectiva entificante para com relação ao ser. Isso tudo, diz-nos Heidegger, além de nos afastar da questão ontológica do ser, fez-nos pensar os entes como afastados de sua mundianidade e como submetidos a regras inadequadas. Entes, em sua mundianidade, são e não-são: a modificação está presente no mundo. A conclusão que ele chega é que a Filosofia deve seguir a fenomenologia como método (partir de como o mundo se apresenta para nós e abordá-lo como um fenômeno que se nos apresenta), a ontologia como conteúdo (perguntar-se sobre o ser enquanto ser, ou seja, o ser sendo), e ter atenção com as confusões platônicas (e eleatas) para não fugir do problema do ser.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, vol. 1. Segunda edição revisada e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FURTADO, José Luiz. Curso de Ontologia. Disciplina de Graduação em Filosofia-UFOP, 2009.
GUIGNON, Charles. The Cambridge Companion to Heidegger. New York: Cambridge University Press, 1993.
PESSANHA, José A. M. Os Pensadores, vol. Platão; tr. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.