1.1 Lógica Proposicional
Argumentar é um método tanto da filosofia, como das ciências. Na verdade, a argumentação não se restringe a essas áreas. Ela se encontra em muitas de nossas práticas: desde numa conversa informal, até na escolha de uma teoria em detrimento de outra. Portanto, faz-se essencial que tenhamos meios de verificar se estamos argumentando corretamente ou incorretamente. Sem isso, não teríamos maneiras de saber se o quê pretendemos concluir se segue ou não de nossas premissas; e, portanto, nossas práticas baseadas na argumentação seriam sem sentido.
Por muito tempo, a verificação da validade de nossos raciocínios (argumentativos) deu-se de modo intuitivo. Mas com o passar do tempo e estudo, descobrimos maneiras de fazê-la mais rigorosamente; e essas foram chamadas “lógicas”. Para dar conta de entender a relação que ocorre entre as proposições num argumento, desenvolvemos uma lógica proposicional. Nela distinguimos as operações que podem manter a verdade de nossas proposições daquelas que não o podem.
Contudo, essa lógica só nos permitia compreender alguns tipos de argumentos, pois sua formalização toma as proposições inteiras como letras e atenta para os operadores verofuncionais que as ligam. Desta forma:
Se Maria foi à praia, então ela está queimada. P → Q
Maria foi à praia. P _
Logo, ela está queimada. Q
O problema desse tipo de lógica é que ela não é capaz de formalizar certos argumentos de modo a nos indicar a sua validade, quando esta depende de o quê ocorre formalmente no interior das proposições. Se nos atentarmos para o argumento a seguir, entenderemos o motivo dessa incapacidade:
Todos os caliobeclos são monstruosos. P
Nilton é um caliobeclo. Q
Logo, Nilton é monstruoso. R
O motivo é que, neste caso, embora a validade desse argumento ainda se encontre na forma (pois não sabemos o que é um “caliobeclo”), não é somente a relação entre proposições simples que nos indica a validade; mas também algo dentro dessas proposições.
1.2 Lógica de Predicados
Assim, Friedrich Ludwig Gottlob Frege, grande lógico, filósofo e matemático do final do século XIX e início do século XX, apresentou novas bases para a verificação de validade das proposições. Ele fez com que estas pudessem ser divididas em duas partes: uma parte incompleta e outra que a completa, chamadas por ele de função e argumento, respectivamente. Dessa forma, foi-nos possível entender as relações formais que não podiam ser capturadas pela lógica proposicional. Isto se deu como mostra o exemplo seguinte:
“José é um herói de guerra”.
“ é um herói de guerra” (função ou predicado)
“José” (argumento ou termo referencial)
Aqui nem o predicado nem o termo referencial são verdadeiros ou falsos. A sentença só se torna passível de ser verdadeira ou falsa quando o predicado é completado. E dependendo de que termo a completar, ela poderá ter um valor de verdade ou o outro. No caso, “José é um herói de guerra” será verdadeira, se José for um herói de guerra; e falsa, se ele não o for. Se o caso fosse outro, e estivéssemos falando de Pedro, faríamos o mesmo processo de nos questionar se Pedro é um herói de guerra, gerando, da mesma forma, um dos dois valores de verdade. Um ponto de observação importante, indicado por Strawson, é que o valor de verdade é apenas gerado, se estivermos fazendo uma asserção. As sentenças analisadas pela lógica são sempre consideradas como se uma determinada pessoa estivesse fazendo uma asserção e, portanto, são sempre ou verdadeiras ou falsas.
Conseguimos, então, uma maneira de adentrar no interior das proposições simples. Percebemos que elas são formadas por: um termo usado para tentar fazer referência a um objeto[1] e o predicado que lhe atribuímos. Dessa forma, “José é um herói de guerra” pôde ser formalizado de uma maneira diferente de como era até então, a saber, “Hj”; onde “H” representa o predicado “ser um herói de guerra” e “j” representa o objeto “José” (que é a pessoa que estamos tentando nos referir quando usamos o nome “José”). A letra maiúscula sempre representará o predicado e a minúscula representará o objeto que queremos fazer referência.
Se quisermos formalizar somente o predicado, a convenção para isso não seria “__ é um herói de guerra”, pois isso seria difícil de comunicar oralmente; mas antes “x é um herói de guerra” (x, y, z foram convencionadas para representar essas variáveis de objeto), ou mais formalmente, “Hx”. Poder-se-ia erroneamente pensar que “Hx” representa “algo é um herói de guerra”, mas este não é o caso; “Hx” representa apenas o predicado “__ é um herói de guerra” 'esperando' para ser completado. Para indicarmos como formalizar esse “algo”, teremos que entrar em outro tópico e falar sobre quantificadores.
1.3 Quantificadores
Os quantificadores são termos que, assim como os termos referenciais, podem ser usados para completar predicados. Mas diferem destes de um certo modo, a saber, eles indicam apenas a quantidade de elementos de um certo conjunto a que se aplica o predicado, e não o elemento específico (o que é feito pelo termo referencial, ou melhor, pelo nome). Eles são três: “todos”, “nenhum” e “algum” (e seus semelhantes, como: “tudo”, “nada”, “algo” etc.); que indicam respectivamente que o predicado se aplica a todos os elementos de um conjunto, a nenhum elemento do conjunto ou a um número indeterminado de elementos do conjunto. Chamaremos o conjunto ao qual o predicado se aplica de domínio de quantificação.
Dos quantificadores só formalizamos dois deles: o “todos” e o “algum”; pois o “nenhum” pode ser formalizado por meio dos outros dois. O “todos”, quando completa o predicado, forma uma sentença universal (que se aplica a todos os membros do domínio) e, por isso, chamado de quantificador universal; e seu símbolo é “Ʉ”. O “algum” tem a propriedade de asserir a existência de pelo menos um objeto do domínio ao qual o predicado se aplica e, por isso, é chamado de quantificador existencial; e seu símbolo é “Ǝ”. A formalização de uma sentença simples completa, onde ocorra esses quantificadores, pode ser exemplificada como se segue:
“Todos os marcianos são caliobeclos.”
Usando a seguinte interpretação:
Mx: x é um marciano
Cx: x é um caliobeclo
e o domínio sendo o conjunto dos marcianos, a formalização e significado lógico ficariam:
Ʉx (Mx → Cx)
Para todo x, se x é um marciano,
então x é um caliobeclo.
então x é um caliobeclo.
Usando a mesma interpretação e domínio, para a sentença
“Alguns marcianos são caliobeclos.”
sua formalização e significado lógico seriam:
Ǝx (Mx Λ Cx)
Existe [pelo menos] um x, tal que
x é um marciano e x é um caliobeclo.
x é um marciano e x é um caliobeclo.
E, novamente usando a mesma interpretação e domínio, a sentença
“Nenhum marciano é caliobeclo.”
poderia ser formalizada por meio do quantificador existencial ou do quantificador universal, deste modo:
¬ Ǝx (Mx Λ Cx)
Não existe x, tal que x é um marciano
e x é um caliobeclo.
e x é um caliobeclo.
ou
Ʉx (Mx → ¬ Cx)
Para todo x, se x é um marciano,
então ele não é um caliobeclo.
então ele não é um caliobeclo.
Assim, tendo em mãos esses instrumentos lógicos (a formalização predicativa, a linguagem quantificada (LQ) e os operadores verofuncionais[2]), é possível formalizar todos os tipos de proposições que têm apenas uma variável de objeto, desde as mais simples às mais complexas, diferente de quando tínhamos apenas a lógica proposicional. Desse modo, estamos prontos agora para adentrar o tema principal deste artigo: os predicados relacionais.
2 PREDICADOS RELACIONAIS
2.1 Aridade (Predicados n-ários)
Até agora falamos apenas de predicados que têm apenas uma variável de objeto, ou seja, de predicados unários. O número dessas variáveis que está contida em um determinado predicado indica qual a aridade deste último: tendo uma, chama-se unário; tendo duas, chama-se binário; tendo três, chama-se ternário; e assim por diante. Ou seja, se o predicado tem n variáveis de objeto, ele é considerado como um predicado n-ário. Mas como é muito rara a utilização de predicados de aridade igual ou maior que quatro, restringiremos nossa explicação aos predicados ternários ou de aridade inferior.
Os predicados unários já foram vistos e suas sentenças são do tipo “x é um herói de guerra”. Dessa forma, aqui, trataremos dos outros tipos. Os binários e os ternários são predicados que estabelecem relações entre duas e três variáveis de objeto, quando observamos a frase aberta (ou seja: o predicado, a sentença incompleta). Contudo, não é necessário que variáveis diferentes façam referência a objetos diferentes; o quê não ocorre em frases abertas com variáveis iguais, estas variáveis devem fazer referência sempre ao mesmo objeto. A seguir, alguns exemplos de predicados relacionais:
Frase Aberta | Formalização | Aridade | Frase Fechada (Frase Completa) |
x gosta de y | Gxy | binário | Nilton gosta de Maria Nilton gosta de Nilton |
x está entre y e z | Exyz | ternário | Oxford está entre Londres e Bristol[3] |
Vale ressaltar que a ordem em que são colocadas as variáveis de objeto (ou as letras representativas dos nomes) é importante. Pois o fato de Nilton gostar de Maria não é o mesmo fato que Maria gostar de Nilton, e nem Oxford estar entre Londres e Bristol é o mesmo que qualquer outra combinação com esses nomes e predicado. Se quiséssemos formalizar a asserção “Maria gosta de Nilton” ou “Londres está entre Bristol e Oxford” (caso seguíssemos a mesma interpretação implicitamente sugerida pela tabela acima), teríamos que escrever: Gyx ou Eyzx.
Com isso, conseguimos explicar como se dão as sentenças sem nenhuma quantificação. Mas ainda é preciso explicar como os quantificadores funcionam nos predicados relacionais.
2.2 Quantificadores
Os quantificadores têm um efeito bem interessante, e em comum com os nomes, sobre a aridade dos predicados: quando aqueles ocorrem, esta diminui. Se temos o predicado binário “x gosta de y”, ao substituirmos, por exemplo, o “x” pelo quantificador existencial ou o universal, assim:
Todas as pessoas gostam de y
ou
Existe pelo menos uma pessoa que gosta de y
podemos perceber que sobra menos um espaço vazio para ser preenchido, ou seja, que este predicado se torna unário. O mesmo ocorreria com a aridade, se a substituição fosse por um nome, como em: “Nilton gosta de y”. Ou poderíamos diminuir mais ainda a aridade, formando frases como “Todas as pessoas gostam de Nilton”, “Todas as pessoas gostam de algumas pessoas” e semelhantes; o quê nos levaria a uma aridade zero, ou seja, a uma frase fechada. Sentenças como “Todas as pessoas gostam de algumas pessoas” nos fazem pensar em como devemos utilizar os quantificadores, quando só eles completam um predicado binário ou superior.
Quando temos somente quantificadores de um mesmo tipo, sua ordem não é importante, ou melhor, nesse caso, a ordem não modifica o sentido pretendido; como podemos ver a seguir:
Ǝx Ǝy Gxy Existe um x e existe um y, tal que x gosta de y.
Ǝy Ǝx Gxy Existe um y e existe um x, tal que x gosta de y.
Ʉx Ʉy Gxy Para todo x e para todo y, x gosta de y.
Ʉy Ʉx Gxy Para todo y e para todo x, x gosta de y.
Entretanto, o mesmo não ocorre, quando usamos quantificadores de tipos diferentes. Para explicitar o motivo disso, devemos agora falar sobre o âmbito dos quantificadores.
2.3 Âmbito
A razão da ordem ser importante, quando utilizamos quantificadores diferentes, é melhor percebida, se atentarmos para os predicados [a princípio] binários que são completados por apenas um quantificador e que mantém ainda um espaço vazio. Por exemplo, Ʉx Gxy, se tomarmos a interpretação que viemos usando até agora, não é uma frase fechada, representa somente um predicado, ou melhor, uma atribuição de propriedade: a propriedade de ser gostado por todas as pessoas. Seguindo o mesmo princípio: Ʉy Gxy representa a propriedade de gostar de todas as pessoas, Ǝx Gxy representa a propriedade de ser gostado por alguém e Ǝy Gxy representa a propriedade de gostar de alguém.
Quando acrescentamos outro tipo de quantificador a qualquer uma das predicações citadas, devemos o colocar à sua esquerda. O novo quantificador representará a quantos do domínio está sendo aplicado o predicado quantificado. Portanto, dizer
Ʉx Ǝy Gxy
Para todo (para qualquer) x existe um y, tal que x gosta de y.
ou dizer
Ǝy Ʉx Gxy
Existe um y e para todo (para qualquer) x, x gosta de y.
fará diferença, pois respectivamente estaríamos afirmando algo como:
Qualquer pessoa gosta de alguém.
e
Existe alguém de quem todas as pessoas gostam.
Assim, podemos perceber que Ǝy Ʉx Gxy implica Ʉx Ǝy Gxy, mas a recíproca não é verdadeira. Isso é o quê nos faz indicar que uma mudança no âmbito dos quantificadores (se o quantificador se aplica só a Gxy, ou se se aplica a Ʉx Gxy / Ǝy Gxy) causa uma mudança no sentido da frase, caso eles não sejam do mesmo tipo.
Com a negação ocorre o mesmo: ela tanto pode ser aplicada a frases abertas, quanto a frases fechadas, e uma mudança em seu âmbito causa uma mudança no sentido da frase.
2.3.1 Ambigüidade de Âmbito
Essa diversidade de possibilidades de mudar o âmbito da negação ou dos quantificadores está presente também em nossa linguagem cotidiana (português). Contudo, como em português não conversamos frases formalizadas, volta e meia nos deparamos com ambigüidades de âmbito. Ou seja: frente a algumas sentenças em português, não sabemos exatamente o quê elas querem dizer; pensamos que elas podem significar coisas diferentes, pois muitas vezes o âmbito do quantificador não está claro. O quê é sanado pela LQ (linguagem quantificada). Por exemplo, se tomarmos a frase
“Algumas crianças são maltratadas todos os dias”
ela poderá querer dizer: que (1) “para qualquer dia levado em conta, pelo menos uma criança é maltratada nesse dia” ou que (2) “existe pelo menos uma determinada criança que, em qualquer dia que levemos em conta, ela é maltratada”.
Se usarmos a interpretação seguinte:
Cx: x é uma criança
Dx: x é um dia
Mxy: x é maltratada em y
Domínio: Conjunto das crianças e Conjunto dos dias
poderemos passar essa frase para a LQ e resolver essa ambigüidade, formalizando cada sentido de modo diferente; da maneira como exporemos abaixo:
(1) Ʉx (Dx → Ǝy (Cy Λ Myx))
Para todo x, se x é um dia, então existe pelo menos um y, tal que y é uma criança e y é maltratada no dia x.
(2) Ǝy (Cy Λ Ʉx (Dx → Myx))
Existe pelo menos um determinado y, tal que y é uma criança e para todo x, se x é um dia, então y é maltratada no dia x.
3 CONCLUSÃO
Em resumo: começamos este texto mostrando qual é a incapacidade da lógica proposicional, a saber, a impossibilidade de formalizarmos certos raciocínios (argumentativos); o quê tinha como conseqüência o fato de não conseguirmos expor a estrutura formal interna das proposições nem entender exatamente o motivo desses raciocínios serem válidos.
Posteriormente passamos a explicar de modo geral como se organiza a lógica de predicados, indicando suas partes e como ela é formalizada. Para que ela pudesse formalizar todos os tipos de proposições, tivemos que explicar também o que são quantificadores e como eles se aplicam aos predicados.
Isso nos deu a bagagem suficiente para podermos introduzir o assunto tema: a formalização de predicados relacionais. Iniciamos falando da aridade dos predicados e da necessidade da ordem das variáveis de objeto num predicado binário ou superior.
Então, passamos a mostrar como esses predicados relacionais são formalizados, tanto com, quanto sem quantificadores. Isso nos levou a explicar a diferença de âmbito dos quantificadores (e da negação) e qual a sua conseqüência, nos vários casos examinados, para o sentido da frase, seja ela aberta ou fechada.
Finalmente, ao comparar a formalização e sentenças em linguagem comum, notamos que o português por vezes gera ambigüidades, que podem ser solucionadas, se passarmos o quê queremos dizer para a linguagem quantificada.
Dessa forma, tentamos mostrar como formalizar predicados relacionais de frases abertas e fechadas na linguagem quantificada da lógica de predicados.
[1] “Objeto” aqui deve ser entendido como em contraposição à substância, no sentido de que objeto é qualquer coisa contável, enquanto a substância não o é. Exemplificando: enquanto “um cubo de gelo” é um objeto, “o gelo” é uma substância.
[2] Não explicaremos o uso desses operadores neste ensaio, pois o tornaria muito longo. Esperamos que isso já seja sabido.