terça-feira, 20 de outubro de 2020

 

Teoria geral da reunião de departamento,

 

seguida de três razões contrárias à paridade

 

Rogério P. Severo (Dept. Filosofia, UFRGS)

Professores universitários – e intelectuais em geral – seguidamente carecem daquilo que é o pão nosso de cada dia das pessoas menos afeitas a teorizações. Falo, é claro, do senso de realidade, aquele sentimento que nos leva a suspeitar de perfeições abstratas e elege como guia para a vida o bom senso e a experiência passada. Isso obviamante não é, por si só, um demérito. Afinal, não se espera de intelectuais que saibam manusear alicates, assim como não se espera de açougueiros que leiam Aristóteles. É natural que assim seja. Mas o que é natural vem sempre em graus. E o grau mínimo do senso de realidade em nosso amigo intectual são as reuniões de departamento. Em nenhum outro lugar a realidade é posta entre parênteses de modo tão hermeticamente eficaz. O que poderia impedi-lo? A criação científica e artística exige mesmo essa liberdade de imaginação. Mas o resultado disso é tanto o avanço das ciências e das artes quanto das fantasias. A reunião de departamento é o lugar natural da fantasia intelectualista. Lá, nada precisa ser testado, tudo pode ser decidido a priori, todas as opiniões, mesmo as falsas, podem ser livremente defendidas com argumentos sofisticados. A meta de uma reunião de departamento não é jamais a de tomar uma decisão, mas a de decidir sobre o que será decidido. Como tampouco haverá acordo sobre isso, passa-se à criação de comissões, que elaborarão relatórios inconclusivos que ninguém lerá, mas sobre os quais todos se pronunciarão longamente em ânimos exaltados, intercalados por manifestações de desânimo contagiante.

Vejamos um exemplo concreto. Na semana passada, o instituto onde trabalho reuniu-se para decidir sobre o modo de decisão sobre quem será o próximo diretor. Dado que provavelmente só haverá um candidato, alguém poderia perguntar se havia mesmo necessidade de decidir sobre o modo de decisão, dado que não haveria nada a ser decidido. Com um só candidato, qualquer método de decisão produz o mesmo resultado, não é? Por que não resolver esse assunto pragmaticamente? Esse, claro, seria o raciocínio do bom senso. Mas o intelectual não pensa assim. Ele considera que mais importante são os princípios. Queremos democracia e igualdade, dizem todos, em coro! Precisamos incluir os funcionários e estudantes, eles também contribuem! – platitudes grandiloquentes e tão substanciais quanto o “Queremos a paz mundial!” na boca beldades em concursos de miss.

Então segue o baile. Uma comissão é criada para longamente debater e decidir sobre os métodos mais adequados de decisão. Atendendo a pleitos de funcionários e estudantes, a comissão propõe uma consulta paritária à comunidade (um terço de votos, respectivamente, para professores, funcionários e estudantes). Isso é mais justo e igualitário!, diz a comissão. Mas, e a realidade?, perguntam alguns, desavisados. E as leis federais que proíbem consultas formais paritárias? Ora, responde a comissão, a Constituição nos garante autonomia! Antes que alguém consiga informar aos presentes que a Constituição também é uma lei federal, as portas da Disneylândia acadêmica se abrem e todos entram na fila do parque de diversões. Uns argumentam que o procedimento é informal, sem valor legal, mas se apressam a redigir um Edital público, tal como manda a lei. Outros argumentam que a lei precisa ser interpretada, sem perceberem que já foi, pelos procuradores da universidade. Outros, ainda, argumentam que a paridade será legal depois que o STF julgar o assunto – vamos nos antecipar!, vamos aplicar a lei futura, aquela que ainda não existe!, sugerem alguns. Por fim, e para acabar com todos os argumentos, alguém puxa da manga a cartada derradeira: nem toda lei é legítima! Evocam-se então casos históricos de leis ditatoriais, nazistas e racistas, a que ninguém precisa moralmente obedecer. E conclui-se que a paridade é legítima, mesmo que não seja legal.

O senso de realidade, a essas alturas já devidamente calado, retira-se da reunião. Afinal, como dizia o Barão de Itararé, donde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada. E a maioria então livremente decide que a decisão sobre como decidir quem será o próximo diretor será um processo justo, igualitário e democrático que viola as leis de nosso país, afirma a autonomia universitária garantida pelas leis de nosso país e permite que o candidato único ao cargo tenha a legitimidade a ele conferida pelo subgrupo que o elegeu, dentro da universidade.

Embora o tom adotado acima seja jocoso, o que descrevo é real. Debates desse tipo vêm acontecendo nas universidades públicas há décadas. Como a proposta de paridade eleitoral para a escolha de reitores e diretores universitários deriva de uma concepção distorcida tanto do que é uma universidade pública quanto do que é um estado democrático e de direito, concluo apresentando brevemente as três razões gerais pelas quais a rejeito.

1. A ideia de que professores, estudantes e funcionários contribuem em igual medida para os fins da universidade é fantasiosa. As metas das universidades públicas estão fixadas na Constituição: ensino, pesquisa e extensão. Quase todas as aulas, pesquisas e atividades de extensão são coordenadas por professores. Quase toda produção científica decorre do trabalho de professores. Então, o bom senso manda que recaia sobre eles uma responsabilidade maior no que diz respeito à gestão universitária. Apenas com base em princípios abstratos de igualdade, sem base na realidade, isso poderia ser negado. Dizer que estudantes, funcionários e professores estão em pé de igualdade democrática dentro da universidade é uma fantasia da Disneylândia acadêmica. Universidades não são sociedades políticas, instituídas por pares, em que a opinião de todos deve valer por igual nem são repúblicas soberanas que criam suas próprias leis e metas. O que mais importa na universidade é o avanço e a excelência do ensino, da pesquisa e da extensão, assuntos a respeito dos quais os professores têm mais experiência e mais conhecimento que estudantes e funcionários. A meta da universidade não é tampouco a de promover justiça social nem pode ser guiada por esse valor. Essa é uma tarefa para o Estado brasileiro como um todo e seus representantes democraticamente eleitos. A universidade só pode contribuir para esse fim indiretamente, elaborando teorias e análises verdadeiras e confiáveis da realidade, que possam ser usadas por agentes públicos de todas as posições e ideologias políticas. As universidades públicas estão a serviço da sociedade como um todo e não dos seus membros internos. Não cabe estes decidir sobre as metas da universidade nem conceder a si próprios um estatuto que não têm, do mesmo modo que não cabe ao Judiciário elaborar leis nem aos deputados governar. Estudantes e funcionários têm funções importantes e merecem ser ouvidos sempre, mas não cabe a eles a responsabilidade principal pela gestão universitária.

2. Temos uma lei federal (9394) que regula esse assunto desde 1996. Ela estabelece (art. 56, parágrafo único) que 70% dos votos em escolhas de dirigentes universitários cabem aos professores. As escolhas paritárias violam essa lei. Para evitar a ilegalidade explícita, algumas universidades vêm promovendo consultas informais, sem valor legal, que em seguida são referendadas pelos respectivos conselhos universitários. Essas consultas informais são geralmente organizadas por sindicatos de servidores e diretórios estudantis. São os equivalentes universitários do caixa dois contábil, artimanhas para fazer exatamente aquilo que a lei proíbe. O argumento é que a paridade seria mais democrática. Penso que não. A democracia, tal como a temos nas sociedades modernas, é um regime de leis. Não cabe aos indivíduos decidir que leis seguir. O respeito às regras do jogo é um princípio básico da democracia e do estado de direito. Os procedimentos de escolha paritária de reitores e diretores, no contexto da legislação atual, contradizem esse princípio democrático básico. O princípio constitucional da autonomia das universidades públicas não dá a elas poder para criar suas próprias leis. Universidades não são repúblicas soberanas. Ao contrário, são entidades públicas, criadas por leis e sujeitas a elas. A autonomia que têm só vale nos limites da lei.

3. Na prática, a paridade torna os processos de escolha de diretores e reitores uma disputa entre segmentos corporativos. Cada segmento escolhe o candidato que mais parece atender aos seus interesses. O resultado é que a pessoa eleita fica necessariamente comprometida com os interesses dos grupos corporativos que a elegeram. No entanto, seguidamente interesses corporativos não estão alinhados ao que é do interesse da universidade (ensino, pesquisa, extensão). O método de escolha paritária necessariamente coloca em segundo plano o ensino, a pesquisa e a extensão. Na UFSM, onde lecionei por sete anos, o reitor eleito em votação paritária em 2013 recebeu o voto majoritário de funcionários e estudantes, mas perdeu entre os professores. O motivo principal da sua vitória entre os funcionários foi a promessa de que não iria implantar o ponto eletrônico. Passada a eleição, o ministério público e a justiça exigiram a implantação. O reitor eleito então disse que o assunto estava fora de suas mãos e implantou o ponto eletrônico. Esse é o produto típico das votações paritárias. Não são as preocupações com o ensino, a pesquisa e a extensão que elegem os reitores, mas as reivindicações corporativas. Muitos outros exemplos desse mesmo tipo podem ser dados. Quem fica em primeiro plano são os representantes dos sindicatos e agremiações estudantis, que deixam de ser fiscais externos ao processo e transformam-se nos agentes principais – o que explica, aliás, por que esse tipo de proposta geralmente é defendida por entidades de classe.

Alguns professores, não contentes com a paridade, propõem ainda o voto universal. Nesse caso, não haveria distinção alguma entre os votos de professores, funcionários e estudantes. Essa proposta faz da universidade uma grande assembleia. Como o número de estudantes é vastamente maior que o de professores e funcionários, isso implica que na prática 10 ou 20% dos estudantes podem sozinhos decidir uma eleição, à revelia do que pensam seus professores. É uma inversão de valores, se não da própria universidade. Alguém seriamente acredita que algo assim pode funcionar? Há algum caso concreto no passado em que isso tenha sido implantado e funcionado, mesmo em escala reduzida? Penso que não apenas é uma proposta irrealista e ilegal, mas um convite ao populismo e ao proselitismo, exatamente o que não se quer numa instituição voltada para a busca da verdade. 

Ainda sobre esse assunto, recomendo esta excelente análise pelo prof. André Marenco, da UFRGS (ver aqui).