domingo, 30 de setembro de 2018

Prometeu Inexplicável



Prometeu Inexplicável
Luiz Maurício B. R. Menezes

Continuando a nossa jornada através dos textos de Prometeu, trataremos aqui sobre o “Prometeu” de Franz Kafka. Antes propriamente de esmiuçarmos seu trabalho, colocaremos o fragmento por inteiro abaixo:


Sobre Prometeu dão notícia quatro lendas: Segundo a primeira, ele foi acorrentado no Cáucaso porque havia traído os deuses aos homens, e os deuses remeteram águias que devoravam seu fígado que crescia sem parar. De acordo com a segunda, Prometeu, por causa da dor causada pelos bicos que o picavam, comprimiu-se cada vez mais fundo nas rochas até se confundir com elas. Segundo a terceira, no decorrer dos milênios sua traição foi esquecida, os deuses se esqueceram, as águias se esqueceram, ele próprio se esqueceu. Segundo a quarta, todos se cansaram do que havia se tornado sem fundamento. Os deuses se cansaram, as águias se cansaram, a ferida, cansada, fechou-se. Restou a cadeia inexplicável de rochas. A lenda tenta explicar o inexplicável. Uma vez que emerge de um fundo de verdade, ela precisa terminar de novo no que não tem explicação. (Kafka. Prometeu. Tradução de Modesto Carone, 2002)

O mito que explica algo não é capaz de explicar a si mesmo. O Prometeu acorrentado é um mito sobre a humanidade, pois trata do Titã que, para preservar a vida humana, roubou o fogo e as artes dos deuses para dá-los aos homens. Devido a isso, foi punido por Zeus ao eterno cárcere nas montanhas do Cáucaso. A explicação é apenas a simplificação de uma relação complexa do que se tenta entender através das diversas leituras possíveis do mito de Prometeu. Mas o que não se explica é o próprio Prometeu. Figura enigmática, mítica e primordial da cultura grega, acabou ganhando diversas faces entre aqueles que o leram e o interpretaram. No “Prometeu” de Kafka, podemos ver o absurdo do próprio ‘ser Prometeu’ em quatro versões diferentes. Na primeira, temos a versão tradicional sobre sua prisão e a águia que devorava todos os dias o seu fígado; na segunda, a desaparição do Titã junto as rochas que o aprisionavam; na terceira, o esquecimento profundo do ser que acaba por esquecer-se; e, na quarta, o cansaço do mito transformado na própria matéria das “inexplicáveis rochas”. Essa é uma colocação significativa da narrativa de Kafka, pois ao falar que o mito “emerge de um fundo de verdade”, Kafka acaba por admitir “que [o mito] não tem explicação”. E isso é um ponto fundamental de todo mito: são inexplicáveis, isto é, ou se acredita ou não se acredita em um mito, não há meio termo significativo o qual poderíamos nos remeter.
Prisão, desaparecimento, esquecimento e cansaço. Quatro versões de muitas que poderíamos ter. Todas essas múltiplas versões exercem uma visão de conjunto sobre o sentido do mito prometeico que nos abre as diversas possibilidades de um mundo inexplicável em si mesmo. Por outro lado, podemos atribuir a falta de explicação à sua condição de verdade, pois, uma vez que o mito contado tem um “fundo de verdade”, é por isso mesmo que ele não pode ser explicado. Que fosse todo ele falso e, possivelmente, teríamos uma explicação aceitável, mas como possui alguma verdade, é justamente por essa verdade que distante está de todo o resto, o que faz do mito ele mesmo inatingível, indizível e inexplicável. Porém o que foge da explicação é rico em interpretação, e nisso o mito de Prometeu permanece vivo em nossa própria existência.


[*] Texto originalmente publicado na Gazeta do Amapá em 30/09/2018.