quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Contos de Kolimá

 

Contos de Kolimá

Em Kolimá não há liberdade

(Varlam Chalámov) 

Os “Contos de Kolimá” do russo Varlam Chalámov (1907-1982) conta a sua real história nos campos soviéticos de prisioneiros na época do governo de Stálin, onde passou 17 anos preso. Nesse tempo, Chalámov percebeu a crueza da vida humana em todo o seu horror. Kolimá é uma região no extremo norte da Sibéria e conhecida por ter 10 meses de inverno durante o ano, chegando a temperaturas abaixo de 60 graus Célsius. Em Kolimá, segundo Chalámov, podia-se medir o frio pelo cuspe: caso ele congelasse no ar, significava que a temperatura já tinha atingido os 55 negativos. Foi nesse inferno gelado que Chalámov teve a sua pior experiência e que ele relata através de seus contos.

Os contos foram escritos entre as décadas de 1950 e 1970, mas a tradução só chegou ao Brasil a partir de 2015 pela Editora 34. Divididos em 6 volumes (1. Contos de Kolimá [2015], 2. A Margem Esquerda [2016], 3. O Artista da Pá [2016], 4. Ensaios sobre o Mundo do Crime [2016], 5. A Ressurreição do Lariço [2016], 6. A Luva ou KR-2 [2019]) e com quase 2 mil páginas no total, os contos narram sem ordem cronológica o dia a dia nos Gulag soviéticos e as injustiças lá sofridas. Chalámov teve que enfrentar o frio, a fome, a violência física e o desgaste intelectual no mais alto nível no período em que passou em Kolimá. Chalámov nos mostra com seus contos que somente a partir desse estado bruto e profundo da humanidade é que podemos falar em ‘moral’ (ou na sua total ausência). Pois fora isso, toda moral é ilusória e sem a experiência devida do que os humanos são realmente capazes de fazer diante de severas condições vida. Isso fica bastante claro quando ele escreveu sobre a bandidagem, os chamados blatares:

 

"A falsidade dos blatares não tem limites, pois em relação aos fráieres (e fráier é todo aquele que não é bandido) não há outra lei que não seja a da enganação – por qualquer meio: a falsa lisonja, a calúnia, a promessa..." E, conclui Chalámov, "num blatar não há nada de humano". (2016, v.4, p. 24-29)

 

A obra é um primor da literatura mundial e recomendo a leitura para todos que se interessarem não só pelo retrato soviético da época como por um aprofundamento na literatura russa. Chalámov é um literato e conhece em detalhes as obras russas anteriores a ele e acaba dividindo conosco esse conhecimento tão precioso ao mesmo tempo em que nos demonstra os horrores sofridos. Horrores esses que trouxeram uma inevitável consequência para a arte soviética: “Deus está morto. Por que então a arte deve viver? A arte também morreu, e nenhuma força no mundo vai ressuscitar o romance tolstoiano” (2016, v.5, p. 304). Ou ainda nas mais duras palavras de Chalámov:

 

Foi o meu próprio sangue que cimentou as frases de Contos de Kolimá. Qualquer questão colocada pela vida é não apenas insolúvel, mas até indevidamente colocada. A memória conservou milhares de variantes de respostas em forma de enredos e, a mim, resta apenas escolher e arrastar para o papel aquele que for mais conveniente. Não para descrever algo e, com isso, dar uma resposta. Eu não tenho tempo para descrições. (2016, v3, p. 405)

 

É nesse relato da mais extrema crueza que Chalámov nos toca fundo na alma. Segundo ele, há também em seus contos uma demonstração da “luta do homem com a máquina do Estado”, em que o homem nunca sai ganhando, mas sempre esmagado pela máquina estatal. O sujeito se torna ausente, completamente ineficaz contra todo o peso dos processos estatais. Muito antes Kafka teria adiantado as arbitrariedades do Estado em seu romance “O Processo”, publicado postumamente em 1925. Entretanto, Chalámov vivenciou na pele o que Kafka escreveu apenas com sua imaginação. Se Kafka tinha algo de concreto para basear seu romance não sabemos, no entanto, é bem improvável que ele pensasse que um dia isso seria mais que real.

Por fim, gostaríamos de ressaltar que tudo que Chalámov vivenciou nos campos não o tornaram antissoviético. Quanto a isso ele é muito preciso ao dizer que “cada conto meu é uma bofetada no stalinismo” (2016, v. 5, p. 298). O que nos faz concluir esse texto com uma última citação de Chalámov em “O que vi e compreendi no campo de trabalho” que é de arrepiar:

 

Compreendi que a ‘vitória’ de Stálin só pôde ser alcançada porque se matou pessoas inocentes. Um movimento organizado, ainda que de número dez vezes menor, mas organizado, teria varrido Stálin em dois dias. (2016, v. 4, p. 154)

 

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes

REFERÊNCIAS

CHALÁMOV, V. Contos de Kolimá. São Paulo: Editora 34, 2015-2019. (6v.)