terça-feira, 10 de março de 2020

Uma ideologia de centro: réplica



Uma ideologia de centro: réplica

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes

[...] a ideologia do desenvolvimento tem necessariamente
de ser um fenômeno de massas.
[...] o processo de desenvolvimento é função da
consciência das massas.
[...] a ideologia do desenvolvimento tem de proceder
da consciência das massas.
(Álvaro Vieira Pinto. Consciência e Realidade Nacional)

Em artigo de 3 de fevereiro de 2020, no blog Refutações, o professor Rodrigo Cid expôs o que ele chamou de ideologia de centro. Gostaria de levantar alguns pontos relevantes da proposta e apresentar uma contraproposta com o intuito de abrir ao diálogo o que foi primeiramente proposto. O método escolhido foi essa forma quase epistolar. Eu poderia ter respondido apenas no site do blog referente, mas achei que uma resposta completa seria mais elegante e respeitosa com o trabalho do professor.

Por princípio, Cid nos apresenta um grande desafio: pensar a realidade do Brasil. O país passa por um período de turbulência e entrou em uma grande dicotomia política ressaltando antigos termos como esquerda e direita. Segundo Cid, a única maneira de sairmos dessa polarização seria abandonar os pensamentos radicais de esquerda e de direita e unir forças em uma ideologia de centro que reforçaria ideais libertários de direita e ideais igualitários de esquerda. É o que o autor chama de “sociedade de Sociocapitalismo de Mercado” e que mistura os ideais do Estado mínimo com os do igualitarismo. Nessa sociedade idealizada todos seriam sócios de todos:

qualquer pessoa que abrir uma empresa em território nacional terá de pagar uma quantidade de impostos sobre os seus ganhos que seria revertida diretamente para a conta de cada um dos cidadãos nacionais, como se fossem ações que geram dividendos. Isso provavelmente faria cada indivíduo querer que cada uma das empresas instaladas em território nacional se desenvolva – o que aumentaria a produtividade. Assim, a nossa sociedade seria realmente uma sociedade: todos sócios de todos. (CID, 2020)

Esse ideal do autor, apesar de estar transvestido por um vocabulário de mercado, nada mais é do que a “renda mínima universal” defendida por alguns autores socialistas, sendo um dos mais recentes a defender isso é Yanis Varoufakis, ex-ministro grego das Finanças do Governo Tsipras em 2015. Segundo Varoufakis, a renda mínima é uma forma de manter a dignidade humana perante as adversidades globais e também a sua capacidade de escolha, ao não permitir que uma pessoa se submeta aos trabalhos-lixos oferecidos pelo capitalismo.
No entanto, para Cid, como a renda não passaria pelo governo, ele teria que parar de fornecer serviços não essenciais à população – como escolas, hospitais, previdência etc. –, alugar à iniciativa privada os prédios onde se encontram as instituições que fornecem os serviços públicos. Mesmo aqui discordando do autor que esses sejam considerados “serviços não essenciais”, vamos seguir o texto para permitir a sequência da exposição do autor. Seu ideal ainda perpassa por uma reeducação social, redução da carga horária de trabalho e também uma redução dos rendimentos ganhos, o que no fundo manteria o teor da exploração e do mais-valor adquirido pelo empresário junto ao trabalhador. Mas, mesmo assim, há um ideal comum que ainda levaria à reforma política e uma reformulação do bem público. Tudo isso, segue em aberto e precisaria, segundo o autor, ser pensado por diversos intelectuais. Gostaríamos agora de analisar melhor alguns posicionamentos do autor.
Em sua exposição, Cid reduzirá a dicotomia político-ideológica em duas categorias filosóficas importantes: igualdade, pertencente aos preceitos defendidos pela esquerda, e liberdade, pertencente aos preceitos defendidos pela direita. Os conceitos de liberdade e igualdade longe estão de definir adequadamente o que seria direita e esquerda, mas foi o recorte escolhido por Cid para nortear o seu artigo.
Norberto Bobbio, que escreveu exaustivamente sobre essa dicotomia, dirá que “uma doutrina ou um movimento podem ser apenas ou de direita ou de esquerda” (2001, p. 49). Qualquer outra vertente que venha a surgir fará necessariamente referência a essa dicotomia. Uma ideologia de centro nunca é realmente de centro. Ela sempre tenderá para um dos lados, seja por conta do próprio autor, seja pela percepção que se tem dela pelas demais pessoas. Afinal, aqueles que se encontram à direita tendem a ver o centro como esquerda e aqueles que se encontram à esquerda tendem a ver o centro como direita. Ou seja, o centro nunca se encontra, de fato, ao centro.
A dicotomia liberdade e igualdade para delimitar direita e esquerda é falsa. Vemos, portanto, dois problemas no artigo de Cid, um de cunho teórico e outro prático. O problema teórico consiste na não definição dos termos, o que levou a uma associação indevida com os outros dois termos: esquerda e direita. Liberdade é um status do ente (x é livre), já a igualdade indica uma relação entre dois ou mais entes (x é igual a y). Outro ponto de equívoco é considerar um termo oposto ao outro. Segundo Bobbio,

[...] é verdade que a igualdade acaba por limitar a liberdade tanto do rico quanto do pobre, mas com a seguinte diferença: o rico perde uma liberdade usufruída efetivamente, o pobre perde uma liberdade potencial”. (2001, p. 130)

Isso significa dizer que nem sempre uma igualdade leva a uma perda de liberdade, muito pelo contrário. Como exemplos podemos dar os direitos iguais entre homens e mulheres, o compartilhamento dos deveres domésticos, salários iguais entre pessoas para a mesma função, independente de cor, etnia ou gênero. Esses exemplos demonstram que as pessoas, ao usufruírem direitos iguais, também adquirem maior liberdade para se expressarem social e politicamente. Por que deveríamos ter uma sociedade que priorize o mercado? Por que deveríamos manter os empresários, como defende Cid em seu artigo, ao invés de entrega a indústria nas mãos dos trabalhadores e, dessa forma, fazer de maneira justa a distribuição da riqueza? Os ideais defendidos por uma esquerda séria implicam em uma série de direitos básicos, direitos universais à vida, que incluem saúde, educação, segurança, integração social e participação política. Direitos esses que foram primeiramente defendidos pelo liberalismo e agora são destruídos pelo neoliberalismo. Tais direitos devem incluir todas as pessoas igualmente por princípio, isto é, que não haja diferença de tratamento e atendimento nesses direitos. Isso em nada infringe a liberdade dos indivíduos, muito pelo contrário, garante essa liberdade. Como bem observou Rousseau em seu “Discurso sobre a Desigualdade”, não há liberdade sem igualdade. Basta um desigual para que a liberdade deixe de ser igual para todos. É uma verdade social, que deveria ser tomada como uma verdade universal de tão simples e correta, mas que ainda não é tão clara para a maioria das pessoas.
Quanto ao problema prático, eu diria que há muito as políticas adotadas pelos governos, sejam esses de esquerda ou de direita, são as ditadas pelo neoliberalismo. Dessa forma, no Brasil (e no mundo) tanto governos de esquerda como de direita têm adotado políticas que diminuem a cobertura do estado bem-estar social (welfare State), aumentem o alcance do mercado e façam políticas de austeridade através de cortes em gastos sociais, controle de inflação e incentivos para a entrada de capital estrangeiro. Os partidos chamados de esquerda, há muito tempo se afastaram, na prática, dos ideais comunistas, marxistas ou anarquistas (a esquerda raiz). O Partido dos Trabalhadores (PT), que esteve no poder por 13 anos, nunca deixou de beneficiar a burguesia do país, principalmente no setor bancário em que os bancos lucraram como nunca. Talvez o professor Cid não tenha percebido, mas é possível que no governo do PT esteja a verdadeira ideologia de centro defendida em seu artigo. É só lembrar que para se eleger, Lula precisou fazer um pacto com os empresários do país em sua famosa “Carta ao povo brasileiro”. Isso mostra que ele não realizou de modo algum uma ruptura com os interesses do mercado financeiro. O que Lula fez foi estabelecer um acordo com o empresariado local para garantir sua vitória nas eleições para presidente, isto é, um acordo que permitiu a ele fazer uma articulação política que visava tranquilizar os interesses de Mercado e, assim, evitar resistências que poderiam levá-lo a uma quarta derrota.

Lula sabia que a política é a arte do compromisso, das concessões mútuas, para alcançar maioria; mais do que isso, ele sabia que é possível ser eleito sem o apoio da burguesia, mas é impossível governar sem ela. Por isso, já em um famoso documento de sua campanha eleitoral de 2002, a ‘Carta ao povo brasileiro’, ele mudou o tom e o conteúdo de suas propostas, e assim que foi eleito, demonstrou que sabia que não é possível governar o capitalismo sem os capitalistas e logrou deles se aproximar. (BRESSER-PEREIRA, 2016, p. 353)

Isso efetivamente garantiu a eleição de Lula e o estabelecimento de seu governo, podendo ser visto como um pensamento político arguto para se conseguir chegar ao poder, pois acalmava a elite ao mesmo tempo em que se apoiava no povo para chegar ao governo. Há uma verdadeira luta ideológica contra sistema de bem-estar social advinda da razão neoliberal propagada no mundo e que proporciona um falso ideal de liberdade. A liberdade de escolher fica reduzida ao ato de consumir. O axioma liberal de que a liberdade e justiça estão ligadas intrinsicamente à ordem liberal é uma apropriação indevida dos termos. Liberdade e justiça estão para além do que chamamos de mercado. Ser livre é muito mais do que o mero agir no mercado. Não podemos aprisionar o nosso livre-arbítrio aos fundamentos do mercado, fazendo com que a escolha do indivíduo se resuma à incessante escolha estimulada pelo mercado entre produtos e serviços. Criou-se toda uma vulgata aliada aos ideais de direita sobre o tema da necessária “desobrigação do Estado” e a incomparável eficiência dos mercados.
Outro ponto que gostaríamos de ressaltar é que tentativa de colocar uma outra opção para a dicotomia esquerda e direita não é nova. Anthony Giddens considera que um novo paradigma para a esquerda, por ele chamado terceira via, deve enfrentar com sucesso cinco grandes dilemas postos pela contemporaneidade:

1. globalização;
2. individualismo;
3. esquerda e direita;
4. ação política;
5. ecologia.

Giddens aceita a definição de Bobbio: esquerda tem como valor diferencial a igualdade. Acrescenta, porém, a dimensão política. Isso quer dizer que uma nova via deve ser construída pensando o fenômeno da globalização, junto à questão do indivíduo no mundo contemporâneo, sem deixar de pensar na questão da consciência ecológica cada vez mais urgente. No entanto, como podemos ver na obra de Dardot e Laval (2016), essa tentativa de construir uma nova via, nada mais é do que a adoção da razão neoliberal aos ideais de esquerda.

Nada ilustra melhor a virada neoliberal da esquerda do que a mudança de significado da política social, rompendo com toda a tradição social-democrata que tinha como linha diretriz um modo de partilha de bens sociais indispensáveis à plena cidadania. A luta contra as desigualdades, que era central no antigo projeto social-democrata, foi substituída pela “luta contra a pobreza”, segundo uma ideologia de “equidade” e “responsabilidade individual” teorizada por alguns intelectuais do blairismo, como Anthony Giddens. A partir daí, a solidariedade é concebida como um auxílio dirigido aos “excluídos” do sistema, visando aos “bolsões” de pobreza, segundo uma visão cristã e puritana. Esse auxílio dirigido a “populações específicas” (“pessoas com deficiência”, “aposentadorias mínimas”, “idosos”, “mães solteiras” etc.), para não criar dependência, deve ser acompanhado de esforço pessoal e trabalho efetivo. Em outras palavras, a nova esquerda tomou para si a matriz ideológica de seus oponentes tradicionais, abandonando o ideal da construção de direitos sociais para todos.
[...]
Em uma palavra, e talvez de forma paradoxal, nada manifesta melhor a natureza da racionalidade neoliberal do que a evolução das práticas dos governos que há trinta anos se dizem de esquerda, mas conduzem uma política muito semelhante à da direita.

A adoção pela esquerda das práticas neoliberais destruiu de vez a sua concepção original e, nesse sentido, nenhuma esquerda latino-americana escapa à crítica. A desigualdade é mantida a custo de uma pequena reforma ao capitalismo, mas nada que abale com ênfase o sistema. Separar liberdade e igualdade como polos da direita e da esquerda não é uma boa maneira de separar as duas vertentes políticas. O liberalismo geralmente faz uso dessa distinção para acusar o socialismo de ser um regime contra a liberdade democrática. Entretanto, os verdadeiros polos seriam igualdade e desigualdade. A esquerda estimula em suas políticas a igualdade, pois vê na sociedade capitalista um ponto de estímulo à desigualdade promovida pela livre-concorrência do mercado e a exploração da mão-de-obra do trabalhador pela burguesia.
Mas até mesmo no comunismo a igualdade deve ser levada como certas ressalvas. Na fase final da sociedade comunista, de acordo com Marx, deveria valer o princípio: “a cada um segundo suas necessidades”. Em entrevista ao “The Chicago Tribune”, Marx expõe suas ideias para a formulação de uma sociedade comunista:

. Sufrágio universal, igual, direto, secreto e obrigatório para todos os cidadãos maiores de vinte anos e para todas as eleições gerais e comunais. O dia da eleição será um domingo ou um dia feriado;
. Legislação popular direta. guerra e a paz decididas pelo povo;
. Nação Armada. Substitui ao do exército permanente pela milícia popular;
. Supressão das leis de exceção, notadamente as leis sobre a imprensa, reuniões e associações; em geral, todas leis;
. Instituição de tribunais populares. Gratuidade da justiça;
. Educação geral e igual do povo pelo Estado. Obrigação escolar. Instrução gratuita em todos os estabelecimentos escolares;
. Máxima extensão possível dos direitos e liberdade, no sentido das reivindicações acima citadas;
. Imposto único e progressivo sobre a renda, para o Estado e as comunas, em lugar de todos os impostos indiretos, especialmente daqueles que sobrecarregam o povo;
. Direito ilimitado de associação;
. Jornada de trabalho correspondente as necessidades sociais. Proibição do trabalho aos domingos;
. Interdição do trabalho das crianças, bem como do trabalho cuja natureza prejudique a saúde e seja ofensivo à moral da mulher;
. Leis de proteção a vida e a saúde dos trabalhadores. Controle sanitário dos alojamentos operários. Fiscalização do trabalho nas usinas, fábricas e oficinas, bem como trabalho a domicílio, por funcionários eleitos pelos trabalhadores. Lei delimitando claramente as responsabilidades;
. Regulamentação do trabalho nas prisões.

Perante a lista apresentada, poderíamos nos perguntar em que os ideais marxianos sobre o comunismo vão contra à concepção de liberdade? Vemos aqui não uma dicotomia de opostos, mas uma correlação entre igualdade e liberdade. Segundo Marx, nas suas obras, um dos grandes problemas para falta de liberdade seria a alienação das pessoas do sistema econômico ao qual elas pertencem. Em resumo, podemos dizer que existe um tripé básico que rege o sistema capitalista: banqueiros, empresários e trabalhadores. Os banqueiros são aqueles que tem poder para manipular as demais classes. Tanto empresários como trabalhadores mantêm-se alienados pela ideologia burguesa que aparece como um ideal a ser seguido, de maneira que se possa manter a estrutura de dominação. Um dos pontos falhos do trabalho do professor Cid foi não levar isso em consideração, tomando de maneira fácil demais a relação entre empresários e a população acionista, sem pensar o papel dos bancos nisso e o poder que eles têm de manipular e lucrar cada vez mais. O que mantém o enriquecimento de poucos e a profunda desigualdade que assola o Brasil.
Portanto, apesar de não ver falhas na construção da proposta do professor Cid, consideramos que ela ainda se apresenta um tanto ingênua para a estrutura política do país. As lacunas são muitas e a proposta precisa ser melhor elaborada, ao se repensar o que, de fato, significa esquerda e direita e que caminho devemos tomar. Como no final do artigo ele propôs uma reflexão sobre o que escreveu, creio que não faço mal aqui em estimular o esforço do pensamento e diálogo.


Bibliografia

BOBBIO, N. Direita e Esquerda. Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000.

BRESSER-PEREIRA, L. C. A construção política brasileira. Sociedade, economia e Estado desde a Independência. São Paulo: Editora 34, 2016.

CID, R. Uma ideologia de centro. Refutações. Disponível em: http://refutacoes.com/blog/uma-ideologia-de-centro/. Acesso em: 27/02/2020.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

MARX, K. Entrevista ao The Chicago Tribune (18 de Dezembro de 1878). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1878/12/18.htm. Acesso em: 09/03/2020.

OLIVEIRA, A. R. O problema da liberdade nopensamento de Karl Marx. Perspectiva, v. 16, n. 29, p. 175-195, 1998.

REGIS, A. Do Liberalismo à Terceira Via: Reflexões para a Discussão do Modelo de Estado Brasileiro. Disponível em: http://www.unicap.br/neal/artigos/Texto8AndreRegis.pdf. Acesso em 08/03/2020.