quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Parasita



Parasita

Difícil falar sobre “Parasita”, filme sul-coreano que ganhou o Oscar 2020. A produção do diretor Bong Joon-ho, que também ganhou os Oscars de melhor roteiro original, melhor filme estrangeiro e melhor diretor, é muito detalhada. O filme conta a história de duas famílias de classes sociais distintas: a primeira família é composta pelos Kim, que vivem em um apartamento semissubterrâneo da cidade e na mais completa pobreza; a segunda família é composta pelos Park, ricos que vivem no mais pleno luxo. O filme trabalha com a analogia entre as famílias, como um jogo de espelhos existente entre elas. O primeiro jogo é que em ambas as famílias temos um pai, uma mãe, um filho e uma filha. O segundo jogo espelhado é que os Kim moram na parte baixa da cidade e os Park na parte alta da cidade. Isso já demonstra uma clara distinção entre classes socioeconômicas. Será nesse jogo de espelhos que irá se desenrolar todo o filme.

Após apresentar minimamente a família Kim, o enredo começa a se desenvolver a partir do momento em que o filho Kim consegue um emprego de professor de inglês na casa dos Park. Ele terá como função ser o tutor da filha Park nos seus estudos da língua inglesa. A admiração dos Park pelos EUA fica clara em diferentes momentos do filme, desde o reconhecimento do estudo da língua inglesa até a admiração do filho Park pelos índios americanos, o que faz com que os Park comprem diversos brinquedos vindo dos EUA para a criança. Tendo sido aprovado como tutor da filha Park, o filho Kim consegue indicar a irmã como professora de artes do filho Park. No entanto, não é dito que ela é sua irmã, mas ela é apresentada como uma conhecida distante de um familiar seu e tendo qualificações por ter estudado em Chicago. A filha Kim, também obtendo sucesso em sua atuação como professora de artes, consegue indicar o pai Kim como motorista da casa Park, mas também sem que a família Park soubesse que ele é pai dos filhos Kim. Por fim, depois de um plano para retirar a atual governanta da casa Park, o pai Kim consegue indicar a mãe Kim como nova governanta da casa Park, sem que ninguém soubesse do seu parentesco com os demais empregados da casa.
Todo esse desenrolar do filme já seria suficiente para justificar o nome do filme. Isto é, cada um dos membros da família Kim foi infiltrando os outros membros da família com o intuito de ocupar um espaço dentro da casa Park. Talvez o filme pudesse acabar aí e nada mais contar de interessante. No entanto, eis que surge o que estava até então oculto até a metade da película. A governanta antiga volta à casa e, conseguindo entrar na casa, faz a grande revelação do filme: há um porão escondido na casa e neste porão vive escondido o seu marido. A questão do subsolo é muito importante para o enredo do filme. Essa temática perpassa todo o filme, mesmo nos momentos mais sutis. Primeiramente, no tipo de apartamento em que moram os Kim. Esse tipo de apartamento semissubterrâneo são chamados de banjiha e são muito comuns na cidade de Seul, em que há um grave problema de moradias. A história desses espaços minúsculos remonta ao período de conflito entre as Coreias do Sul e do Norte, quando o governo sul-coreano temendo um conflito maior entre os Estados exigiu, a partir 1970, que todos os edifícios residenciais com quatro andares ou menos tivessem porões que pudessem servir como abrigos em caso de emergência nacional. Alugar esses espaços era proibido, mas perante a crise imobiliária atual, o governo acabou por legalizar a residência nesses espaços. Um segundo ponto sobre a temática do subsolo, remete a construção do porão subterrâneo na residência dos Park. Essa construção também tem a guerra entre as Coreias como pano de fundo. O primeiro morador da casa teria construído esse porão como um abrigo para a sua segurança pessoal em caso de ataque da Coreia do Norte. Como o conflito direto não ocorreu, o porão acabou esquecido e desconhecido da família Park. Um terceiro ponto sobre o subsolo se remete a própria invisibilidade das condições materiais em que vivem as pessoas mais pobres da cidade. Elas são totalmente ignoradas pelas famílias ricas que usufruem de seu trabalho sem sequer conhecer as condições em que vivem essas famílias. Como exemplo maior podemos dar o indivíduo esquecido no subsolo da casa dos Park, que lá estava há mais de quatro anos para fugir das dívidas inevitáveis que adquiriu por conta da falência do seu negócio. Uma marca do capitalismo.
Por causa do terceiro ponto, muito se falou em luta de classes neste filme. Esse é um ponto que gostaríamos de analisar mais cuidadosamente. De fato, há uma gritante disputa entre as classes sociais distintas. No entanto, apesar do conflito entre classes estar posto, isso não é suficiente para justificar a luta de classes estritamente falando. O que acontece no filme é uma demonstração das faces nocivas do capitalismo que, através da sua enorme plasticidade, vai se adaptando e cooptando a todos para dentro da sua lógica. Como justificar uma luta de classes quando o conflito principal do filme gira em torno das classes mais baixas? Primeiro, a família Kim usou de artimanhas sujas para retirar o emprego do antigo motorista e da antiga governanta, depois temos a luta física entre a família Kim e ex-governanta e o seu marido, em seguida, como consequência da briga, aconteceu a morte da ex-governanta, além da total insensibilidade perante a mazela do antigo “morador” do subsolo da casa. Há, na verdade, uma luta voraz entre as classes mais baixas pela própria sobrevivência em um sistema que defende a meritocracia como modelo de vida. Enquanto isso, a família Park é louvada pelo sustento que dá à família Kim através dos salários pagos oriundos da exploração que sofrem. Diante de toda essa confusão, nos perguntamos: quem é o verdadeiro parasita? Seria o morador do subsolo da casa Park? A família Kim que se infiltrou na casa e sabem se esconder em cada buraco como baratas que fogem da luz? Ou a família Park, representante das classes mais ricas do país que sugam a mão de obra barata das classes mais baixas? John Hobson em seu livro “Imperialismo” chama as classes e grupos beneficiados pelo imperialismo de “parasitas econômicos do imperialismo”, principalmente as que lucram mediante o capital financeiro. Segundo ele,

o jogo dessas forças não aparece abertamente. São essencialmente parasitas do patriotismo e se adaptam às suas cores protetoras. Na boca de seus representantes há frase nobre, expressiva de seu desejo de ampliar a área da civilização, estabelecer um bom governo, promover o cristianismo, extirpar a escravidão e elevar as raças inferiores.

Os parasitas, aos quais Hobson se refere, são grandes dissimuladores do sistema financeiro que defendem, em palavras apenas, a liberdade e a moral, mas que exploram ao máximo a mão de obra livre que defendem. São esses empresários hipócritas que pretendem expandir seus negócios como se expandiria um império para a vitória do capital. Um parasita é um organismo que vive de outro organismo, causando-lhe dano. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os 10% mais ricos recebem quase 50% da renda do trabalho no mundo. Afinal, será que ainda não está claro quem é o parasita?
No final do filme, apesar de todo o conflito entre as famílias, não aconteceu a consciência de classe, tão cara e necessária para a constituição da luta de classes. O pai Kim termina seus dias no subsolo da casa Park arrependido por ter matado o pai Park. E o filho Kim divaga no sonho liberal de enriquecer através do mérito do estudo para conseguir um dia comprar a casa Park e libertar seu pai do subsolo. Alguns críticos do filme interpretaram a cena final como uma moral na qual “só a educação é libertadora, levando o indivíduo a enriquecer pelo seu próprio mérito”. Essa é uma conclusão falaciosa e não condiz com a mensagem do filme. Uma propriedade como a dos Park pode custar até 10 bilhões de wons, ou alguns milhões de dólares. Baseado em um salário médio sul-coreano ($10 mil anuais), o filho Kim levaria mais de 500 anos para comprar a casa dos Park, ou seja, um sonho surreal.
De fato, o que acontece no final do filme é o triunfo da ideologia burguesa que consegue abafar a luta de classes e faz com que as classes mais baixas continuem a lutar entre si na expectativa de realizar o sonho liberal da ascensão social pelo próprio mérito (eis a alienação!). Um equívoco crasso que continua alimentando os parasitas burgueses do suor e do sangue dos pobres e miseráveis que os sustentam.
(Luiz Maurício Bentim)