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O retorno da tirania
οὔ μοι τὰ Γύγεω τοῦ πολυχρύσου μέλει,
οὐδ’ εἷλέ πώ με ζῆλος, οὐδ’ ἀγαίομαι
θεῶν ἔργα, μεγάλης δ’ οὐκ ἐρέω τυραννίδος·
απόπροθεν γάρ ἐστιν ὀφθαλμῶν ἐμῶν.
Não me preocupam as coisas de Gyges, rico em ouro,
Nem ainda me persegue a cobiça, nem invejo
As obras dos deuses, ou amor pela grande tirania;
A tirania nasceu na região da Anatólia por volta do séc. VII a.C. A
Anatólia, também conhecida como Ásia Menor, foi uma região próspera naquela
época e muito influente. O primeiro a ser chamado de tirano parece ter sido
Gyges da Lídia. Muitas histórias se contam sobre a maneira como Gyges teria
atingido o poder, todas elas falam em usurpação do trono. Gyges teria reinado 682-644
a .C. e seu poder foi grande sobre aquela região.
O fr. 19W de Arquíloco além de ser o primeiro a tratar de Gyges, parece também ter sido o primeiro a utilizar no grego o termo “tirania”. Segundo Ure, a palavra tirania não é grega, mas pode ser de origem lídia[2]. De acordo com Adrados, a palavra designa o poder absoluto dos monarcas orientais[3]. Euphorion (séc. III a.C.) diz que Gyges foi o primeiro a ser chamado de tirano (FHG, vol. III, fr. 1, p. 72). Tal declaração pode ser apenas uma inferência de Hippias de Elis (séc. V a.C.), que disse não ter Homero usado a palavra týrannos, mas seu uso somente aparece com Arquíloco (FHG, II, fr.7, p.62). Heródoto dizem suas Histórias
que Arquíloco contou a história de Gyges, sendo também ele contemporâneo deste[4].
O fr. 19W de Arquíloco além de ser o primeiro a tratar de Gyges, parece também ter sido o primeiro a utilizar no grego o termo “tirania”. Segundo Ure, a palavra tirania não é grega, mas pode ser de origem lídia[2]. De acordo com Adrados, a palavra designa o poder absoluto dos monarcas orientais[3]. Euphorion (séc. III a.C.) diz que Gyges foi o primeiro a ser chamado de tirano (FHG, vol. III, fr. 1, p. 72). Tal declaração pode ser apenas uma inferência de Hippias de Elis (séc. V a.C.), que disse não ter Homero usado a palavra týrannos, mas seu uso somente aparece com Arquíloco (FHG, II, fr.7, p.62). Heródoto diz
Hoje, a região da Anatólia é ocupada pela Turquia, país belíssimo em
terras e em tesouro arqueológico para a humanidade. Hoje também a Turquia volta
a apresentar traços da tirania. O Conselho Eleitoral Supremo da Turquia
confirmou neste domingo, 16, a vitória do “sim” no referendo sobre a reforma
constitucional que muda o sistema de governo no país e amplia os poderes do
presidente Recep Tayyip Erdogan. Após a tentativa fracassada de golpe na
Turquia contra o governo de Erdogan, este instalou um estado de exceção no país
que o fortaleceu. A mudança constitucional, se for confirmada, permitirá que o
vencedor da eleição presidencial de 2019 assuma o controle total do governo,
acabando com o sistema parlamentarista. O resultado reforçaria o controle de
Erdogan sobre o país. O momento é ideal para o fechamento do regime e a
instauração da tirania. Apesar da tirania ser colocada como a pior forma de
governo por Sócrates, ela é vista pela maioria das pessoas como sendo a melhor
e a mais feliz. Isto se deve a uma noção da maioria sobre a natureza
humana como sendo voltada para a pleonexía[5], que visa seu próprio interesse e tem no ato
de cometer injustiça um bem. Isto leva a uma concepção da justiça como sendo
penosa e não agradável, o que faz com que eles tomem a vida do injusto como
sendo mais feliz do que a do justo[6]. Tal tipo de pensamento é apresentado no Livro
II da República Platão pelo desafio de Gláucon a Sócrates, cabendo a ele responder se a justiça é
por si mesma um bem e se é de qualquer maneira melhor do que a injustiça, sendo
agradável para aquele que for justo. Os livros VIII e IX são a resposta de
Sócrates a este desafio, analisando a vida daquele que é pelos polloí considerado o mais completamente
injusto e feliz dos homens: o tirano.
Para provar o equívoco deste tipo de pensamento, Sócrates irá iniciar a
diferenciação entre desejos necessários e aqueles que não são necessários[7]. Segundo ele, são necessários aqueles que não
somos capazes de repelir e são úteis satisfazer[8]; não necessários são aqueles que podemos nos
libertar[9]. Uma relação entre necessidade e utilidade é
estabelecida nessa passagem, fazendo com que todos os desejos necessários sejam
úteis, mas o mesmo não pode ser dito dos desejos não necessários. Serão
justamente estes que irão preocupar Sócrates com relação ao tirano, pois a tirania
vem do excesso, excesso este que vem do ambiente democrático e que acaba por
aprisionar a si mesmos.
A liberdade em excesso, portanto, não conduz a mais nada que não seja a
escravatura em excesso, quer para o indivíduo, quer para a pólis.[10]
O excesso, aqui colocado, pode estar indicando uma desmedida por
oposição à célebre frase do oráculo de Delfos: nada em excesso [μηδὲν ἄγαν]. A falta de medida faz com que homem
deseja mais do que ele pode ter, ele perde, com isso, o limite de sua vida. O
excesso é um caminho sem volta para isso. Por isso a defesa de Sócrates ao “conhece-te
a ti mesmo”, pois somente pelo conhecimento de si se pode conhecer os próprios
limites e evitar o excesso.
Hoje o tirano retorna a sua casa e não sabemos por quanto tempo irá lá
habitar.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes
[1] Arquíloco. Fr. 19W. A tradução é
nossa.
[2]
URE, P. N. The Origin of Tyranny. Cambridge:
Cambridge University Press, 1922, p. 134. Ver também ANDREWES, A. The Greek Tyrants.London: Hutchinson’s University Library, 1957, p.
21-22.
[3] LG, v.1, nota 2, p. 54.
[4] Hdt., I.12.2,7-8.
[5] Segundo LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Greek-English Lexicon
(2 ed.). New
York: Harper & Brothers, 1883, p. 1224; a palavra πλεονεξία pode significar ganância, apego,
arrogância, vantagem, abundância. De acordo com CHANTRAINE, P. Dictionnaire Étymologique de La Langue Grecque. Histoire
de Mots, tome III. Paris: Éditions Klincksieck, 1979, p. 913; a palavra
pertence a família de πλε(ῖ)ον, que compõe πλεονέκτης “ganancioso, que tem mais do que
os outros” com -εκτέω,
-έκτημα, -εξία, etc., cf. s.u. ἔχω. Pelo significado amplo da palavra
e por ser peça chave para se entender o tipo de desejo dos polloí, preferimos pela sua transliteração e não pela tradução.
Quando utilizamos a palavra é no sentido de ‘desejo de ter mais do que os
outros’.
[6] Os argumentos aqui expostos fazem
parte dos discursos de Gláucon (357a-362c) e Adimanto (362d-367e) no Livro II
da República.
[7] Rep., 558d.
[8] Rep., 558e.
[9] Rep., 559a.