Fragmentos de um Frankenstein Amoroso
Em seu Fragmentos de um Discurso
Amoroso, Roland Barthes nos oferece o perfil de um eu que não é psicológico, mas estrutural: “oferece à leitura um
lugar de palavra, o lugar de alguém que fala em si mesmo, amorosamente, em face
do outro (o objeto amado), que não fala”[i].
Dessa maneira, fragmentado, o sujeito amoroso se apresenta em face do múltiplo
das possibilidades amorosas, que nos aparece como figuras do discurso. Essas
figuras representam o amante em ação. Várias figuras compõe o discurso amoroso
e nem todas se apresentam em uma relação amorosa, mas todas participam da
relação amorosa, de modo que o ‘eu’ do amante pode nos aparecer de diversas
maneiras na ação amorosa. Como exemplos dessas figuras temos abraço, adorável,
angústia, carinho, carta, cena, chorar, coração, declaração, drama, encontro,
escrever, espera, eu-te-amo, exílio, imagem, insuportável, magia, plenitude,
por quê, saudoso, sedução, sozinho, união, verdade, entre tantas outras figuras
possíveis dentro de um discurso amoroso. Essas figuras são modos de se exprimir
do ‘eu’, e o seu modo de se exprimir não é claro, não tem ordem, apresenta-se
sempre ao acaso e fragmentado.
A composição de um discurso amoroso depende de toda capacidade dramática
do ‘eu’ enquanto amante. Em outras palavras, o ‘eu’ compõe um personagem só seu
que terá como papel, na peça do amor, expressar o discurso amoroso. O que nós
queremos enfatizar neste ensaio é que a composição das personagens são
possibilidades de vida do ‘eu’ como um feixe temporal amplo que o permite ser muitos enquanto um. É nesse
paradoxo da unidade-multiplicidade, tão conhecido da filosofia, que o ‘eu’ irá
aparecer e se representar, e serão as vivências do amante que o permitirá
compor sempre novos personagens amorosos, de modo que a vida se torna para ele
um grande teatro móvel. As figuras fazem parte da estrutura do discurso amoroso
e não possuem uma ordenação nem uma composição própria, elas são independentes
do sujeito amoroso. Cabe ao ‘eu’ montar seu personagem a partir desse discurso
fragmentado que se apresenta no teatro móvel da vida e, assim, suas
experiências vão construindo o discurso utilizado pela personagem. Inicia
Barthes:
A necessidade deste livro
funda-se na consideração seguinte: o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso
talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é
sustentado por ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes,
ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder,
mas também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). Quando um discurso é
assim lançado por sua própria força na deriva do inatual, deportado para fora
de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo que
seja, de uma afirmação. Esta afirmação
é em suma o tema do livro que ora começa[ii].
No entanto, e se ao invés de afirmações de um 'eu' perdido, usássemos
todo o potencial dramático do ‘eu’ na composição perfeita da personagem? Quando
se atinge o ápice e se reúne todas as peças do discurso amoroso na montagem da
personagem perfeita é como dar vida a um verdadeiro Frankenstein: é belo, porém aterrorizante...
Se analisarmos o título da obra de Mary Shelley se conseguirá entender o
que queremos dizer aqui. Chama-se Frankenstein
ou o Prometeu Moderno. O que podemos compreender por um ‘Prometeu Moderno’?
Voltando-se ao mito grego de Prometeu contado no Protágoras de Platão, veremos que Zeus teria designado aos titãs
Prometeu e a Epimeteu que estes dessem a todos os seres as qualidades
necessárias para a sua sobrevivência. Epimeteu ficou incumbido de distribuir as
qualidades e Prometeu de verificar a distribuição feita pelo irmão. Concluída a
tarefa de Epimeteu, Prometeu percebeu que de todos os seres apenas um havia
sido esquecido por Epimeteu: o homem. Já sem qualidades para serem distribuídas,
o homem nasceria fraco e sem nenhuma capacidade para sobreviver no mundo. Para
resolver isso e assegurar a salvação do homem, Prometeu resolveu roubar de
Hefesto e de Atena a sabedoria das artes juntamente com o fogo, pois, sem o
fogo, além de inúteis as artes, seria impossível o seu aprendizado, e, assim,
os deu aos homens. Dessa forma, os homens tiveram a capacidade de se
desenvolverem e se tornarem fortes o suficiente para sobreviverem no mundo. Por
esse feito, Prometeu teria sido punido por Zeus, sendo pois acorrentado pelas poderosas
correntes de Hefesto e teria como castigo o seu fígado comido todos os dias por
um águia.
Ora, a obra Frankenstein trata
do Dr. Frankenstein que conseguiu a partir de fragmentos de corpos mortos, reconstruir
um corpo completo e lhe dar vida. Percebam como é a figura do Dr. Frankenstein
que representa o papel do Prometeu Moderno roubando um segredo de Deus que é
gerar a vida do nada. Ele roubou o fogo divino e foi amaldiçoado por isso, pois
a criatura agora viva era mais poderosa que o seu criador. Uma vez rejeitada, a
criatura jura se vingar e perseguir seu mestre até o fim dos tempos. Ou seja, o
Dr. Frankenstein reuniu todos os fragmentos necessários para gerar a mais
perfeita criatura e lhe dar vida, mas, uma vez criada, ela não poderia ser por
ele destruída e passa a ser um monstro que o atormenta e o aterroriza por toda
a vida.
Da mesma maneira é a construção da personagem perfeita. O ‘eu’ reúne
todos os fragmentos necessários para lhe dar vida e com isso se congratula, no
entanto, o que, de fato, se cria é um Frankenstein amoroso, criatura poderosa e
que perdurará por toda a vida de seu criador atormentando-o e perseguindo
enquanto assim viver. Já nos diz Barthes que “a história de amor (a aventura) é
o tributo que o amante deve pagar ao mundo para reconciliar-se com ele”[iii],
no entanto, o discurso (o solilóquio) não tem uma linearidade, “ordenar-se,
caminhar, concorrer para um fim (para um estabelecimento): não há [figuras]
primeiras nem últimas”[iv].
Não há no Frankenstein a formação de uma história senão o trabalho absoluto do
acaso em gerar pelas figuras algo diferente e perturbador, “pois não devemos,
diz um matemático, subestimar o poder do acaso para engendrar monstros; o
monstro em questão seria, emergindo de uma certa ordem das figuras, uma
‘filosofia do amor’, ali onde se deve esperar apenas a sua afirmação”[v].
Tudo que esta criatura terrível quer (esse monstro perfeito criado pelo
poder do ‘eu’) é ser amada. Mas como isso lhe é negado, passa a atormentar seu
criador até, por fim, consumi-lo por inteiro.