Alguns epistemólogos contemporâneos pensam que, para cada crença ou juízo que temos acerca de uma questão contingente (por exemplo, Susan Haack leciona em Miami, Minha xícara está cheia de café, etc.), pode-se sempre pedir razões para pensar que o conteúdo daquela crença é verdadeiro. Além disso, haveria uma cadeia infinita de razões disponíveis para cada crença racionalmente mantida sobre matérias contingentes. Não haveriam crenças 'básicas', como quer o fundacionista. Isto é, não haveriam justificadores últimos que não exigem justificação ou pelos menos disposição para justificação. Tais epistemólogos são chamados 'infinitistas'. Há pelo menos três defensores do infinitismo no cenário contemporâneo: Peter Klein, que concebeu a teoria em primeiro lugar, Jeremy Fantl e Scott F. Aikin.
A idéia infinitista pode soar bastante plausível em alguns casos. Tome como exemplo o meu juízo de que Susan Haack leciona em Miami. Parece que eu não posso crer racionalmente na verdade de tal proposição sem ter alguma razão para pensar que isso é o caso. De fato, eu tenho uma razão para pensar que isso é o caso: está escrito no último livro publicado por Susan Haack que ela leciona em Miami. É claro, alguém irá apontar: 'Hey, isso não é razão suficiente para você estar justificado a crer que Susan Haack leciona em Miami -- você precisa além disso crer que o fato de que isso está escrito no livro dela dá suporte suficiente para a afirmação de que ela leciona em Miami!'. E assim é: de fato eu preciso ou crer que há tal conexão confiável entre as duas coisas, ou pelo menos ter uma disposição para crer que há tal conexão confiável. Sem tal conteúdo sequer podemos dizer que tenho boa evidência para crer que Susan Haack leciona em Miami.
Além disso, a primeira razão que eu ofereci também parece ela própria exigir suporte de outras razões. Minhas razões para crer que está escrito no livro de Haack que ela leciona em Miami podem ser: eu lembro de ter lido isso segurando o livro de Haack, eu estou lendo isso agora mesmo no livro de Haack, etc. Para todas essas razões possíveis (que eu posso ter atualmente ou disposicionalmente) haverá novamente exigência de razões -- sob pena de que as crenças alvos (aquelas sobre a qual a nossa investigação epistemológica versa) não sejam racionalmente mantidas afinal de contas.
Mas é natural que algumas pessoas, ao refletirem sobre tal regresso de razões, cheguem a um dado momento a hipotetizar que há algumas crenças que não somente estão desacompanhadas de razões (ou disposições para oferecer razões) -- mas também que não precisam ou dispensam o suporte de razões. Seria até mesmo descabido pedir razões para aceitarmos tais crenças básicas, que podem ser chamadas em alguns contextos de 'crenças em proposições auto-evidentes'. Tais crenças seriam não somente auto-evidentes, mas também maximamente justificadas e indubitáveis (ou imunes à revisão).* E de fato essa é uma resposta fundacionista ao problema do regresso das razões: o chamado 'fundacionismo cartesiano' (não falarei aqui sobre o 'fundacionismo moderado', que desiste da idéia de que crenças básicas são maximamente justificadas e indubitáveis).
Exemplos típicos de tais crenças são as crenças introspectivas sobre como as coisas nos parecem. Eu posso duvidar de que há um cão correndo lá fora; mas não poderia duvidar do fato de que eu pareço estar vendo um cão correndo lá fora, ou de que tenho a impressão de que um há cão correndo lá fora. A pressuposição do fundacionista cartesiano é a de que tais crenças formadas via introspecção não exigiriam razões, e que sua situação epistêmica não pode melhorar, pois tais crenças são maximamente justificadas. Infelizmente, porém, há pelo menos duas maneiras de questionar tais crenças, as quais mostram não somente que a sua situação epistêmica pode melhorar, mas também que mantemos tais crenças racionalmente somente quando temos pelo menos uma disposição para oferecer razões em seu suporte. (Note aqui como a arguição pró-infinitismo irá se parecer com a arguição de um cético.)
Primeiro, considere a pergunta: pode alguém crer racionalmente que algo se parece com um cão sem saber como cães em geral se parecem? Imagine que não tenho qualquer noção sobre como cães se parecem. Seria racional para mim crer que pareço ver um cão correndo lá fora? A resposta é negativa: eu preciso saber quais são as características gerais que me permitem categorizar uma aparência como sendo uma aparência de um cão (e não, digamos, de um leão). Assim, temos pelo menos disposicionalmente razões que versam sobre como cães geralmente se parecem, as quais seriam necessárias para racionalizarmos nossas crenças envolvendo aparências de cães. Segundo, considere a pergunta: pode alguém crer racionalmente que parece ver um cão correndo lá fora sem crer ou estar disposto a crer que a introspecção é confiável? Formar crenças via introspecção e confiar cegamente nessa fonte seria como formar crenças via telepatia e confiar cegamente nessa fonte (assumindo que isso seja possível, mesmo que a telepatia fosse uma fonte confiável de crenças, para usar um exemplo que o epistemólogo Laurence Bonjour usou para deitar e rolar sobre a teoria confiabilista acerca de justificação epistêmica). Assim, parece que o regresso de justificação poderia continuar de pelo menos dois modos, mesmo para tais crenças introspectivas sobre como as coisas se parecem. O infinitista estaria em comando novamente.
Mesmo para aqueles que sentem o peso de tais considerações infinitistas, no entanto, pode ainda parecer que há crenças em situação epistêmica ainda melhores do que aquelas crenças sobre aparências. Há talvez crenças que, ao colocá-las em questão, entraríamos em uma situação de incoerência (mesmo que tais crenças sejam sobre matérias contingentes). Tais crenças não exigiriam razões. Um exemplo poderia ser a minha crença de que há algo.** Nesse caso parece que, qualquer razão que eu possa tentar oferecer em suporte de tal proposição já parece pressupor que há algo (ou seja, já parece pressupor que o conteúdo daquela crença alvo é verdadeiro). Por exemplo, eu poderia tentar oferecer como razão em suporte de tal proposição a afirmação de que eu penso (o cogito cartesiano), ou então a afirmação de que algo se manifesta a alguém (que pode ser eu), etc. Mas cada uma dessas razões possíveis já tem como condição necessária a proposição de que há algo. É por isso que fica difícil pensar como eu poderia coerentemente colocar em questão aquela crença. Seria este então um caso em que o fundacionista cartesiano sai vitorioso?
Há duas considerações negativas importantes aqui. A primeira é a de que o fato de que toda razão que posso pensar como oferecendo suporte para a crença de que há algo por si só acarreta ou implica que há algo não coloca em questão a possibilidade de haver boas razões disponíveis para crermos que há algo. De fato, um exemplo típico de boa razão é a razão acarretadora: aquela que acarreta a proposição que é objeto da crença alvo (a crença a ser justificada). Assim, do fato de que toda razão que eu possa pensar acarreta que há algo (assumindo que isso seja o caso) não se segue que não haja boas razões possíveis para pensarmos que há algo -- mas tão somente que é fácil ter razões para pensarmos que há algo (note que isso será o caso mesmo se fizermos a concessão de que não é possível coerentemente colocar em questão a crença de que há algo).
A segunda consideração é a de que a concessão ao fundacionista de que a crença de que há algo dispensa o suporte de razões atuais ou disposicionais enfraquece a posição infinitista -- mas não tira a importância principal da tese: oferecer uma solução ao problema do regresso de razões para as nossas crenças sobre coisas contingentes no mundo (crenças 'empíricas' em geral). Note que, mesmo que o infinitista desista da tese universal de que toda crença em proposição contingente exige razões (atuais ou disposicionais), permanece a idéia de que as poucas crenças cartesianas que dispensariam o suporte de razões não seriam suficientes para me dar boas razões para crer que tenho braços, que eu estou lendo um livro, que Muhammad Ali nocateou o oponente, que o gato está no mato, que a orquestra está tocando no teatro, etc. Esse é o famoso problema da 'base magra' -- problema que tem sido boa razão para desistir do projeto fundacionista cartesiano. De pouco adiantaria a presença de algumas poucas crenças contingentes 'básicas' se a cadeia de razões da minha crença de que a orquestra está tocando no teatro não remonta a tais crenças. Na enorme teia de crenças empíricas, o infinito vaza por todos os lados.
Assim, dos dois modos a força das considerações infinitistas parece continuar em operação. Novamente, porém, você pode continuar solicitando razões a mim para crer que isso é o caso...
P.S.: Esse post é resultado de intensas discussões semanais com meus colegas Tito Flores e Napoleão Schoeller. Agradeço aos dois pelo estímulo e pela boa discussão! (Nesse post deixei de preencher várias lacunas para torná-lo mais curto -- deixe-me saber quais lhe parecem relevantes).
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* 'Indubitável' dever ser lido aqui como 'não passível de ser colocado em dúvida de modo racional'. Assim também 'imune à revisão' deve ser lido como 'imune à revisão racional'. De modo geral, o fato de que é simplesmente possível duvidar alguma das proposições em questão não ameaçaria a tese cartesiana.
** Esse exemplo foi-me sugerido pelo meu amigo Napoleão Schoeller.