Autor: Rodrigo Reis Lastra Cid
Muitas pessoas vêem filmes como “A carne é fraca”,
emocionam-se e decidem parar de comer carne. Eu mesmo já fiquei sem comer carne durante 4 anos, depois desse filme. Mas há algum dever
racional de não se comer carne (de ser vegetariano)?
Um dos conhecidos argumentos pelo vegetarianismo é o argumento
da saúde. Ele nos diz que devemos ser vegetarianos, porque assim
seremos mais saudáveis. Repare que este argumento tem influênicas
empíricas: vários estudos não contestados por vegetarianos mostram
que a vitamina B12 tem um papel muito importante em nosso organismo e
que, em geral, os vegetarianos que não tomam suplementos têm
deficiência dessa substância. É difícil obter B12 de fontes
não-animais na quantidade adequada. Muitos vegetarianos obtêm B12
na forma de comprimidos veganos. Por meio deles, um vegetariano pode
ter todos os nutrientes adequados sem prejudicar os animais. O
problema desse pensamento é que uma alimentação que precisa de
suplementação por comprimidos não é uma alimentação, ela mesma,
saudável.
Se o vegetariano desiste da suplementação e resolve ter um cuidado
extremo com a alimentação, para consumir as corretas quantidades
dos nutrientes, então eu diria que essa alimentação deixa de ser
saudável psicologicalmente, pois extremo cuidado na alimentação
não é algo psicologicamente saudável (e está conectado com
patologias como a compulsão alimentar). O peixe, por exemplo, por
fornecer tanto B12 quanto vários outros nutrientes, nos dá uma
fonte de nutrientes diversificados em um só grupo alimentar,
facilitando a alimentação e até a interação social (pela
facilidade de encontrar alimento compatível).
O argumento pela saúde não nos leva a ter de aceitar o
vegetarianismo, já que uma alimentação em grande parte vegetariana
com adicionais de peixe (como a alimentação mediterrânea) seria
melhor do que uma alimentação vegetariana stricto. O argumento pela
saúde pode até nos levar para perto do vegetarianismo, ao mostrar
os perigos da carne vermelha e as vantagens do consumo de frutas e
vegetais. Mas o peixe permanece como uma saudável fonte de proteína,
de vitamina B12 e outros nutrientes; e, junto com uma alimentação
variada, com os cinco grupos alimentares na proporção adequada,
forma uma refeição nutricionalmente completa.
Mas o que o vegetariano nos diz é
que devemos preferir a alimentação vegana, mesmo que venha com
comprimidos e com certos problemas psicológicos (atenção extrema à
alimentação) e sociais (dificuldade de encontrar produtos veganos
em encontros), dado o argumento da proteção ambiental ou
o argumento do sofrimento
ou ambos.
O argumento da proteção ambiental enfoca nos problemas
causados pela pecuária, como o aumento de metano causado pelos gases
dos bovinos, equinos etc, o desflorestamento e consequente redução
da diversidade biológica causada pela criação de pastos, e o alto
consumo de água desses animais de abate. Essas são razões
pragmáticas para preferirmos uma alimentação baseada em vegetais
do que em animais.
Esse é um argumento poderoso. Suponha que seja verdade que a carne
está destruindo o mundo, e que possamos substituí-la por
suplementos vegetais e minerais. Não será um preço caro a se pagar
tomarmos suplementos, se com isso protegermos os nossos recursos
naturais, utilizando-os sustentavelmente.
Contudo, esse argumento não leva em consideração que não
utilizamos os rebanhos só para comer carne. Uma vaca, por exemplo,
tem diversas serventias: sua gordura nos permite fazer giz, plástico,
entre outras coisas; seu órgãos nos permitem fazer medicamentos e
instrumentos musicais; seu sangue nos permite obter soro, que é
usado para fazer vacinas; seus ossos servem para fazer açúcar
refinado; sua pele serve para fazer gelatina e papel de parede etc...
Dado o material animal ser necessário para construir uma série de
objetos ques achamos importantes, temos de pesar a essencialidade
desses produtos contra o mal causado para o planeta. Dado, por um
lado, a quantidade de água gasta, o metano liberado e a quantidade
de diversidade exterminada, e, por outro, a quantidade de produtos
comestíveis e não cosmetíveis derivados do gado, vale a pena
produzi-los? Eu diria que sim, pois essa produção gera muitos
empregos em diversas áreas e gera muitos produtos que nos ajudam no
dia a dia. Sem eles, nossa vida seria extremamente difícil. Versões
veganas são possíveis em alguns casos, embora não seja garantido
que elas serão possíveis em todos; e a pesquisa em versões veganas
gasta dinheiro, o que encarece os produtos e piora a nossa vida como
consumidores.
Pode-se ainda dizer que ao excluirmos o consumo de carne como comida
diminuiríamos significativamente a quantidade de pastos e não
teríamos a cultura de abatedouros, pois não iríamos requisitar
tanto material animal assim. No entanto, dado que vários remédios
são feitos com o cérebro, pâncreas e outros órgãos, entre eles a
insulina (para diabéticos), e dado que só no Brasil o número de
diabéticos é de aproximadamente 12.054.824, precisaríamos matar
muitas vacas para obter a quantidade de pâncreas necessária para a
quantidade de insulina que precisamos. A restrição alimentar,
assim, não causaria impacto na quantidade dos rebanhos, mas apenas
na quantidade de carne que não aproveitaríamos.
Neste ponto, um vegetariano pode dar o terceiro passo e utilizar o
argumento do sofrimento dos animais.
Sustenta-se que questões econômicas não podem nos fazer consumir
animais, pois os animais podem sofrer, e temos de levar em
consideração o sofrimento deles ao realizarmos nossas ações. Esse
é o argumento que mais me incomoda na defesa do vegetarianismo. Ele
me incomoda, porque ele é muito controverso, precisando de uma série
de pressuposições, para funcionar.
Em termos gerais, o argumento diz que devemos atentar para os
interesses de qualquer ser que tem senciência e interesses na hora
de fazer uma avaliação moral e, como os animais têm tudo isso,
deveríamos atentar para os interesses deles também.
Para construir esse argumento, o vegetariano parte dos conceitos de
agente moral e paciente moral,
.i.e., o sujeito que age na ação moral e o sujeito sob o qual ação
moral incide. Daí ele nos diz que aqueles que podem ser pacientes
morais têm certos direitos, tais quais os nossos. Nós somos
sujeitos morais porque além de termos a senciência, i.e., a
capacidade de sentir dor e prazer, temos também a consciência, que
nos permite refletir sobre o que fazemos e tomar decisões
refletidas. Os animais, segundo essa concepção, têm apenas
senciência, mas não têm consciência; por isso não podem ser
agentes morais, mas apenas pacientes morais (tal como tratamos um
bebê). E, sustenta-se, é errado fazer sofrer injustificadamente um
paciente moral.
Wow! Muita coisa, né? Mas vamos por partes. Esse tipo de
vegetariano nos pede para crer que animais têm senciência, mas não
têm consciência. Nos pede para crer também que há objetividade
moral e que a moralidade tem algo a ver com a capacidade de sofrer.
Como os animais são pacientes morais, eles não precisam ter
consideração moral conosco, embora nós, como agentes morais,
tenhamos que levar em consideração os interesses deles. Eu acho que
há dois principais problemas com todo esse pensamento: a postulação
de certa concepção de moralidade e uma certa concepção
injustificadamente restrita de seres sencientes.
Por que devemos levar em consideração os interesses de todas as
pessoas igualmente, ao realizar uma ação moral? Por que os
interesses dos meus familiares e amigos não devem ser priorizados? E
devemos mesmo levar em consideração os interesses de bebês e
pessoas em coma há muito tempo? Esses são assuntos debatíveis; e,
dentro de uma concepção diferente de moralidade, como a que a funda
na política e no interesse pessoal, não temos razão para
considerar todos os seres sencientes como passíveis de consideração
moral, a não ser que nossa relação com eles atrapalhe ou ajude a
sociedade.
Mesmo que aceitemos a concepção de moralidade do argumento do
sofrimento dos animais, não está claro que os animais não têm
consciência. Um leão decide respeitar ou não o território de um
outro, um elefante decide em algum momento partir para o cemitério,
um cão decide ajudar outro cão acidentado (mas não um rato). O que
parece é que muitos animais refletem e tomam decisões, e esses
mesmos animais são bastante restritos em quem serão os objetos da
consideração deles, quem será importante. Um leão não leva em
conta os interesses de uma gazela, um elefante não leva em conta os
interesses de um gato, um chimpanzé não leva em consideração os
interesses de um falcão. Por que nós deveríamos levar em
consideração os interesses e sofrimentos de qualquer outra espécie,
caso os animais sejam conscientes e tomem decisões refletidas?
Mesmo supondo que os animais não tomam decisões refletidas, de
modo que não são conscientes (não nesse nível), ainda restará
mostrar que podemos traçar a fronteira da senciência nos animais.
Tal como mamíferos, aves, anfíbios, répteis e insetos têm
senciência, não teriam também senciência as amebas e, talvez,
outros seres unicelulares? Uma ameba foge, se espetada por uma agulha
de micromanipulador. Deveríamos nos importar com a dignidade delas?
Poderíamos dizer que a ciência diz-nos quem tem senciência. Mas
precisamos das ciências para saber quando o nosso cão ou o nosso
filho está com dores?
Sejam quais forem nossas respostas, o vegetariano por motivações
racionais tem sérios desafios a resolver, desafios esses que
geralmente passam despercebidos na conversa contemporânea sobre
vegetarianismo.