domingo, 11 de janeiro de 2015

Eu sou Charlie?!?




O recente caso do atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, que teve como consequência 12 mortos, e o recentíssimo caso do incêndio ao prédio do jornal alemão Hamburger Morgenpost, trazem a tona questões que devem ser discutidas e rediscutidas. Em primeiro lugar, devemos debater a liberdade de imprensa, que colocada em um pedestal pela grande mídia, sempre em defesa da ‘liberdade de expressão’, coloca como inaceitável uma discussão sobre o tema. Em segundo lugar, se deve debater o problema da violência como resposta ao direito de se expressar dos cidadãos.


Em um jornal, programa de televisão, rádio e etc., a edição tem o papel fundamental de delimitar o que deve ou não ser dito. Dessa forma, já se faz uma escolha pelo que pode ser expresso. Isso nos leva a entender que a liberdade de expressão nunca é plena. Por outro lado, a liberdade de imprensa muitas vezes funciona como maquiagem para um jornalismo barato e de baixo escalão que visa uma publicidade idiota ou ao mais puro charlatanismo. Dizer qualquer coisa é muito diferente de saber o que dizer e, no caso de expressão por expressão, eu prefiro ouvir o latir dos meus cachorros, que mais sapientes são do que muito ser humano por aí...

O discurso, já nos diz Foucault na Ordem do Discurso, pode construir uma verdade entre outras que, aliada ao poder, produz uma palavra relacional, da qual não podemos dissociar mais o que é dito. Os instrumentos de delimitação e controle do discurso são muitos, inclusive defender com palavras aquilo que não se defende com atos. Heidegger em sua obra Língua de Tradição e Língua Técnica dirá que “quem quer que seja pode falar sem cessar e a sua palavra não dizer nada. Um silêncio, pelo contrário, pode dizer muita coisa” (p. 34). Muitos jornalistas perdem a oportunidade de se calar, na ansiar de muito falar, acabam por nada dizer. Outros com pequenos traços, como uma charge, dizem muito e alcançam com seus pincéis lugares pouco esperados. Esse é o caso do Charlie Hebdo, que feriu com suas caricaturas os mais extremos perfis. No entanto, o mundo da Internet se tornou propício para a negação da verdade, devido à facilidade que se tem para a omissão desta. Em nome da dita liberdade de expressão, as maiores atrocidades são ditas e cometidas sem que haja o menor controle sobre estas, acontecendo nos mais variados campos, inclusive no meio jornalístico. Segundo Thomas Mann,

Por que estou contra a doce liberdade de imprensa? Porque só gera mediocridade. A lei que a limita é benéfica, pois uma oposição que não tem limites torna-se insignificante. E a limitação a obriga a ser engenhosa, e isso é uma vantagem muito grande. Aquele que tem toda a razão pode ser direto e grosseiro (MANN, 2000. p.299).

A imprensa, assim como as demais mídias e os demais defensores da liberdade de expressão, não quer ser impedida de dizer nada, no entanto, estes mesmos também não querem ser responsáveis por nada dito. Ora, é inevitável que respostas virão sobre aquilo que se diz e estas, na maioria das vezes, não são boas. Mas é o preço que se paga por dizer algo. A liberdade de imprensa não quer discutir a sua própria liberdade, não quer dar voz a qualquer um que coloque isso em questão. O que significa regulamentar a imprensa? Por que a imprensa não pode ser regulamentada? Isso realmente fere o direito à liberdade de expressão, ou apenas fere ao jornalismo mais medíocre que nada tem para dizer, mas nos cansa com o seu interminável falatório? A discussão é saudável e deve ser exercida. Um assunto não deve ser tabu. Por que a grande mídia não aceita colocar em pauta a liberdade de imprensa? Acusa de censura aqueles que ousam disso falar. Mas não seria a própria não discussão já uma forma de censura?

O nosso segundo ponto implica em discutir os extremos que levam como uma resposta à palavra dita o uso da violência. Nenhum caso de liberdade de expressão deve justificar um ato de violência. O atentado contra os jornais é inadmissível, mas não é indiscutível. Sabemos que o mundo nunca foi um lugar pacífico para se viver e que a disputa pela verdade muitas vezes levou a casos de derramamento de sangue. A extrema direita que defende a xenofobia e a pureza cidadã é tão culpada quanto o terrorismo que mata vítimas em nome de uma causa qualquer. O sangue corre em ambas as mãos. Nesse caso não há vítimas, mas consequências. Devemos repensar a tolerância seja ela de cor, credo, política ou opção sexual. Muitas vezes palavras podem ferir mais do que armas e, antes de as proferir, deveríamos fazer uma reflexão sobre o outro. Quem é esse outro do qual estamos falando? Não seria melhor ficarmos calados em certas situações? A defesa irrestrita à liberdade de expressão pode, muitas vezes, representar um extremo. O indivíduo que irrestritamente quer dizer o que for só para levantar para si a bandeira da liberdade de expressão, pode na verdade estar apenas encobrindo seu extremo egoísmo, sua inabilidade para se colocar no lugar do outro e sua incapacidade para pensar em como esse outro se sente; em outras palavras, a liberdade que se ganha nesses casos nada mais é do que um orgulho sobre o outro do qual falamos, um olhar de cima e uma superioridade de dizer: “eu sou melhor porque falo o que eu quero”. Lembremos que Hitler também disse o que queria e, não conformado apenas em dizer, fez tudo que disse. Liberdade de expressão ou terrorismo disfarçado de liberdade? Em que medida a palavra está distante da ação?


BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

HEIDEGGER, M. Língua de Tradição e Língua Técnica. Tradução de Mário Botas do Original: Langue de Tadition et Langue Technique. Lisboa: Vega, 1995.

MANN, T. Carlota em Weimar. Tradução de Vera Mourão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.

MENEZES, L. M. B. R. Orkut: Liberdade e Alienação. Artefactum, v. 2, n. 2, p. 111-118, 2009.