Em 1962 publicou-se o
livro mais influente e citado da história da filosofia da ciência:
A estrutura das revoluções
científicas, de Thomas Kuhn (1922-1996). Sua tese mais
importante é que o desenvolvimento da ciência não é linear e
cumulativo, como sugerem boa parte dos manuais acadêmicos e
escolares. A ciência de hoje não é mera extensão e sofisticação
da ciência de outrora, mas produto de alterações radicais nas
linguagens, métodos e problemas das disciplinas científicas. É um
equívoco achar que hoje temos melhores soluções para os mesmos
problemas de que se ocupavam os cientistas do passado. Pesquisa-se
hoje, por exemplo, se no centro de todas as galáxias há um buraco
negro. Como os conceitos de ‘galáxia’ e ‘buraco negro’
inexistiam na astronomia antiga, as hipóteses atuais sequer podiam
ter sido formuladas na ciência do passado. Se é certo que hoje
temos predições mais precisas sobre um número maior de fenômenos
naturais, disso não se segue que esses avanços nas capacidades
preditivas tenham sido conquistados por mera extensão e ampliação
da ciência de antigamente. A história da ciência contém rupturas,
que Kuhn chamou de “revoluções”.
Ainda jovem, Kuhn foi
convidado a ministrar um curso sobre a física de Aristóteles. Para
sua surpresa, contudo, não apenas não conseguia compreender bem o
texto de Aristóteles, como tampouco conseguia dar sentido ao seu
modo de pensar: alguns exemplos e ilustrações apresentados como
evidências de teses centrais pareciam-lhe irrelevantes, algumas
classificações pareciam-lhe arbitrárias e injustificadas. Essas
dificuldades não se deviam a problemas de tradução do grego
antigo, mas à própria estrutura interna das teorias, que parecia
não fazer sentido. Esse estranhamento inspirou Kuhn a empreender uma
investigação mais sistemática da história da ciência, que
resultou, alguns anos mais tarde, no livro A revolução
copernicana (1957).
Paradigmas
Em A estrutura
das revoluções científicas,
Kuhn sistematizou suas conclusões anteriores, formulando-as de modo
instigante e inovador. A história da ciência, ele sustentou, está
dividida em períodos de “ciência normal” e períodos de “crise
e revolução”. Os primeiros são caracterizados pela vigência de
“paradigmas”: modelos de teoria e prática científica que guiam
as atividades científicas durante um certo tempo. Esse modelo contém
elementos teóricos (algumas teses ou leis da natureza muito gerais e
básicas), elementos metodológicos (um conjunto de instrumentos e
práticas de pesquisa), e elementos sociais (um conjunto de
compromissos pessoais e institucionais) que permitem que a atividade
científica seja um empreendimento colaborativo e coordenado. Os
paradigmas são adotados durante as revoluções, e posteriormente
tornam-se pressupostos não questionados da prática científica
normal. Eles induzem uma maneira de ver a realidade que é largamente
compartilhada e não questionada. A atitude dos cientistas é nesse
aspecto dogmática: para fazer parte de uma comunidade
científica é preciso aceitar aqueles fundamentos, usar os métodos
de pesquisa considerados aceitáveis pela comunidade etc.
Contra Popper
Ao apresentar esse
elemento dogmático como constitutivo da prática científica normal,
Kuhn contrapôs-se à concepção de ciência de Karl Popper. Segundo
este último, um dos traços característicos da atividade científica
seria uma atitude crítica constante: uma disposição de revisar
qualquer tese ou pressuposto, se indícios contrários
apresentarem-se. Kuhn nega que isso ocorra durante os períodos de
ciência normal. Diferente de Popper, Kuhn afirma que essa disposição
crítica é limitada, e só se estende aos fundamentos da ciência em
períodos de crise e revolução.
Crise e
revolução
Esses são períodos
extraordinários em que o paradigma anterior não é mais capaz de
produzir teorias capazes de resolver problemas julgados importantes
pela comunidade científica. A persistência de fenômenos
inexplicados, ou anomalias, produz então um crescente sentimento de
desconfiança com relação a aspectos centrais do paradigma
anterior. Isso então permite o surgimento de escolas de pensamento
concorrentes, que propõem modelos alternativos de ciência. A
resolução desses períodos de crise ocorre quando um desses grupos
concorrentes consegue apresentar um modelo novo suficientemente
eficaz, capaz de angariar a adesão dos demais membros da comunidade.
Isso é o que Kuhn chama de revolução científica.
A impregnação
teórica das observações
Como os paradigmas moldam
os aspectos mais básicos da concepção que os cientistas têm da
realidade, a própria percepção (a observação) é afetada.
Cientistas que adotam paradigmas diferentes veem o mundo de modos
diversos. Essa é a chamada tese da
impregnação teórica das
observações. Aquilo que o cientista observa depende de
suas concepções prévias. Isso tem várias consequências
interessantes para a ciência, como a chamada tese da
incomensurabilidade: teorias produzidas em paradigmas distintos
não são completamente intertraduzíveis, e por isso não têm como ser
apresentadas em uma linguagem neutra. Qualquer apresentação de uma
delas forçosamente adota um vocabulário que não faz sentido na
linguagem da outra. Algumas noções centrais da física aristotélica
ou newtoniana, por exemplo, não fazem sentido na física
contemporânea, e vice-versa.
Critérios de
decisão
Um dos aspectos do livro
de Kuhn que mais impacto causou foi sua sugestão de que a ciência,
tradicionalmente um modelo de racionalidade, recorre a elementos
subjetivos e irracionais em períodos cruciais. Boa parte das
críticas recebidas por Kuhn nas décadas de 1960 e 1970 tinham
justamente esse ponto em vista. Alguns autores, em particular Lakatos
e Laudan, procuraram conciliar elementos da análise historiográfica
de Kuhn com critérios objetivos de decisão, mas não está claro se
seus empreendimentos lograram êxito. Em escritos posteriores, Kuhn
volta-se novamente para esse tema, e introduz a noção de valores
científicos (precisão, simplicidade, coerência etc.) como guias
objetivos na escolha de hipóteses rivais em períodos
revolucionários. Mas, ao fazê-lo, ressalva que o conceito
racionalidade e objetividade sugerido por suas análises históricas
não é aquele postulado pela metafísica tradicional.
Um livro clássico
Ao longo desses últimos
50 anos, o livro de Kuhn tornou-se um clássico. Antes dele, as
discussões em filosofia da ciência giravam primariamente em torno
de temas conceituais abstratos (indução, explicação, verificação,
refutação etc.); depois dele, a história da ciência passou a
funcionar como guia e baliza da filosofia da ciência. Em razão
disso, a imagem que temos hoje da ciência é menos ingênua e mais
rica. Por essas e outras razões, o livro de Kuhn é hoje leitura
obrigatória para todos aqueles que se dedicam à filosofia e à
história da ciência.
Autores
desta postagem:
Rogério Passos Severo, Gilson
Olegario da Silva, Laura
Machado
do
Nascimento e Tamires
Dal
Magro (Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade
Federal de Santa Maria)