sábado, 11 de agosto de 2012

Entrevista de João Maurício Adeodato para o Blog Investigação Φ Filosófica

Entrevistador: Ítalo Oliveira


João Maurício Adeodato é advogado e professor titular da tradicional Faculdade de Direito do Recife, hoje integrada à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-doutor na Universidade de Mainz, dentre outras instituições alemãs, pela Fundação Alexander Von Humboldt, mestre, doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); doutor Honoris Causa (2009) pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). O professor Adeodato criou e orienta o Grupo de Pesquisa sobre retórica das ideias jurídicas, da Faculdade de Direito do Recife; tem trabalhos publicados em diversas línguas e ano passado publicou o livro Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. Gentilmente, ele nos concedeu essa entrevista via e-mail.

Blog Investigação Φ Filosófica: Há críticas metafilosóficas contemporâneas contra as pretensões tradicionais dos filósofos em sustentar um saber específico que fundamente a priori o resto da cultura, especialmente o conhecimento científico e as práticas morais. Por outro lado, nas próprias de escolas de direito, há quem pense a filosofia do direito como abstrata demais e inútil para a prática jurídica e as discussões forenses. Afinal, o que o filósofo do direito pode fazer atualmente? Que tipo de coisa ele pode trazer de interessante para essa prática?

João Maurício Adeodato (JMA): A tarefa da filosofia do direito pode ser resumida em dois grandes campos de investigação. Por um lado, procura saber o que é o direito, como ele pode ser descoberto, conhecido, consultado. Por exemplo: o direito vem objetivamente da lei, isto é, a lei tem um sentido específico e claro para todos que leem seu texto? São mesmo os legisladores – senadores, deputados e vereadores – que criam o direito? Ou os textos legais não têm um sentido próprio e o direito é revelado a nós por aquilo que os juízes decidem que a lei quer dizer naquele caso, diante de um conflito concreto? E quando a sociedade, aquelas pessoas a quem as leis se dirigem (por vezes até os órgãos do próprio Estado não seguem a lei), o direito é aquilo que as leis ou as decisões judiciais dizem ou consiste naquilo que seus destinatários – as pessoas, o povo – efetivamente fazem? Este é o problema do conhecimento do direito, o problema de saber o que é uma norma jurídicaPor outro lado, a filosofia do direito ocupa-se da questão do valor, da ética no direito. Por exemplo: o direito justo é aquilo que os poderes estabelecidos (executivo, legislativo, judiciário) decidem que é justo ou ele está acima da vontade dos governos? Em outras palavras: existe uma regra ética que vale acima das leis, acima da própria Constituição? Digamos, uma regra que afirme que o aborto é crime independentemente do que digam a lei e os juízes, mesmo que a Constituição o permita? Ou que proteja os direitos humanos de todos, mesmo quando os governos nacionais e o seu direito os neguem a determinados grupos, como fizeram os nazistas em relação aos judeus ou os brancos em relação aos negros sul-africanos? Este é o problema do direito subjetivo. As repercussões práticas dessas duas ordens de problemas são imensas e muito importantes, dizem respeito à própria essência do que se entende por “direito”. Daí o título de meu novo livro.

Blog Investigação Φ Filosófica: Qual atual estado das pesquisas nas pós-graduações em direito no Brasil, especialmente no campo de filosofia do direito? Há colaborações e investigações afins? As pesquisas aqui estão desenvolvendo-se em sintonia com os trabalhos em nível internacional?

JMA: Não. Os cursos de direito brasileiros não têm professores suficientemente preparados, sabemos quão mal a educação vai entre nós e a filosofia do direito não poderia ser uma exceção. Não é só uma questão das dificuldades próprias da filosofia do direito, trata-se de um desvio metodológico do ensino do direito brasileiro como um todo. As disciplinas dogmáticas também são muito mal conduzidas. A lei do menor esforço faz com que a imensa maioria das faculdades reduza seu ambiente de estudo a relatos descritivos do direito estatal (dizer o que dizem a lei e a jurisprudência) que devem ser memorizados pelos alunos. Isso não os prepara para a vida profissional, na qual se defrontarão com problemas e não com testes de múltipla escolha. Contudo, a culpa não é só do professor. O aluno de direito no Brasil em geral não estuda, por vezes nem pode estudar, porque o tempo diário só é suficiente para as aulas, mais as oito, dez horas de trabalho que lhe possibilitam pagar a faculdade. Esse aluno espera receber nas aulas as informações que deveria obter sozinho, estudando, quando nelas deveria estar debatendo problemas jurídicos. O governo entregou a educação superior ao empresários e não fiscaliza a lógica do lucro, a situação é muito ruim.

Blog Investigação Φ Filosófica: No seu livro mais recente, o senhor investiga temas em filosofia do direito sob uma perspectiva retórica. Desde Platão, a maioria dos filósofos têm sido, de certa maneira, inimigos da retórica, associada aos sofistas – avessos a ideia de verdade e amantes sagazes da arte de convencer (em certa oposição a saber, conhecer); há uma conhecida distinção entre lógica e retórica. Os filósofos, especialmente os filósofos do direito, ainda veem a retórica dessa maneira? Pode nos falar um pouco sobre algumas das teses abordadas em seu livro, que inclusive defende que a retórica é um tipo de filosofia?

JMA: Esse meu novo livro foi escrito a princípio como tese de livre docência para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, não é um livro dirigido ao grande público. Defende basicamente três teses originais. A primeira é que retórica é filosofia, opõe-se a um tipo de filosofia, a filosofia ontológica, mas não se opõe à filosofia como um todo. Os ontológicos apossaram-se da filosofia a tal ponto que os próprios retóricos passaram a acreditar que não faziam filosofia, pois esta consistiria na busca da verdade. Mas se se prescinde do conceito de verdade, retórica é filosofia e filosofia é a busca da sabedoria, não da verdade. A segunda é que a retórica não se reduz a mero ornamento, enfeite do discurso, ainda que essa seja uma de suas importantes funções, e menos ainda se reduz a ornamentos antiéticos para enganar incautos, mas esta também constitui uma de suas habilidades. Em outras palavras: nem cuida somente da beleza e da sedução por si mesmas, nem cuida somente da beleza e da sedução para servir a uma “má” ética. A linguagem comum opõe retórica a ação, como se fazer “apenas” retórica não somente implicasse um jogo vazio de belas palavras, mas também de mentiras e meias-verdades. Retórica é em qualquer sentido uma forma de ação, sem dúvida, uma das mais civilizadas delas. Finalmente, a terceira tese sugere que a retórica não consiste apenas em persuasão, no estudo e aplicação de meios para persuadir, vai além disso e envolve a ameaça de violência e o engodo. Nem sequer a retórica estratégica (que é apenas um tipo de retórica), na qual a persuasão ocupa sem dúvida o lugar principal, reduz-se às metodologias persuasivas. Esta tese, mais ainda do que a primeira, contradiz a maioria dos próprios retóricos.

Blog Investigação Φ Filosófica: Nesse livro e em outros, o senhor defende uma relação estreita entre ceticismo, especialmente o pirrônico, e tolerância, enquanto a ideia de verdade é associada pelo senhor à intolerância. Pode nos falar mais sobre isso? Há quem defenda exatamente o contrário, dizendo que o ceticismo leva ao relativismo, que levaria ou à apatia política ou a um individualismo excessivo, e que a ideia de verdade garante a possibilidade de entendimento entre os diferentes povos e assegura a justificação de direitos válidos para todos os seres humanos.

JMA: Não consigo seguir esse raciocínio. A intolerância nasce com a ideia revolucionária de que só há um Deus e todos os demais são falsos, quando os diferentes monoteísmos passam a se digladiar, assim como as heresias, concepções de verdade religiosa que diferiam daquelas dominantes. Acho que nada é mais tirânico do que a verdade. Mais ainda, o pior é que estou convencido de que a verdade não existe. E sua alegação só funciona em campos do conhecimento como as matemáticas e as lógicas, em assuntos sem muita importância para a vida humana. A maior popularidade dos ontólogos tem sido apontada por diversos autores e várias são as razões para isto, dentre as quais parecem estar duas básicas: em primeiro lugar, necessidades atávicas de crença e de segurança, pois o ceticismo assusta as pessoas em suas incertezas e dilemas existenciais; em segundo lugar, um entendimento inadequado das diversas perspectivas céticas, ao longo de séculos de filosofia ontológica. É para o esclarecimento deste último ponto que se tenta contribuir agora. Dentre as formas antigas de ceticismo, o pirronismo (a partir do nome de seu fundador, Pírron de Elis) é aquela que chegou até o presente de forma mais completa, talvez até por mero acaso, didaticamente exposta na obra de Sextus Empiricus. Ao mesmo tempo, o pirronismo é uma importante expressão da cultura greco-romana, sendo essencial para entender o contexto filosófico em que surgiu e triunfou o cristianismo. Com suas críticas contundentes à verdade filosófica, colocando dúvidas sobre os principais postulados das diversas correntes, o ceticismo enfraqueceu as “verdades” da filosofia edificante e racionalista dominante e preparou o terreno para a nova forma cristã de pensamento – que por seu turno também nada tinha a ver com ele –, mais embasada na fé, na crença, na vontade, mais descrente da razão demonstrativa. Mas há também as formas mais recentes de ceticismo como a “moralística” de Montaigne e Charron, o ceticismo iluminista de Bayle e Hume, o ceticismo antropológico de Helmut Plessner,  o ceticismo historicista de Burckhardt ou o anti-historicista de Löwith, o que permite afirmar ser o ceticismo uma tradição antiga e facilmente identificável na filosofia ocidental. O Brasil não foge a isso e posso mencionar, além do trabalho de Tercio Ferraz Jr. e do meu próprio na filosofia do direito, a obra de Renato Lessa no campo da filosofia.