segunda-feira, 23 de abril de 2012

Três Revoluções em Geometria, por Prof. Luciano Boi


30 de Abril, 2 e 4 de Maio | 16h-19h
FCUL | CFCUL, Sala 8.2.23


O CFCUL convida todos os interessados em participar num curso livre denominado "Três Revoluções em Geometria", pelo professor Luciano Boi (EHESS, Paris). Este curso está dividido em três sessões, a decorrer no dia 30 de Abril, 2 e 4 de Maio. 

Sessão 1 (30.04.2012): “Uma primeira «revolução» nas matemáticas: a passagem de um espaço único e plano a uma pluralidade de espaços curvos e multidimensionais (Riemann, Klein, Poincaré)”

Nesta primeira sessão, interrogar-nos-emos sobre o estatuto da geometria tal como ela se desenvolveu entre a segunda metade do séc. XIX e o início do séc. XX, isto é, entre os trabalhos de Riemann, Clifford, Beltrami, Helmholtz, Klein, Lie e Poincaré, e os de Hilbert, Cartan e Weyl. Ao longo deste período, a geometria conhece a transformação — sem dúvida mais fundamental — da sua história, tanto no que diz respeito aos seus métodos como aos seus conceitos. As relações entre a geometria e os outros ramos da matemática, em particular a álgebra e a análise, saíram profundamente modificadas, bem como as suas relações com a física e com outras ciências naturais.

Consequentemente, não se falará mais da geometria ou do espaço, mas das geometrias e dos espaços. O reconhecimento, sobre o plano matemático, de uma pluralidade de geometrias constituiu um facto histórico capital. Pela primeira vez, com a descoberta das geometrias não euclidianas, a concepção de uma geometria única e de um espaço absoluto encontra-se realmente posta em questão, a favor de uma outra, radicalmente diferente: enquanto ciência das formas «puras», a geometria pertence às matemáticas na mesma medida que a aritmética e a álgebra; enquanto ciência das formas reais, ela está intimamente ligada à física. Riemann foi sem dúvida o primeiro a explicitar matematicamente a dupla natureza do espaço. Na sua famosa dissertação de 1954 «Sobre as hipóteses nas quais a geometria se fundamenta» («Über die Hypothesen welche der Geometrie zu Grunde liegen»), o autor introduz ideias matemáticas absolutamente novas cujo valor filosófico e o significado para a física são, à época, revolucionários. Seguindo Gauss, mas generalizando significativamente as intuições deste último, Riemann mostra que o espaço euclidiano, de um ponto de vista puramente matemático, não era mais que um caso particular entre outros espaços possíveis, e que não havia razão para pensar que o espaço físico correspondia àquele que era descrito pelos axiomas da geometria euclidiana. Consequentemente, podiam não apenas existir mais geometrias, mas ainda mais espaços geométricos (tipos de variedades) e mais espaços físicos diferentes. Tratou-se seguramente de um ponto de viragem decisivo que desde logo transformou profundamente a paisagem das matemáticas e depois também a matemática. Na apresentação, analisaremos as etapas que conduziram a esta nova concepção e às ideias matemáticas que lhe estão no fundamento. Em particular, analisaremos o modo de formação do conceito de variedade (Mannifaltigkeit) em Riemann e o modo como se constituiu a geometria diferencial moderna. O conceito geométrico de variedade mantém uma ligação essencial com o conceito funcional de «superfície de Riemann», podendo os dois ser explicados graças a uma concepção qualitativa ou espacial das matemáticas. Daremos igualmente uma interpretação epistemológica do conceito de variedade (espaço curvo a várias dimensões) e da sua significação. Finalmente, mostraremos que o conceito de variedade de Riemann e a teoria espacial da matéria de Clifford, onde o espaço é essencialmente identificado com a curvatura, estão na origem de um fecundo movimento de geometrização da física, que culminou na teoria da relatividade geral de Einstein.

Sessão 2 (02.05.2012): “Uma segunda «revolução» nas matemáticas: a nova interacção entre geometria e física, de um espaço pré-determinada a um espaço-tempo dinâmico (Clifford, Minkowski, Einstein, Weyl)”

A existência de várias geometrias que se concretizam igualmente do ponto de vista da física (para além da física matemática) foi mostrada de modo decisivo graças à teoria da relatividade de Einstein, ainda que, em particular Riemann e Clifford, já tivessem admitido que uma geometria diferente da euclidiana podia ser aplicada ao nosso espaço físico. Mas para chegar a admitir tal, foi preciso antes criticar profundamente a concepção que se tinha de espaço, o qual não mais se podia pensar como o lugar onde as figuras podiam ser construídas, nem como aquele onde se moviam os corpos. No seu trabalho fundamental sobre as hipóteses da geometria, Riemann mostrou que a propriedade da continuidade está ligada à estrutura métrica do espaço, o que significa que cada ponto, bem como as suas variações infinitesimais, são representáveis por uma função contínua dos seus diferenciais. Mais ainda, ele exige que tais funções sejam continuamente diferenciáveis, o que definiu o nível diferenciável do contínuo, após ele ter reconhecido a existência de um primeiro nível topológico da continuidade, que podia ser designado pelo da dimensionalidade – o que pode igualmente exprimir-se dizendo que o mundo em que vivemos é um contínuo espacial a três dimensões (ou uma variedade tridimensional). Mas Riemann avança a possibilidade de que exista um terceiro nível do contínuo, cuja natureza não é de todo assimilável às outras que acabámos de mencionar, e onde os seus princípios constitutivos não fariam parte do modo como os representamos abstractamente, como é o caso do discreto (as variedades discretas, como as variedades aritméticas ou algébricas, são constituídas por elementos numeráveis, ao passo que as variedades contínuas constituídas por pontos são mensuráveis através de funções da distância). De acordo com Riemann, as variedades contínuas (como as variedades diferenciáveis) podiam ter uma origem de natureza dinâmica, ou seja, a propriedade de continuidade estaria ligada ao conteúdo físico do espaço. Dito de outro modo, os fenómenos físicos e o tipo de espaço nos quais eles se desenrolam são indissociáveis: o espaço imaginado por Riemann é não-vazio (diferentemente do pensado por Newton) e dotado de efeitos físicos que se propagariam localmente. Após Riemann, Clifford teorizou explicitamente um programa coerente para uma interpretação geométrica dos fenómenos físicos. Clifford retoma a intuição de Riemann e põe a hipótese de que o espaço físico (tanto à escala macroscópica como à microscópica) não seja nem homogéneo nem isótropo, que seja curvo e não plano (como na geometria euclidiana), e susceptível de variar em presença de certos efeitos físicos; e que, além disso, o comportamento da matéria depende do modo como varia a curvatura do espaço. Nós mostraremos que a teoria espacial da curvatura e da matéria desenvolvida por Clifford desempenhará um importante papel nos desenvolvimentos da relatividade geral até recentemente, em particular na elaboração da teoria geometrodinâmica por J. A. Wheeler. A influência de Riemann (e, indirectamente, de Clifford) sobre a nova física, e em Einstein em particular, foi enorme. Com efeito, a relatividade geral deste último está fundada no conceito de variedade diferenciável de Riemann, o qual foi provido de uma métrica não euclidiana (hiperbólica, elíptica ou outra), e investido de objectos geométricos complexos a que chamamos tensores de curvatura. Estes são objectos geométricos que têm também uma significação física, na medida em que correspondem aos potenciais gravitacionais da relatividade geral. O que quer dizer, noutros termos, que as propriedades dos fenómenos que se desenrolam à escala do nosso Universo repousam sobre a estrutura geométrica e topológica de uma variedade pseudo-riemanniana, da qual o espaço-tempo de Einstein constitui o modelo físico por excelência.

Sessão 3 (04.05.2012): “Uma terceira «revolução» nas matemáticas: a geometria e o engendramento de formas naturais e perceptivas (D’Arcy Thompson, Thom, os neo-gestaltistas)”

A teoria das catástrofes elaborada por René Thom nos anos 1960 é um domínio da topologia diferencial e faz parte da teoria matemática das singularidades das aplicações diferenciáveis, fundada pelo matemático H. Whitney e depois desenvolvida por John Mather. A teoria das singularidades é uma generalização dos minima e dos maxima das funções. Whitney substitui as funções por aplicações (mappings), isto é, colecções de funções múltiplas de diversas variáveis. As bifurcações dos sistemas dinâmicos de A. Andronov, já introduzidas por Henri Poincaré no início do século passado, no quadro dos seus trabalhos sobre a mecânica celeste e sobre sistemas de tipo caótico, constituem um dos ingredientes matemáticos essenciais da teoria das catástrofes. As bifurcações são objectos geométricos caracterizados por um comportamento instável; os lugares onde uma função deixa de ser linear e adquire mais determinações. Num sentido mais geral, a palavra bifurcação indica todas as espécies de reorganizações qualitativas ou de metamorfoses de entidades diferentes, resultantes de uma mudança de parâmetros dos quais elas dependem. A teoria das catástrofes visou descrever os fenómenos descontínuos, auxiliada por modelos matemáticos contínuos. Ou seja, a teoria tem por objectivo construir modelos dinâmicos contínuos os mais simples possíveis, que possam engendrar morfologias, dadas empiricamente, ou conjuntos de fenómenos descontínuos. Nós mostraremos que a noção de singularidade é uma das mais fundamentais nas matemáticas; ela está no centro da teoria das funções de diversas variáveis complexas, da teoria das superfícies de Riemann, da geometria algébrica, da topologia diferencial, e, claro, da teoria qualitativa dos sistemas dinâmicos. As singularidades da função são em certo sentido os vestígios da topologia que «matámos»: eliminámos a topologia da variedade aplicando-a no eixo real, mas a topologia resiste, ela «grita», e os seus gritos manifestam-se pela existência de pontos críticos. Daí a noção de ponto singular que desempenha um papel muito fundamental na teoria das catástrofes. O postulado de base da teoria das catástrofes generalizada é que a forma sob a qual todo o objecto surge a um observador não é senão o conjunto de catástrofes associado a uma certa dinâmica. É nesta medida que a fronteira que o separa do meio exterior, em regiões onde ela não apresenta acidentes, será mais frequentemente associada a uma catástrofe do tipo dobra (pli). Mas ela pode abrir um sulco, expandir-se numa bolha, produzir uma pestana, caso em que será preciso apelar à prega (fronce), à cauda de andorinha (queue d’aronde), ao umbilico elíptico (ombilic elliptique). Em suma, muitas situações complexas podem ser encontradas, as quais apenas a teoria generalizada pode descrever: catástrofes em bolhas, em pedaços, laminares, filamentosas. Elas fazem parte da nossa paisagem quotidiana, ao ponto de já não lhes prestarmos atenção: é a espuma de uma caneca de cerveja, é a condensação em chuva de uma nuvem, são as fendas de uma parede velha, são os desenhos deixados sobre a areia pela maré que vaza. Há um tipo de realidade geométrica ideal nos sistemas dinâmicos estudados por Thom, e é talvez a razão pela qual a forma de uma onda quebrando sobre a praia evoca, irresistivelmente o umbilico hiperbólico. Mas estes sistemas dinâmicos (fenómenos naturais, processos vivos) têm também, e ao mesmo tempo, um conteúdo significante, de significações que, por intermédio de certas pregnâncias físicas (luz, som, calor, etc.), investem o campo dos observadores ao reconfigurar os seus centros de interesses e fazendo variar os indíces de atenção a respeito dos objectos e dos acontecimentos. Mostraremos que a teoria das catástrofes é, antes de tudo, uma teoria da acção, uma teoria dinâmica dos possíveis desenvolvimentos das formas. Dito de outro modo, aquilo por que se interessa a teoria das catástrofes é pela formulação de uma teoria dinâmica do engendramento, da mudança e da estabilização das formas naturais e vivas.

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Luciano Boi is Professor at the Centre d’Analyse et de Mathématique in École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Made his studies in Philosophy, Mathematics and Physics and delivered, in December 1997, is Habilitation, Géométrie et philosophie de la nature. Sur les interactions des mathématiques avec les sciences naturelles et humaines. Researches mainly on the interface between mathematics, sciences of nature and of the living; published extensively on subjects of topology in biology, morphology and morphogenesis, on the relationship between geometry and physics, and on geometry, perception and spatial cognition. Author of several books and studies, his latest title is The quantum vacuum: a scientific and philosophical concept. From electrodynamics to string theory, and the geometry of the microscopic world (The John Hopkins University Press, Baltimore, 2011).

Mais info: http://cfcul.fc.ul.pt/