sexta-feira, 15 de abril de 2011

O argumento cosmológico e os argumentos cosmológicos kalam


O Argumento Cosmológico é dividido em duas partes: (I) Parte da premissa de que as coisas são causadas por outras e tenta provar que há um ser necessário ou que há um ser que causa mudança nas coisas e é imutável. Para, então, (II) tentar provar que esse ser tem necessariamente os atributos do deus teísta.


Geralmente, os filósofos não costumam sair da primeira parte desse argumento. Esta parte, tal como provida por Anselmo (Rowe, 2007, cap. 2), é o seguinte:

(1) Todo ser ou é dependente ou auto-existente;
(2) nem todo ser pode ser dependente.
(3) Logo, existe um ser auto-existente.

Anselmo nos fala que um ser dependente é aquele cuja existência se explica por outro ser e que um ser auto-existente é um ser cuja existência é explicada pela própria natureza daquele ser. Por exemplo, a existência de um bebê se explica pela existência de sua mãe e de seu pai (numa certa relação); enquanto, a existência do calor do fogo se explica pela natureza do fogo, que é quente1. Daí ele nos dá três opções pelas quais se explica a existência de qualquer ser ou fato positivo: (i) se explica por alguma outra coisa, (ii) por nada, ou (iii) pela natureza do próprio ser ou fato. Só para medida de esclarecimento: um fato positivo é um fato que afirma como a realidade é (e.g.: b é P), enquanto um fato negativo nega que a realidade seja de um determinado modo (e.g.:b não é P).
Para que a premissa 1 – todo ser ou é dependente ou auto-existente – seja verdadeira, Anselmo teve de excluir que a existência de qualquer coisa se explicasse por nada. Para isso, ele apela para o Princípio da Razão Suficiente (PRS), que diz que: “tem de haver uma explicação (a) da existência de todo e qualquer ser e (b) de qualquer fato positivo, seja ele qual for” (Rowe, 2007, p. 29). Se pelo menos o PSRa for verdadeiro, então a premissa 1 também é verdadeira, pois se a existência de qualquer ser não pode ser explicada por nada, então só será possível que ela se explique por outro ser (ser dependente) ou pelo próprio ser (ser auto-existente). Os principais argumentos pela verdade do PRS são:

(c) ele é intuitivo, ou seja, se refletirmos o suficiente, veremos que ele é verdadeiro,
(d) ele é um pressuposto da razão: para pensarmos em procurar explicações para existências, temos de pressupor que ele é verdadeiro.

E as objeções principais a esses argumentos são:

(c’) nem todos têm a intuição de que ele é verdadeiro, e que
(d’) a realidade não precisa satisfazer os nossos pressupostos.

Talvez exista algo que não tenha explicação, diria o objetor do PRS. Isso proveria um empate, pelo menos provisório, para a disputa com relação à verdade do PRS. Assim, a justificação pela verdade da premissa 1 fica dependendo de uma justificação pela verdade do PRS.
Com relação à premissa 2 – nem todo ser pode ser dependente – ela se baseia no seguinte argumento:

(A) Tem de haver um primeiro ser para iniciar qualquer série causal.
(B) Se todo ser fosse dependente não, haveria um tal primeiro ser.
(C) Logo, nem todo ser pode ser dependente.

A objeção mais comum a esse argumento é que ele ignora a possibilidade de uma série infinita no passado. Se houve uma série infinita de seres dependentes para o passado, não é preciso e nem coerente que tenha havido um primeiro ser para iniciar a série causal de seres dependentes de que somos fruto.
A resposta a isso é rotineiramente aceitar que pode haver tal série infinita, e indicar que a partir dessa aceitação, a própria série infinita careceria de explicação – já que não podemos explicar por que há seres de um certo tipo apelando para afirmação de que sempre houve seres daquele tipo. Por exemplo, não podemos explicar a existência da espécie humana falando que sempre houve humanos. Novamente, a objeção aqui seria a de que o defensor do argumento cosmológico trata a coleção de seres dependentes como se fosse um ser dependente e, daí, exige explicação para sua existência. O objetor do argumento cosmológico tenta dizer que o defensor infere erroneamente a partir de o fato de os seres dependentes terem causa, que sua coleção também teria. Mas não é preciso pensar dessa forma – diria o defensor – é possível pensar que a coleção é diferente de seus membros e, assim, utilizar o PRSa – tem de haver uma explicação para a existência de todo e qualquer ser – e pedir uma explicação para a existência de ambos, dado que a explicação da existência de um ser humano particular (a relação entre os gametas de seus pais biológicos) é diferente da explicação da existência da espécie humana (evolução a partir de primatas – se o evolucionismo estiver certo).
O objetor do argumento cosmológico tenta, então, defender que uma explicação para a existência da coleção de seres dependentes não é nada mais que a união das explicações para as existências de cada um de seus membros. E, assim, não seria preciso supor a existência de um ser auto-existente para explicar a existência da série de seres dependentes. A resposta a essa objeção, utilizando o PRSb – tem de haver uma explicação de qualquer fato positivo, seja ele qual for – seria que ainda nos faltaria saber a explicação para o fato de que há seres dependentes. Dessa forma, se o PRSb estiver correto e se todo ser for dependente, não haverá qualquer explicação para o fato de que existem seres dependentes.
Portanto, a verdade da premissa 2 (assim como a verdade da premissa 1) também dependerá da verdade do PRS, pois “não haver explicação para a existência de um ser ou de um fato” só será um problema se o PRS for verdadeiro. Consequentemente, a conclusão do argumento cosmológico, de que há um ser auto-existente, é dependente de o PRS ser verdadeiro; e, portanto, só poderemos estabelecer tal argumento se estabelecermos antes a verdade do PRS – algo que ainda não feito pelo defensor do argumento cosmológico.
Há também outro tipo de argumento cosmológico, o argumento cosmológico kalam, dividido em duas partes, que visam:

(I) provar que o universo teve um começo e (II) mostrar que a causa do começo do universo é o Deus teísta ou que não é o Deus teísta – conforme estejamos falando da versão do argumento cosmológico kalam teísta ou de sua versão ateísta.

Assim como no argumento cosmológico tradicional, a discussão tende a ficar apenas na primeira parte, exceto na versão ateísta, onde tenta-se provar que o universo causou sua própria existência, ou que, pelo menos, não foi Deus.
O argumento kalam teísta, defendido por William Craig (Rowe, 2007, cap. 2), é o seguinte:

(1) Se nosso universo não teve um começo, ocorreu uma série infinita efetiva de acontecimentos.
(2) Uma série infinita efetiva de acontecimentos é impossível.
(3) Logo, o nosso universo teve um começo.

A premissa 1 é aceita por todos; é a premissa 2 que é controversa. Para argumentar a favor de sua veracidade, o defensor do kalam diz que o universo pode ser potencialmente infinito (é finito a qualquer momento em que o consideremos e pode-se lhe adicionar elementos ad infinitum), mas que se não tivesse havido um primeiro ponto, nunca poderíamos ter chegado ao momento em que estamos, pois efetivamente existiria um infinito de tempo entre o passado e nós, e não é possível percorrer um infinito de tempo.
As maiores críticas a esse argumento são: (i) que a teoria do Big-Bang fala da existência de infinitos efetivos, o que nega a noção de impossibilidade da existência de tais infinitos, e (ii) que, se algo é infinito em potência, então não pode ser o caso de ser impossível a efetivação dessa potência, pois se ela fosse impossível de se realizar, não seria de todo uma potência.
A primeira crítica é realmente muito boa, se a teoria do Big-Bang estiver correta. Mas um grande problema dela é que se a teoria do Big-Bang estiver correta, então o tempo começou com o início do universo; donde, ficamos sem compreender como algo atemporal poderia causar a existência de um universo temporal sem ser no tempo.
A segunda crítica não é tão boa, pois simplesmente vai contra o nome “potencial” que foi dado a tal tipo de infinito. Entretanto, poderíamos evitar tal nome e falar sobre algo que é “infinitamente adicionável”, ou seja, que é finito a qualquer momento em que o consideremos e que se podem adicionar elementos ad infinitum. Se não chamássemos mais tal propriedade de “infinito potencial”, mas de “infinitamente adicionável”,essa objeção não seria boa. O que parece nos mostrar que essa objeção é meramente linguística e não substancial.
Ainda que aceitássemos o argumento kalam teísta, ainda seria um grande passo defender que a causa do universo deve ter as propriedades do Deus teísta – como ser onipotente, onisciente, sumamente bom etc. A segunda parte do argumento ainda não estaria estabelecida. Parte esta que o leitor interessado na investigação filosófica pode ele mesmo tentar construir, argumentando contra ou a favor à tese de que a causa inicial do universo possui as propriedades do Deus teísta.
Por sua vez, o argumento kalam ateísta (Smith, 2007, cap. 11) é também dividido em duas partes, que visam:

Mostrar que (I) há uma causa para o início do universo e (II) que esta causa é o próprio universo (ou que não é, e nem pode ser, o Deus teísta).

Quentin Smith, que avança esse argumento, se utiliza de uma reformulação da primeira parte do argumento kalam e depois passa a tentar mostrar que podemos pensar em um universo que causa a sua própria existência.
A parte I do argumento é a seguinte:


(1) Tudo que começa a existir tem uma causa.
(2) O universo começou a existir.
(3) Logo, o começo da existência do universo tem uma causa.

Smith aceita esse argumento e avança outro pela parte II. Ele diz que a linha temporal onde se encontra o nosso universo é semi-aberta na direção do passado – pensada tal como pensamos as retas, semi-retas e intervalos em matemática. Sua razão para afirmar tal coisa é que se aceitamos a teoria do Big-Bang, temos de aceitar que não poderia haver um tempo t=0, pois nesse tempo existiria um universo matematicamente impossível. Assim, Smith afirma que embora haja um primeiro momento para o começo da existência do universo, não pode haver um primeiro instante.
Mas como ele chega a afirmar isso? Ele pensa que um instante é o representante de um número racional dentro da linha temporal onde se encontra o nosso universo, e que ele não tem dimensão temporal; enquanto, um momento é um intervalo de instantes, obviamente, com dimensão temporal. Para qualquer momento que tomemos, dentro de uma linha temporal dividida em números racionais, sempre haverá um momento anterior que explicará a existência do universo num momento posterior, e nunca precisaremos chegar ao instante t=0. Portanto, pensa Smith, a causa da existência do universo se encontra dentro do próprio universo.
Há uma série de dificuldades no argumento de Smith. Por exemplo, o que causa a totalidade dos instantes (ou melhor, dos estados instantâneos)? Smith diria que cada estado instantâneo anterior causa o posterior, mas não há uma relação causal entre um instante e um intervalo, e muito menos entre um instante e a totalidade dos instantes. Além disso, o conjunto dos instantes é uma entidade abstrata, e entidades abstratas, como conjuntos, não podem se relacionar causalmente com entidades concretas, tal como Deus.
Pode-se tentar, então, reformular a questão sobre a totalidade de instantes assim: “por que o conjunto dos instantes tem os elementos que tem, e não outros?” A resposta de Smith é dizer que é um axioma da teoria dos conjuntos e da lógica de predicados de segunda ordem que um conjunto contém necessariamente os seus elementos. Portanto, não é possível que um certo conjunto tenha outros elementos que não aqueles que tem. Se algo causa a existência dos membros do conjunto separadamente, então não precisa haver uma causa para o conjunto como um todo, pois a existência dos elementos implica a existência do conjunto. A discussão aqui parece ficar dependente da discussão metafísica sobre a natureza dos conjuntos – discussão muito interessante na filosofia da matemática, que o leitor interessado ou investigador especialista faz muito bem em procurar.
Surge outra dificuldade se considerarmos o universo como um todo formado de partes, a saber, a dificuldade posta pelo argumento de Gale de que os todos não podem ser explicados por meio das causas de suas partes. Seu exemplo é o carro e suas peças: a causa da existência de suas peças não explica a existência do carro. As causas das existências das peças são os seus construtores, mas a causa da existência do carro são os que montam o carro com tais peças, de modo que a união das causas das existências das peças não é o suficiente para explicar a causa da existência do carro. A resposta mais comum a essa objeção é dizer que o carro é um agregado, enquanto o universo não é. Embora seja difícil defender que o universo não é um agregado, ainda seria possível objetar a Smith perguntando “por que há um todo de partes em vez de nada?”. A resposta de Smith é que a existência das partes do universo exige logicamente a existência deste universo, e suas partes existem porque uma parte anterior causou a existência de cada uma das partes; e, no caso das leis naturais (caso acreditemos que elas existem), a explicação da existência de uma lei L num certo instante estaria no fato de que L existe num instante anterior que é tanto o fim de um intervalo temporal e o início de outro.
Um dos maiores desafios da teoria de Smith é a objeção de Burke (Smith, 2007, p. 140). Ela diz que é incoerente a idéia de explicar o começo da existência do universo por um intervalo semi-aberto na direção do passado. O exemplo utilizado é o caso de um pato que foi posto sobre a mesa. Se dissermos que o começo da existência do pato sobre a mesa é um intervalo semi-aberto na direção do passado, temos que concluir que nunca houve um tempo em que o pato foi posto em cima da mesa, pois podemos regressar infinitamente na reta temporal de números racionais sem nunca alcançar o ponto zero (o ponto em que o pato foi posto em cima da mesa). E, assim, somos tentados a dizer que o pato simplesmente começou a existir espontaneamente sobre a mesa, tal como seríamos tentados a dizer sobre o universo, caso postulássemos que o início de sua existência é um intervalo semi-aberto na direção do passado.
A resposta de Smith é dizer que algo só pode ser um intervalo semi-aberto em direção ao passado se o seu ponto inicial for uma singularidade, ou seja, se tiver um ponto inicial alegadamente impossível – como o Big-Bang. Assim, diria Smith, como o começo da existência do universo é uma singularidade, ele é semi-aberto na direção do passado e é internamente causado, ou seja, não há um elemento externo ao conjunto de instantes que tenha causado o começo da existência do universo, pois tudo é suficientemente e internamente causado. Isso implica que todas as afirmações verdadeiras e contingentes (como as afirmações sobre a existência dos seres dependentes) têm explicação, se a teoria do Big-Bang estiver correta. Embora nos pareça um pouco ad hoc este argumento, ele se funda no fato de que se o ponto inicial é impossível, tem de haver outra explicação sem ponto inicial.
Uma última objeção ao argumento kalam ateísta também utiliza o exemplo do pato. Se colocarmos um pato sobre uma mesa num tempo inicial tx, e em tx+1 perguntarmos sobre a explicação da existência do pato neste instante, poderemos encontrar causas ad infinitum que explicam o começo da existência daquele pato naquele instante. Entretanto, isso não nos daria a real explicação do começo da existência do pato sobre a mesa. A real explicação é que alguém colocou aquele pato sobre a mesa, mesmo que haja infinitos estados instantâneos anteriores que explicam a existência do pato, ao explicarem cada um a existência do instante posterior. Embora possamos explicar a existência do pato sobre a mesa, ou de qualquer outro objeto, por meio de infinitos instantes anteriores que causam uns aos outros, isso nunca será uma boa explicação e nem a real explicação, pois comete o mesmo erro que supostamente é cometido pelos “Paradoxos de Zenão” – como são chamados alguns dos argumentos de Zenão, filósofo grego, a favor da impossibilidade do movimento e da pluralidade.
Um desses argumentos pela impossibilidade do movimento é o que afirma que é impossível atravessar um estádio por ser impossível percorrer uma quantidade de espaço infinita, dado que para percorrê-lo inteiramente, teríamos que antes ter percorrido metade dele, e antes a metade da metade dele, e antes a metade da metade da metade dele, e assim por diante. Assim, como para percorrer qualquer distância, haveria uma quantidade de espaço infinita a ser percorrida (lembremos que a divisão é algo que podemos fazer infinitas vezes no conjunto dos números racionais), não é possível o movimento.
Certamente há um erro nesse argumento, pois de fato conseguimos atravessar um estádio, e numa quantidade finita de tempo; o que implica que o movimento é possível. Mas se o movimento é possível, então a conclusão de que o movimento é impossível é falsa, de modo que alguma das premissas do argumento tem de ter sido falsa ou o método de deduzir a conclusão das premissas não foi um bom método. Eu diria aqui que o método é dedutivamente válido (o que é um bom método de inferência, dado que tal método, partindo de premissas verdadeiras, sempre produz conclusões verdadeiras) e que há uma premissa falsa, a saber, a de que é impossível percorrer uma quantidade de espaço infinita. Se os 10 metros que compõem o espaço a ser atravessado no estádio são considerados “uma quantidade de espaço infinita”, então com certeza conseguimos atravessar quantidades de espaço infinitas, pois conseguimos atravessar 10 metros. O erro do argumento de Zenão é semelhante ao erro cometido pelo argumento kalam ateísta de Smith. Se o universo teve um início, então há um intervalo de tempo finito entre o início do universo e nós, embora é claro que, como Zenão, podemos subdividir infinitamente esse intervalo temporal. O erro aqui é confundir divisibilidade infinita com extensão infinita.

1 Na verdade, este exemplo, do fogo, não é muito bom, pois nele o calor do fogo se explica pela natureza do fogo, e não do próprio calor do fogo; e a existência do fogo não depende de sua própria natureza. Tudo isso ficará mais claro posteriormente.



Referências

Martin, Michael (org.) (2007) Compêndio Cambridge de Ateísmo. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Edições 70, no prelo.

Rowe, William L. (2007) Introdução à Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Revisão científica de Desidério Murcho. Lisboa: Verbo, 2011.

Smith, Quentin. “Argumentos Cosmológicos Kalam a Favor do Ateísmo”, in Martin (2007).