O Anel de Gyges
Luiz Maurício Bentim
da Rocha Menezes
No Livro II da República, Platão, através de seu personagem Gláucon, irá nos contar a narrativa de Gyges e de como ele encontrou o seu anel de ouro. Através do uso desse anel, Gyges irá usurpar o trono da Lídia, matando seu soberano, e irá se tornar o primeiro tirano. Diz o mito que Gyges era um pastor da Lídia, região da Ásia Menor, e que cuidava do rebanho do rei quando presenciou um forte terremoto. O terremoto abriu uma fenda bem onde Gyges tomava conta do rebanho. Sentindo curiosidade, resolveu descer pela fenda e chegou a um lugar repleto de maravilhas e riquezas. Dentre essas, viu um cavalo de bronze oco e dentro deste estava um cadáver de um homem nu, tendo apenas um anel de ouro na mão. Gyges pegou o anel e saiu da caverna em que estava. Mais tarde, reunindo-se com os demais pastores, ele deu um giro com o engaste do anel para dentro da palma da mão e ficou invisível. Depois deu um novo giro no engaste e ficou novamente visível. Percebendo que tinha o poder de ficar visível e invisível quando tivesse vontade, resolveu corromper a rainha para ajudá-lo a matar o soberano da Lídia. Feito isso, Gyges passou a ser o novo soberano da Lídia.
A lírica grega desenvolvida entre os séculos VII e VI a.C. deixou, nos fragmentos que nos restaram, um precioso tesouro a respeito de Gyges da Lídia. A primeira fonte que temos a seu respeito é de Arquíloco de Paros, que assim nos fala sobre ele:
οὔ μοι τὰ Γύγεω τοῦ πολυχρύσου
μέλει,
οὐδ’ εἷλέ πώ με ζῆλος, οὐδ’
ἀγαίομαι
θεῶν ἔργα, μεγάλης δ’ οὐκ ἐρέω
τυραννίδος·
απόπροθεν γάρ ἐστιν ὀφθαλμῶν
ἐμῶν.
Não me
preocupam as coisas de Gyges, rico em ouro,
Nem ainda
me persegue a cobiça, nem invejo
As obras
dos deuses, ou amor pela grande tirania;
Isto
longe está dos meus olhos. (Fr. 19W)[i]
Arquíloco que viveu entre 680-640
a.C. foi contemporâneo de Gyges, que teria reinado entre 682-644
a.C. Tal fragmento além de ser o primeiro a tratar de Gyges, parece também ter
sido o primeiro a utilizar no grego o termo “tirania”. Heródoto nos conta a
história de Gyges da seguinte maneira (Histórias,
I.8-15): Candaules, o soberano da Lídia, oferece a Gyges, seu guarda pessoal, a
permissão para que este veja sua mulher nua e, assim, possa comprovar que ela é
a mais bela. Pois, segundo diz Candaules, “os homens confiam menos em seus
ouvidos do que em seus olhos” (Hdt. I.8.2). Mesmo dizendo-se persuadido pelas
palavras de Candaules, de que sua mulher é a mais bela, Gyges é obrigado a ver
para comprovar tal fato. Escondido atrás da porta do quarto, Gyges vê a rainha
nua e quando se preparava para se retirar, acabou sendo visto por ela sem que
ele assim percebesse. Entendendo o ocorrido e percebendo que se tratava de obra
de Candaules, a rainha nada fala e aguarda. No dia seguinte, a rainha chama
Gyges em sua presença e apresenta a ele dois caminhos: ou mata o soberano ou
morre (Hdt. I,11.2-3). Para evitar a morte, Gyges escolhe matar o soberano e
assim toma para si a mulher e a soberania (Hdt. I,12.2).
O anel de Gyges é, portanto, um anel
de poder capaz de tornar os homens símiles aos deuses e, como isso, testar a
capacidade dos humanos de se manterem justos se tiverem esse poder ou, melhor
dizendo, se não estiverem sendo vistos por outras pessoas. Pois esse é o real
significado da invisibilidade, o que fazemos quando não somos vistos. Sendo o
desafio que se faz, a partir da narrativa do anel da invisibilidade, é: quem se
manteria justo mesmo invisível? A justiça é natural ao homem ou é apenas uma
obrigação moral dada por um contrato legal entre os humanos, que qualquer um
deixaria de cumprir quando não está sendo observado pelos outros humanos? A
liberdade total é uma corrupção do desejo e tem relação direta com a pleonexía,
que é a vontade de ter sempre mais. Se o ser humano se reduzir apenas ao
desejo, então não será capaz de atos de justiça ou bondade em si mesmos, mas
apenas se for coagido a agir conforme a lei estabelecida por um contrato. Gyges
demonstra como o contrato pode ser deturpado pelo seu governante se a ele for
permitido "agir como um deus" (Rep., 360c3). Dessa forma, o
anel de Gyges é a metáfora do caminho do tirano.
[i] O fragmento foi retirado da edição de WEST (1971). A tradução do fragmento é minha.