terça-feira, 4 de agosto de 2020

O Anel de Gyges


O Anel de Gyges

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes

No Livro II da República, Platão, através de seu personagem Gláucon, irá nos contar a narrativa de Gyges e de como ele encontrou o seu anel de ouro. Através do uso desse anel, Gyges irá usurpar o trono da Lídia, matando seu soberano, e irá se tornar o primeiro tirano. Diz o mito que Gyges era um pastor da Lídia, região da Ásia Menor, e que cuidava do rebanho do rei quando presenciou um forte terremoto. O terremoto abriu uma fenda bem onde Gyges tomava conta do rebanho. Sentindo curiosidade, resolveu descer pela fenda e chegou a um lugar repleto de maravilhas e riquezas. Dentre essas, viu um cavalo de bronze oco e dentro deste estava um cadáver de um homem nu, tendo apenas um anel de ouro na mão. Gyges pegou o anel e saiu da caverna em que estava. Mais tarde, reunindo-se com os demais pastores, ele deu um giro com o engaste do anel para dentro da palma da mão e ficou invisível. Depois deu um novo giro no engaste e ficou novamente visível. Percebendo que tinha o poder de ficar visível e invisível quando tivesse vontade, resolveu corromper a rainha para ajudá-lo a matar o soberano da Lídia. Feito isso, Gyges passou a ser o novo soberano da Lídia.

A lírica grega desenvolvida entre os séculos VII e VI a.C. deixou, nos fragmentos que nos restaram, um precioso tesouro a respeito de Gyges da Lídia. A primeira fonte que temos a seu respeito é de Arquíloco de Paros, que assim nos fala sobre ele:

 

οὔ μοι τὰ Γύγεω τοῦ πολυχρύσου μέλει,

οὐδ’ εἷλέ πώ με ζῆλος, οὐδ’ ἀγαίομαι

θεῶν ἔργα, μεγάλης δ’ οὐκ ἐρέω τυραννίδος·

απόπροθεν γάρ ἐστιν ὀφθαλμῶν ἐμῶν.

Não me preocupam as coisas de Gyges, rico em ouro,

Nem ainda me persegue a cobiça, nem invejo

As obras dos deuses, ou amor pela grande tirania;

Isto longe está dos meus olhos. (Fr. 19W)[i]

 

Arquíloco que viveu entre 680-640 a.C. foi contemporâneo de Gyges, que teria reinado entre 682-644 a.C. Tal fragmento além de ser o primeiro a tratar de Gyges, parece também ter sido o primeiro a utilizar no grego o termo “tirania”. Heródoto nos conta a história de Gyges da seguinte maneira (Histórias, I.8-15): Candaules, o soberano da Lídia, oferece a Gyges, seu guarda pessoal, a permissão para que este veja sua mulher nua e, assim, possa comprovar que ela é a mais bela. Pois, segundo diz Candaules, “os homens confiam menos em seus ouvidos do que em seus olhos” (Hdt. I.8.2). Mesmo dizendo-se persuadido pelas palavras de Candaules, de que sua mulher é a mais bela, Gyges é obrigado a ver para comprovar tal fato. Escondido atrás da porta do quarto, Gyges vê a rainha nua e quando se preparava para se retirar, acabou sendo visto por ela sem que ele assim percebesse. Entendendo o ocorrido e percebendo que se tratava de obra de Candaules, a rainha nada fala e aguarda. No dia seguinte, a rainha chama Gyges em sua presença e apresenta a ele dois caminhos: ou mata o soberano ou morre (Hdt. I,11.2-3). Para evitar a morte, Gyges escolhe matar o soberano e assim toma para si a mulher e a soberania (Hdt. I,12.2).

O anel de Gyges é, portanto, um anel de poder capaz de tornar os homens símiles aos deuses e, como isso, testar a capacidade dos humanos de se manterem justos se tiverem esse poder ou, melhor dizendo, se não estiverem sendo vistos por outras pessoas. Pois esse é o real significado da invisibilidade, o que fazemos quando não somos vistos. Sendo o desafio que se faz, a partir da narrativa do anel da invisibilidade, é: quem se manteria justo mesmo invisível? A justiça é natural ao homem ou é apenas uma obrigação moral dada por um contrato legal entre os humanos, que qualquer um deixaria de cumprir quando não está sendo observado pelos outros humanos? A liberdade total é uma corrupção do desejo e tem relação direta com a pleonexía, que é a vontade de ter sempre mais. Se o ser humano se reduzir apenas ao desejo, então não será capaz de atos de justiça ou bondade em si mesmos, mas apenas se for coagido a agir conforme a lei estabelecida por um contrato. Gyges demonstra como o contrato pode ser deturpado pelo seu governante se a ele for permitido "agir como um deus" (Rep., 360c3). Dessa forma, o anel de Gyges é a metáfora do caminho do tirano.

 


[i] O fragmento foi retirado da edição de WEST (1971). A tradução do fragmento é minha.