segunda-feira, 8 de junho de 2020

Sobre o anel e o poder: Platão e o Senhor dos Anéis




Giges e o Senhor dos anéis

Deixe-me começar propondo a seguinte reflexão: por que falar de anel? O anel, dentre suas possíveis simbologias, abriga a ideia de perfeição, de um todo fechado em si mesmo e, por isso, sem qualquer falta ou imprecisão. O anel é a perfeição, ainda, porque perfeito vem do latim perfectus que quer dizer perfazer por completo, realizar algo em todas as direções e dimensões possíveis, circunscrever, delimitar. O anel fecha-se em si mesmo porque de nada mais precisa ou depende. Por isso, ele sugere, ainda, a ideia de eternidade, sem início ou fim, sem partes ou etapas, mas um todo cujo significado está no poder de ser pleno e completo. O anel é símbolo da perfeita satisfação.


Isso posto, quero proceder a uma aproximação entre duas obras clássicas que lidam com o anel em uma caracterização semelhante, ainda que em contextos diferentes. Um clássico, é bom que se diga, é uma obra cujo valor simbólico apreende-se não apenas em termos da própria geração ou período histórico em que foi publicada, mais principalmente para toda e qualquer geração, de forma a servir como um instrumento de avaliação da condição humana e de nossas aspirações nas mais diversas áreas. Um clássico é uma obra imortal em sua significação, porque rende a cada nova leitura a possibilidade de que se produzam outras e novas interpretações, intelecções, significados. As duas obras que vamos aproximar aqui são dois clássicos, porque ainda hoje produzem seus mais afeitos e apaixonados leitores e estudiosos.

A primeira delas é a República de Platão. O primeiro grande filósofo da história ocidental deixou-nos uma obra vasta sobre os mais diversos temas que estabeleceram o campo de análise e atuação da Filosofia até os dias de hoje. Em sua República, o que está em jogo é a possibilidade da justiça, na alma e na sociedade. Um tema demasiadamente humano. Na República, o anel aparece no mito contado por um dos interlocutores de Sócrates para simbolizar a condição dos homens comuns diante da vontade de parecerem justos, ainda que não o sejam verdadeiramente. O mito em questão é sobre o rei-tirano Giges. Leiamos o mito e depois façamos uma reflexão sobre.

A permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio. Este homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível. Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citar-se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto. (PLATÃO, República, II)

Pois bem, no mito de Giges o anel é encontrado em meio a um fenômeno extraordinário: o solo se fende por conta de um terremoto, e no abismo ali formado é que se revelam, surpreendentemente, certos objetos maravilhosos, admiráveis. Dentre eles, havia um cavalo de bronze, oco por dentro – e imediatamente lembramos do cavalo de Troia, o estratagema dos gregos para derrubar os troianos de vez durante uma guerra que já se estendia por dez anos. Um cavalo oco que trazia os gregos em seu interior. O cavalo oco que Giges encontra trazia um homem dentro. Um homem maior do que os homens normais. Talvez um gigante. O corpo morto do gigante trazia o anel em sua mão. Giges, depois de se apoderar dele, não quis mais nada.

É estranho pensarmos que, em meio a tantos objetos maravilhosos, segundo nos conta o mito, Giges não tenha querido se apossar de mais nada. O anel lhe era suficiente. Sua ação estava, de certo modo, completa. Não era preciso mais nada. O estranho é que ele mal sabia qual poder tinha aquele anel. Antes mesmo de ser capaz de provar qualquer aspecto do poder do anel, ele estava certo de que não precisaria de mais nada. Isso é interessante. Todas as outras coisas maravilhosas que foram descobertas depois que a tempestade abriu uma fenda no solo eram-lhe menores ou sem importância. Giges sentia-se completo.

É apenas em um ambiente social que o poder do anel se revela. Durante uma assembleia com todos os fazendeiros da cidade, Giges descobre, sem querer, que o anel lhe permite tornar-se invisível caso ele gire o seu engaste. Para se tornar invisível, ele deve girar o anel para dentro. Girando para fora, ele retorna sua aparência. Pensemos um pouco. Voltando o engaste do anel para dentro, Giges pode tornar-se inexistente aos olhos de todos. Com isso, vê a todos mas ninguém o vê. Ele age sem que a causa de suas ações se revelem, apenas os efeitos. Ninguém pode testemunhá-lo como causa daquilo que faz. Se o giro é para dentro, podemos imaginar que se esteja aqui simbolizando a consciência. Ele age mas ninguém sabe o que faz, portanto só ele sabe as intenções e as causas de fazer o que faz. Ele, portanto, só recolhe como consequência dos seus atos aquilo que vai em sua consciência. Não há quem o possa julgar de fora, porque não há quem o veja realmente. E frente a esta possibilidade, tem-se o problema posto pelo texto de Platão – Se suas ações não pudessem ser julgadas por nenhum ser humano, o que você faria?

Ele gira o engaste do anel para fora, e volta a ser visto. As causas de suas ações podem agora outra vez ser dirigidas a Giges. Os olhos da sociedade estão sobre ele. Nesse ponto, Giges volta a ser um de nós. O olho do outro impede que façamos muitas coisas que desejamos ardentemente, ou por medo ou precaução ou vergonha. Em uma imagem belíssima, Platão nos legou uma reflexão sobre o modo como o outro provoca em nós um autoconhecimento. Seu Diálogo Alcibíades I traz Sócrates expondo a maneira pela qual somos capazes de nos enxergar através das pupilas do outro, olhando-o nos olhos e como que refletindo nossa imagem pelo olhar estrangeiro. Não apenas estrangeiro, mas semelhante também. Na época, não existiam espelhos, e as superfícies refletoras refletiam uma imagem borrada e muitas vezes pouco definida. Os olhos de outro de nós era o lugar em que nossa imagem se deixava ver mais satisfatoriamente. Sócrates indicava, com isso, que o olhar alheio é o caminho para que nos conheçamos. Porque não é possível ter uma imagem clara de nós senão por reflexo – por reflexão.

O outro, desse modo, é não exatamente o nosso limite, no sentido opressor da ideia, e sim no sentido de deixar mais claro a nós mesmos nossas próprias ações. Quando Giges está invisível, ele anula o olhar do outro, portanto o reflexo de suas ações e intenções. Ele está a sós consigo mesmo para saber lidar com seus instintos e apetites, suas vontades e seus desejos. A pergunta da personagem platônica se resume, assim, a estes termos: de que modo você lida com as causas de suas ações, caso ninguém pudesse lhe imputar restrições morais e legais? De que modo você está olhando para si mesmo em sua consciência, a que ponto você é capaz de conhecer-se a si mesmo sem o olhar do próximo?

Giges, no mito, dá vasão aos seus apelos físicos e emocionais. Cede às vontades mais bárbaras e sem qualquer temor chega ao poder pelos atos mais ilícitos possíveis. A personagem de Platão, ao concluir o mito, deixa-nos com a sua percepção sobre os outros homens: todos fariam o mesmo, não há homem que, de posse de um poder como esse, não quisesse abrir mão dos limites legais e morais para realizar suas vontades. Giges, assim, é como nós: a dificuldade sobre a qual Platão nos convida a refletir está em não sabermos lidar conscientemente com a liberdade. Parece que a todo tempo se está consciente de que não se faz determinadas coisas porque há o parecer alheio dos outros. Usar o anel é realizar ações sem a preocupação com seus efeitos, com seus reflexos. O problema é que nós somos as ações que causamos. Não apenas as causas, também os efeitos nos dizem respeito.

Isso é ainda mais visível na saga do anel de J.R.R. Tolkien. Em seu O Senhor dos Anéis, o segundo clássico que nos auxilia nesta reflexão sobre o anel e o poder, a ganância e a ambição estão latentes na natureza material do anel, de modo que ele desperta a ganância e a ambição na natureza de quem o vê, admirado. Encontrar o anel é se encontrar desejando o brilho do poder. Um brilho, por certo, quase irresistível. O mito que Tolkien nos conta apresenta a justificativa para esse apelo admirável aos nossos olhos. Leiamos o poema do poder, cantado em O Senhor dos Anéis.

"Três anéis para os Reis-Élfos sob o céu, Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores, Nove para os Homens Mortais fadados ao eterno sono, Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono, Na Terra de Mordor, onde as sombras se deitam. Um Anel para todos governar, Um anel para encontrá-los, Um Anel para todos trazer e na escuridão aprisioná-los na Terra de Mordor, onde as Sombras se deitam."

Os anéis de poder, ao que parece, rondam o mundo fantástico de Tolkien. Há indícios de que haviam outros anéis de poder, com poderes menores, além dos 20 de que falamos aqui. Estes, por certo, são os mais poderosos. Dezenove anéis forjados pelos elfos sob a influência de Sauron. Na verdade, os três anéis reservados aos elfos, criados pelo ferreiro élfico Celembribor durante a Segunda Era com a intenção de lhes servir para curarconstruir e compreender, não tiveram a participação de Sauron, e por isso conservam a energia benéfica do poder. Sobram-nos dezesseis anéis, partilhados entre anões (sete) e homens (nove). Poderíamos entrar numa reflexão simbólica dessa partilha numérica, mas deixemos essa reflexão para um outro momento. O que pretendo destacar aqui é a influência sobre os anéis de poder exercida por Sauron. É como se os anéis oferecidos aos anões e aos homens tivessem a ambiguidade da energia élfica e da de Sauron, que encarna o adversário e o mal.

Depois disso, Sauron forja para si, sozinho na montanha Orodruin nas terras de Mordor, um anel para a todos governar. Para esse feito, Sauron teve de aplicar sobre o anel toda a sua energia, motivo pelo qual acabou por ser destruído no momento em que se viu privado do anel. Sua energia, desencarnada do corpo físico, torna-se um olho gigante sem pálpebras, que anseia por reconquistar o anel e com isso o seu poder e domínio. Não é difícil perceber de que modo Tolkien indica as artimanhas do poder e a natureza do desejo de governar: há como que um crescente desejo por mais poder, porque só é possível dominar os mais fortes ao se impor sobre eles com força ainda maior. A caracterização de Sauron como o mal indica o parecer do autor acerca dessa ambição: todo poder que almeja se impor sobre as raças livres é um anseio por escravizar, e portanto é um mal.

Mas o anel de Sauron, ou o Um anel, como ficou conhecido, escraviza seu próprio portador. Com um acúmulo de energia ambiciosa por mais poder, portar o Um anel é se ver aprisionado pela cobiça que denigre o entendimento e adoece a alma. É o contrário daquilo que os elfos almejavam ao forjarem os outros anéis. O poder do Um anel, materializado na capacidade de se tornar invisível, torna o seu portador ainda mais visível pelos Názgûl, os espectros daqueles que corromperam sua alma até ao ponto de se identificarem com o mal supremo. Usar o Um anel é tornar-se invisível ao mundo material sem poder escapar das forças espirituais que nos observam.

Quer dizer, valer-se do poder do Um anel é ser invisível aos homens e visível aos espectros do mal. Temos, com isso, um ponto interessante para nossa aproximação das duas histórias sobre anéis de poder, em Platão e em Tolkien. Tal como no mito de Giges, o poder do anel está em se fazer invisível aos homens, como uma prerrogativa para obter o poder pela ausência do olhar humano sobre nossas ações. O que em Tolkien fica ainda mais claro é que tornar-se invisível ao olhar humano é tornar-se ainda mais visível ao olhar do mal. Seguindo a reflexão que havíamos indicado antes, não levar em conta o outro que nos faz enxergar melhor a nós mesmos enquanto nos servem de reflexo para nossas ações é entregar-se ao completo desprezo de si por meio de um egoísmo automutilador. A energia de traços malignos que domina o usuário do Um anel é resultante de suas intenções malignas em se ver livre dos olhares alheios que limitam suas ações, mas que no fim das contas deixam ainda mais notória a malignidade dessa ausência de reflexo no outro. Exatamente por isso o Um anel é forjado pela ideia de governar a todos: a ambição pelo poder soberano é a própria escuridão que aprisiona a alma em sua maldade doentia.

O Um anel não domina a todos facilmente. Há homens e seres mais fracos, para quem o poder que ele possui facilmente se torna desejável e realizável. Mas há seres de maior força mental e espiritual que não se deixam dominar facilmente pelo poder da ambição. É por isso que em O Hobbit Bilbo, que encontrou o anel perdido por Gollum, pôde guardá-lo por anos, sofrendo como consequência da posse do anel apenas uma longevidade invejável. É por isso também que em O Senhor dos Anéis Frodo se faz o escolhido para recebê-lo, pela nobreza de sua alma e de seu caráter. Mas mesmo o mais nobre dos seres não pode resistir por um longo tempo o poder que emana do Um anel. Porque o poder corrompe: uns resistem mais que outros, mas ninguém pode dominá-lo. É preciso, por isso, destruí-lo. Só pela destruição do anel de poder pode o poder passar a ser resistível. A forja do Um anel materializou toda a energia que move os seres para a sede pelo domínio. Isso materializado, qualquer um pode se fazer vítima de sua própria maldade. Porque no fundo a forja do Um anel materializa os aspectos negativos e obscuros da alma. Destruí-lo é a única saída para os povos voltarem a ser livres na Terra-Média.

(Cesar de Alencar)