quarta-feira, 18 de março de 2020

Sobre o fim do mundo



Sobre o fim do mundo
Giorgio Agamben
O tema do fim do mundo apareceu várias vezes na história do cristianismo e os profetas apareceram o tempo todo anunciando o último dia como o próximo. É singular que hoje essa função escatológica, que a igreja abandonou, tenha sido assumida por cientistas, que se apresentam cada vez mais como profetas, que preveem e descrevem com absoluta certeza as catástrofes climáticas que levarão ao fim da vida na Terra. Singular, mas não surpreendente, se considerarmos que na modernidade a ciência substituiu a fé e assumiu uma função estritamente religiosa - é, de fato, em todos os sentidos, a religião do nosso tempo, em que os homens acreditam (ou, pelo menos, acredita que eles acreditam).

Como qualquer religião, nem mesmo à religião da ciência poderia faltar uma escatologia, isto é, um dispositivo que, mantendo os fiéis com medo, fortaleça sua fé e, juntos, assegure o domínio da classe sacerdotal. Aparições como Greta são, nesse sentido, sintomáticas: Greta acredita cegamente no que os cientistas profetizam e aguarda o fim do mundo em 2030, exatamente como os milenistas da Idade Média acreditavam no retorno iminente do messias para julgar o mundo. Não menos sintomática é uma figura como a do inventor de Gaia, um cientista que, concentrando seus diagnósticos apocalípticos em um único fator - a porcentagem de CO2 na atmosfera - declara com espantosa sinceridade que a salvação da humanidade está em energia nuclear. Que, em ambos os casos, as apostas são de natureza religiosa e não científica, trai-se na função central que desempenha uma palavra - salvação - tirada da filosofia cristã da história.
O fenômeno é ainda mais perturbador, pois a ciência nunca incluiu a escatologia entre suas tarefas e é possível que a assunção do novo papel profético traga a consciência da responsabilidade inegável nas catástrofes cujo advento prediz. Certamente, como em qualquer religião, a religião da ciência também tem seus incrédulos e adversários, isto é, os adeptos de outra grande religião da modernidade: a religião do dinheiro. Mas as duas religiões, aparentemente divididas, estão secretamente unidas. Porque foi certamente a aliança cada vez mais estreita entre ciência, tecnologia e capital que determinou a situação catastrófica que os cientistas hoje denunciam.
Deve ficar claro que essas considerações não pretendem se posicionar sobre a realidade do problema da poluição e as transformações prejudiciais que as revoluções industriais produziram nas condições materiais e espirituais dos vivos. Ao contrário, alertando contra a confusão entre religião e verdade científica e entre profecia e lucidez, é uma questão de não ser ditado acriticamente pelas partes interessadas suas escolhas e razões, que na análise final só podem ser políticas.
Publicado originalmente em Quodlibet: Sulla fine del mondo em 18 de novembro de 2019


Comentários:
 LM: A ciência é historicamente construída. Seus defensores tomam como verdade qualquer coisa que de defenda como cientificamente comprovado. Só que quem escreve sobre ciência são os próprios cientistas. O que cria um certo círculo vicioso, onde só são aceitos aqueles que passam pelos ritos da ciência. Não entendo o texto de Agamben como um Manifesto contra a ecologia. Mas uma crítica ponderada ao cientificismo. Dizer que isso é ecocídio não me parece condizente com o texto. Acho que não entenderam bem o foco do texto. Admira-me o Viveiro de Castro não ter percebido que o texto de Agamben está puxando a discussão para um outro caminho. Logo ele que conviveu com etnias diferentes deveria perceber que a ciência não é a única forma de conhecimento. Pelo visto, continua preso às idiossincrasias do método científico...
Germano: Quando se trata de questão climática, minha impressão é de que essa galera tende a ser assim.
LM: Para mim essa frase é determinante:Porque foi certamente a aliança cada vez mais estreita entre ciência, tecnologia e capital que determinou a situação catastrófica que os cientistas hoje denunciam”. Diz o foco do artigo. Isto é, a aliança entre ciência, tecnologia e capital.
Acho superinteressante quando Bruno Latour fala da questão climática em "Jamais fomos modernos", mostrando que há uma leitura natural, política e discursiva desta questão.
Marcelo Guimarães: Eu acho que o Agamben se equivoca quando diz que a ciência é a religião da modernidade... a religião seria mais a economia ou o dinheiro, não propriamente a ciência. (formulando enquanto leio o texto)
LM: Mas ele também diz que há outra religião: o dinheiro. Vai lendo.. Por isso a aliança que ele fala no fim.
Fábio Candido: No sentido de "verdade" sobre o real, acho que ele está certo, sim, Marcelo. Hoje se acredita tão cegamente na ciência (que é movida pelo capital) quanto se acreditava na religião na idade média.
LM: Não somos monoteístas nesse ponto. Há várias religiões modernas. American Gods brinca bem com isso...
Germano: Eu diria que: Deus é o dinheiro, o ritual é a autovalorização contínua do capital, os materiais e procedimentos do rito são a tecnologia, a vítima sacrificial é o trabalhador e o que estiver daí pra baixo e o mito é a ciência (como saber que sustenta o e se retroalimenta do rito, ao menos).
 Marcelo Guimarães: “Certamente, como em qualquer religião, a religião da ciência também tem seus incrédulos e adversários, isto é, os adeptos de outra grande religião da modernidade: a religião do dinheiro. Mas as duas religiões, aparentemente divididas, estão secretamente unidas. Porque foi certamente a aliança cada vez mais estreita entre ciência, tecnologia e capital que determinou a situação catastrófica que os cientistas hoje denunciam”.
Esse trecho final do artigo do Agamben, incluindo a frase que o Luiz destacou, me parece importante. Ele diz que o objetivo dele não é questionar os problemas de poluição e ambientais, mas a confusão ou indistinção entre ciência e religião.
Nesse sentido, ele foi mal interpretado. Mas acontece que o texto dele também é um tanto inoportuno e trata de modo muito rápido esses temas, o que dá margens a leituras enviesadas.
A última frase dele chama a atenção para a importância da política, que não pode ser soterrada pela ciência nem pela religião.  com isso concordo, mas também acho o artigo dele muito breve e, por isso, inoportuno.
Marcelo Torres: Li rapidamente agora, não sei se consigo fazer um comentário que acrescente algo. Mas resumidamente, é baseado nisso aí que tá a minha "decepção" com as ciências ambientais (pelo menos onde tenho convivido). De um lado os proféticos do fim do mundo que ou são seguidos ou são ridicularizados, de outro os que só querem publicar (que todos conhecemos esse lado de alguma forma) phoda-se a utilidade disso no sentido do objetivo sustentável/qualidade ambiental, de outro estudantes que querem produzir algo útil e são sistematicamente desencorajados, e em algum lugar que ainda não tive acesso os poucos que pesquisam e produzem resultados úteis e realmente conseguem algumas pequenas vitórias.
Isso nas ciências ambientais de ver na tecnologia a salvação é uma armadilha sempre presente... Deus ex-machina? É isso? E ainda tem essa religião do dinheiro pra "ajudar".