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Ensaio sobre o Sonho
Durmo com a mesma razão com
que acordo
E é no intervalo que existo.
- Alberto
Caeiro, Poemas Inconjuntos
Se o sonho é real, o que é o real dos sonhos?
Incertezas, dúvidas... a existência é penosa para aqueles que sabem que
existem e, para estes, não há alívio em viver. As pessoas depositam umas nas
outras suas aspirações e vontades lhes dizendo: “você deve... você precisa...”;
e o que poderia ser leve e prazeroso, se torna difícil e penoso.
O sonho é um real escape do real. Mas o que o sonho tem de menos real do
que o real? Pensemos com certa atenção sobre o passado. O que este tem de real,
se o que o mantém é a memória? Seja a memória individual ou coletiva, o passado
nada mais é do que memória. Se o passado for esquecido, ele ainda pode ser
considerado como existente, ele pode ser considerado real? Teria o passado
existência própria? Por outro lado, não é o sonho também memória? Podemos
afirmar que sonhamos se não nos lembramos dele?
Alguns dirão que o sonho se compõe de imaginação e que o real não é
assim composto. Mas a estes respondo com Fernando Pessoa no Livro do Desassossego:
Tudo é o que somos, e tudo
será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós
intensamente o houvermos imaginado, isto é, o que houvermos, com a imaginação
metido no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em
seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso
confuso de testemunhos distraídos[i].
Meu passado nada mais é do que uma interpretação de mim mesmo, “um
consenso confuso de testemunhos distraídos”, o funcionamento mais profundo da
minha imaginação. O real nada mais é do que uma imagem que faço de mim no
mundo. Se devemos viver no mundo que importa se é real ou sonho? Que julgamento
poderemos fazer melhor sobre um do que sobre o outro? Sempre estaremos a formar
imagens do mundo como ele não é, mas como nos aparece. Podemos negar com
veemência e recusar tudo isso, impondo os ditames da razão a um mundo que não
os aceita; ou podemos mais facilmente aceitar isso como genuinamente o faz o
Sonhador de Dostoievski em Noites Brancas:
vivemos aquilo que construímos da realidade que nos apresenta. Em que isso se
diferencia do sonho, que certeza posso ter eu de que tal imagem que formo do
real me é mais real do que o sonho? Se o sonho é real pela sua própria
existência de ser sonho, o que significa ‘ser mais real’, epíteto que
designamos para o próprio real? Seria o real, portanto, composto de maior existência?
Se sim, o que nos garante isso, a razão? Talvez os seguidores do ‘eu’ uno e
indivisível, que pensa (apesar de existir) o mundo como obra puramente racional,
possam responder essa pergunta. Quanto aqueles que apenas sentem a questão sem
encontrar uma única razão para respondê-la continuarão a existir, apesar de
pensarem...
O real é uma imagem que dele fazemos; o sonho é só um outro aspecto do
real. O mundo é memória que dele fazemos. Sem memória não há passado, não há
sonho, não há real. Da memória não podemos garantir o real, mesmo que dela se
faça a verdade. Dizer a verdade é dizer algo que lembramos ou tomamos como
verdadeiro. Mas que garantia temos de que essa memória corresponda a verdade? O
sonho também consiste em memória. Ao nos lembrarmos dele, por que não podemos
toma-lo como real? Como podemos separá-lo totalmente da verdade? Seria o sonho
o avesso do real? O sonho tem a sua própria verdade, assim como o real a sua.
Isso significa que a verdade não pode vir da memória e, portanto, nada na memória
garante a verdade de algo, seja do real ou de um sonho. Como nos diz Caeiro no Guardador de Rebanhos:
A recordação é uma traição à
Natureza,
Porque a Natureza de ontem não
é Natureza.
O que foi não é nada, e
lembrar é não ver.[ii]
As sensações, o sentir, o sentimento são aquilo que nos torna seres
múltiplos, capazes de muitas vivências. Não há razão para o que sinto,
simplesmente porque não posso significar racionalmente o sentir. A minha
sensação de ontem não é a mesma de hoje e nem será a de amanhã, mesmo que eu
pense que sim. De fato, a verdade está mais próxima do que sinto do que do que
penso sentir. E se eu, por acaso, mudar o que sinto, muda em conjunto tudo que
há em mim. O sonho é a liberdade de poder sentir de modos diferentes, aquilo que
talvez não ousemos sentir no real. Mas se ambos são compostos da mesma matéria
sensível que nos faz, poderemos saltar de um mundo único, indivisível e
racional para um mundo de possiblidades.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes